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Parecer sobre referenciação para a primeira consulta de especialidade hospitalar de Dermato-Venereologia

Parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar, sobre a referenciação para a primeira consulta de especialidade hospitalar de dermato-venereologia realizada pelos cuidados de saúde primários, homologado no PCN de 3 de dezembro de 2018.

 

Relator: Prof. Doutor Paulo Santos

 

A Direcção do Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Familiar recebeu uma participação expressando a preocupação com a referenciação para a primeira consulta de especialidade hospitalar de dermato-venereologia realizada pelos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde (SNS), conforme despacho no. 6280/2018 de 21 de junho de 2018 do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde (SEAS), Prof Doutor Fernando Araújo (Diário da República, 2.a série – N.o 123 – 28 de junho de 2018: 17975-7), nomeadamente quanto ao risco identificado de condicionamento do acesso dos cidadãos utentes aos cuidados especializados hospitalares, uma vez que existe apenas uma estrutura tecnológica no edifício sede do Centro de Saúde de Torres Vedras, que engloba 3 unidades funcionais onde exercem mais de 20 médicos e o tempo necessário a realizar a totalidade do procedimento de referenciação ser muito superior ao estabelecido em cada consulta.

1. O que estabelece o Despacho 6280/2018 do SEAS

No seu preâmbulo, o Despacho 6280/2018 do SEAS estabelece que, no seguimento de experiências existentes em alguns ACeS e estabelecimentos hospitalares do SNS, como o Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, E. P. E., e a Unidade Local de Saúde de Matosinhos, E. P. E., e baseado no parecer da Rede de Referenciação Hospitalar de dermato – venereologia, e conforme referido no Relatório Anual de Acesso a Cuidados de Saúde nos Estabelecimentos do SNS e Entidades Convencionadas, 2016, o telerrastreio dermatológico se apresenta como uma alternativa à referenciação para uma consulta presencial de dermato-venereologia, com ganhos substanciais em termos de acessibilidade e de comodidade para o utente e com níveis semelhantes de qualidade e segurança das consultas presenciais. Entende-se por telerrastreio dermatológico a associação da imagem a uma adequada informação clínica no ato da referenciação.

Neste contexto, e porque classifica como baixa a implementação a nível nacional do programa de referenciação, este despacho torna obrigatória a utilização de telerrastreio dermatológico, associando a imagem à adequada informação clínica na referenciação para a primeira consulta de especialidade hospitalar de dermato-venereologia realizada pelos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde, salvo nos casos em que o doente não tenha manifestado o seu acordo.
Mais refere que quem referencia deve enviar cópia da declaração escrita de recusa do cidadão utente da obtenção de imagem para poder processar a referenciação à especialidade hospitalar de dermato-venereologia.
Caberá à Administração Central do Sistema de Saúde, I. P. (ACSS, I. P.), em articulação com os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. (SPMS, E. P. E.), e as Administrações Regionais de Saúde, I. P. (ARS, I. P.), assegurar a infraestrutura tecnológica necessária ao recurso ao telerrastreio dermatológico nos cuidados de saúde primários, devendo proceder à simplificação do processo de aquisição, tratamento e integração da imagem, e à monitorização e avaliação de todo o processo, com implementação de mecanismos de incentivo e penalização associados a uma adequada prática de realização do telerrastreio dermatológico.
O despacho produz efeitos a partir do dia 1 de outubro de 2018.

 

2. Questões de natureza deontológica relacionados com o exercício do médico especialista em Medicina Geral e Familiar

2.1. A participante levanta a questão de que poderá estar em causa a capacidade de resposta dos serviços para fazer cumprir os procedimentos descritos no despacho na medida em que existe apenas uma infraestrutura tecnológica para um conjunto de 3 unidades funcionais envolvendo um número superior a 20 médicos.
Sobre este aspeto, o Despacho 6280/2018 do SEAS é claro na atribuição da responsabilidade pela criação e manutenção da infraestrutura tecnológica necessária ao recurso ao telerrastreio dermatológico nos cuidados de saúde primários. Naturalmente que será necessário garantir o funcionamento da tecnologia necessária à realização dos procedimentos, ao nível da aquisição de imagem e da sua transmissão para que o telerrastreio seja efetivo: é competência do médico especialista em Medicina Geral e Familiar, enquanto líder da equipa multiprofissional nos Cuidados de Saúde Primários, verificar o grau de funcionamento dos equipamentos e relatar aos serviços competentes do Ministério da Saúde as inconformidades detetadas, eventualmente incompatíveis com o regular funcionamento dos serviços de assistência médica.

 

2.2. Também alega que a totalidade do procedimento é consumidora de tempo que ultrapassa o estabelecido para cada consulta. Da mesma forma, terá de ser garantido na mancha horária semanal um tempo de atividade não assistencial compatível com o número de tarefas que são pedidas aos médicos de família, sem prejuízo do horário semanal de trabalho legalmente estipulado e da assistência e acessibilidade devidas à população de cada lista.

 

2.3. O papel do médico na referenciação
O papel do médico é prestar os melhores cuidados ao seu alcance às pessoas que a ele recorrem, agindo sempre com correcção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano. (Regulamento de Deontologia Médica, 2016) No caso específico, o especialista em Medicina Geral e Familiar é um médico pessoal, treinado nos princípios da sua disciplina, principalmente responsável pela prestação de cuidados abrangentes e continuados a todos os indivíduos que o procurem, independentemente da idade, sexo ou afeção. Cuida de pessoas no contexto das suas famílias, comunidades e culturas, respeitando sempre a sua autonomia. Reconhece ter uma responsabilidade profissional para com a sua comunidade. Ao negociar planos de ação com os seus utentes, integra fatores físicos, psicológicos, sociais, culturais e existenciais, recorrendo ao conhecimento e à confiança gerados pelos contactos repetidos. Exerce o seu papel profissional promovendo a saúde, prevenindo a doença e prestando cuidados curativos, de acompanhamento ou paliativos, quer diretamente, quer através dos serviços de outros, consoante as necessidades de saúde e os recursos disponíveis no seio da comunidade servida, auxiliando ainda os pacientes, sempre que necessário, no acesso àqueles serviços. (Definição europeia de Medicina Geral e Familiar, WONCA, 2011) Resulta desta definição internacionalmente aceite que o médico nos Cuidados de Saúde Primários recebe e orienta os cidadãos nas suas necessidades de saúde, seja diretamente no seu exercício assistencial, seja por referenciação a outros profissionais, médicos ou não médicos, na resolução dos seus problemas de saúde. A referenciação é um processo comum nas consultas em Medicina Geral e Familiar e deriva da necessidade de complementar o diagnóstico através de técnicas mais específicas não existentes nos Cuidados de Saúde Primários, de decidir ou implementar determinadas terapêuticas específicas de outras especialidades, quando se torna necessária uma segunda opinião sobre a doença ou sobre procedimentos preventivos, seja por necessidade do médico ou por opção do doente a que tem direito conforme a carta dos direitos dos utentes, ou finalmente quando é imposta por via de um procedimento administrativo ou judicial. A referenciação obedece à lógica da comunicação entre médicos, descrita no art.º 41.º do Regulamento Deontológico como o dever de comunicar, sem demora, a qualquer outro médico assistente, os elementos do processo clínico necessários à continuidade dos cuidados, sempre que o interesse do doente o exija, o que significa que o médico informa circunstanciadamente o colega a quem referencia o doente sobre os elementos clínicos achados necessários para a continuidade de cuidados. Sabemos que pode não ser fácil descrever algumas lesões cutâneas e que uma imagem pode ajudar, mas o objeto da referenciação não é a lesão em si mas o doente que a apresenta e não se pode distinguir uma da outra. Ao fazer depender o agendamento da obtenção da fotografia da lesão, ainda que acompanhada da descrição clínica, aceita-se o princípio da doença sobre o doente e do sistema de saúde sobre o cidadão, criando desconfiança quanto à competência dos médicos de Medicina Geral e Familiar para avaliação e orientação da patologia cutânea nos seus utentes. Ainda que pudesse estar garantido o agendamento de todas as referenciações realizadas à especialidade de dermatovenereologia, o que não acontece, o facto de fazer depender o agendamento da observação da imagem enviada obriga à existência de profissionais competentes na aquisição da imagem, evitando potenciais situações de iniquidade nos utentes do Serviço Nacional de Saúde, relacionada com a prática ou falta dela em obter imagens fotográficas com qualidade suficiente para poderem servir de elemento diagnóstico no programa de rastreio.

 

2.4. O consentimento informado
O consentimento informado é a base da operacionalização do princípio ético da autonomia que reconhece a pessoa, saudável ou doente, como a principal responsável pela sua saúde, competente para assumir livremente as suas próprias decisões sobre a sua saúde e os cuidados que lhe são propostos. A operacionalização deste princípio implica duas noções distintas e complementares. Por um lado, a informação prestada ao doente que deverá ser completa no sentido de satisfazer a necessidade do cidadão para uma decisão livre e esclarecida. Por outro lado, a anuência (consentimento) com a opção em decisão. Como a Norma 015/2013 de 03/10/2013, atualizada a 04/11/2015, da Direção Geral da Saúde sustenta, “mais do que uma formalidade tendente à obtenção de uma assinatura, na forma escrita, [o consentimento informado] deve constituir um momento de comunicação efetiva, numa lógica de aumento da capacitação da pessoa, fornecendo-lhe as ferramentas necessárias à decisão que vier a assumir, sobre uma intervenção de saúde, assumindo que os princípios basilares da beneficência, em que a proposta do ato surge a bem do doente, e da não-maleficência, que implica a ponderação dos riscos e dos benefícios, estão salvaguardados.” No mesmo documento, estabelece-se que o consentimento deverá ser formulado por escrito, entre outros, nas “gravações de pessoas em fotografia ou suporte áudio ou audiovisual.” Neste sentido, a lógica é informar pela positiva e obter o consentimento ao ato e não obrigar o doente a assinar um qualquer formulário se não entender ou não estiver disponível para a colheita e transmissão da imagem. Acresce que o doente se encontra numa situação de particular vulnerabilidade a partir do momento em que o médico estabelece o diagnóstico ou a suspeita de diagnóstico que levam à referenciação, o que compromete a capacidade de consentir e ainda mais a de dissentir.

 

2.5. Confidencialidade
O princípio da confidencialidade é basilar na relação de confiança entre o doente e o seu médico. É neste princípio que o médico pode pedir e contar com o relato verídico de situações da intimidade da pessoa e se compromete a respeitar os segredos que lhe forem confiados, mesmo após a morte do doente. Na comunicação entre médicos, mantém-se o dever de confidencialidade que é transmitido entre pares e tratado com rigor ético e deontológico, passando os registos para o processo clínico a que só o cidadão e os médicos por si autorizados poderão aceder. É forçoso que os serviços técnicos responsáveis pela articulação do telerrastreio dermatológico garantam que a informação clínica independentemente da forma como é transmitida permanece em estrito sigilo salvo autorização do titular da informação em contrário.

Conclusão

 

O Despacho nº. 6280/2018 de 21 de junho de 2018 do Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Prof Doutor Fernando Araújo (Diário da República, 2.ª série – N.º 123 – 28 de junho de 2018: 17975-7), apresenta-se como um projeto de melhoria do acesso aos serviços hospitalares de dermato-venereologia, cronicamente afetados por um tempo de espera para consulta muito acima do desejado e dos tempos clinicamente adequados. No entanto não podemos concordar em que a solução de um problema grave do sistema de saúde público português possa passar pelo atropelo de princípios éticos e deontológicos basilares. A bem do doente não é possível compactuar com um sistema de referenciação que pode comprometer a sua autonomia, explorar a sua vulnerabilidade, não garantir a confidencialidade dos dados, e condicionar iniquidade no acesso.

 

A solução é a suspensão do Despacho n.º 6280/2011 do SEAS, na sua atual formulação, e correção dos aspectos aqui focados com o objetivo de proporcionar um real benefício aos cidadãos utilizadores do Serviço Nacional de Saúde, garantindo que estão efetivamente no centro do sistema, e que os serviços de saúde se constituem e funcionam de acordo com os seus legítimos interesses.