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Pandemia COVID-19: o desafio à comunicação e à relação médico-doente

Autora: Maria João da Cunha, médica interna de Formação Especifica em Medicina Geral e Familiar na USF Amadeo de Sousa-Cardoso, Amarante (ACES Tâmega I – Baixo Tâmega)

 

O momento em que que escolhi o tipo de médica que iria ser no futuro, foi quando entendi que aquilo que mais valorizava enquanto doente – a relação que estabelecia com o/a médico/a que me estava a tratar. A capacidade da outra pessoa interpretar o que eu sinto, além do que o que transmito com as palavras. Porque muitas vezes não somos capazes de exprimir tudo o que sentimos, e o médico que atingia esse ponto de compreensão era, para mim, o mais completo. Assim, há três anos, assinei aquela que já tinha sido a minha decisão muitos anos antes: ser médica de família!

Enquanto interna da especialidade que prima pela relação médico-doente, passei os primeiros anos a estudar ao detalhe o exemplo que encontro na minha orientadora de formação e nos outros médicos com os quais trabalho. Procurei compreender o que faz com que os doentes saiam da consulta satisfeitos e compreendidos, para poder mimetizar na minha própria prática e oferecer uma experiência igualmente gratificante aos utentes.

Desde cedo, na faculdade, aprendemos que a fase de preparação do contexto da consulta é tão importante como as etapas que se seguem. Nessa fase, asseguram-se as condições físicas e de conforto – retira-se o máximo de obstáculos que dificultem a comunicação e que distraiam a atenção do utente que temos à frente. Como numa peça de teatro, o utente é o ator que entra em palco e nós (médicos) somos a sua audiência. Além disso, aprendemos que a comunicação é um comportamento e não um simples processo de transmissão de informação. Assim, aquilo que é dito não é mais nem menos importante do que o que não é dito (comunicação não verbal), ambas são essenciais e complementam-se! – Ambas são postas em cima da mesa durante a consulta e cabe ao médico interpretá-las.

A pandemia Covid-19 veio abalar o nosso dia-a-dia, alterar a nossa vivência em comunidade e redefinir a maneira como praticamos Medicina. Os Cuidados de Saúde Primários mantiveram os “serviços mínimos” a funcionar em contexto presencial, mas viram-se forçados a privilegiar o contacto não presencial, sempre que possível, para todos os restantes cuidados de saúde. Nas Unidades de Saúde, foi ativamente promovido o contacto via telefónica ou eletrónica. O objetivo era evitar a todo o custo a deslocação desnecessária às unidades de saúde, reduzindo dessa forma o risco de infeção dos utentes e dos próprios profissionais de saúde.

Os esforços hercúleos das equipas de saúde para melhorar a acessibilidade por telefone é incalculável para muitos dos utentes. Os recursos (humanos e físicos) disponíveis são manifestamente insuficientes para cobrir as necessidades de toda a população, mas estamos todos a fazer o melhor que conseguimos com os parcos meios que temos ao nosso dispor.

Entre as consultas consideradas “serviços mínimos”, ou quando o quadro do doente exigia uma avaliação presencial, o utente depara-se com um novo cenário. Encontra um consultório com tantas barreiras como as que consegue imaginar – é convidado a sentar-se a dois metros de distância com uma marca no chão que delimita “o território médico” e o “território do utente”, uma divisória em acrílico, imaculadamente limpa e transparente ao qual acrescem todos os (desconfortáveis, mas necessários) equipamentos de proteção individual, constituindo assim uma terrível barreira à comunicação e à qualidade da consulta.

Do lado médico, além das situações presenciais já mencionadas, passamos a lidar diariamente com dezenas de contactos não presenciais, entre os quais a “teleconsulta”.

Ainda que a teleconsulta seja um recurso inestimável à acessibilidade de muitos utentes e com um enorme potencial nesta altura de crise, estaremos preparados para este tipo de consulta? Numa sociedade onde o Regulamento Geral de Proteção de Dados ditava muitos dos nossos atos, vemos que as questões legais associadas à prática da telemedicina ainda não estão bem definidas (nomeadamente no que diz respeito à confirmação da identidade do utente, à garantia da privacidade dos dados e à certificação do consentimento verbal). Faltam protocolos, ou outras medidas, que garantam a proteção da atividade médica e que, simultaneamente garantam a privacidade do doente.

Além disso, a teleconsulta possibilita um acesso mais simples e rápido aos serviços de saúde. Mas como moderar o acesso? Cair no facilitismo, acessibilidade sem limites e sem responsabilização do utente, tem culminado no aparecimento de pedidos de teleconsulta sem motivos que verdadeiramente o justifiquem, o que consome tempo e recursos que poderiam ser usados em favor de utentes com necessidades reais de ajuda médica. Quando não há uma moderação/agendamento adequado, chegamos a ter dezenas a uma centena de contactos por dia. Mas, se calhar, mais do que colocar regras e limites, há que elucidar a população que servimos e responsabilizá-la para a gestão equilibrada daquele que é um recurso limitado, possibilitando igualdade de acesso para os que realmente necessitam.

Além destas questões éticas e de gestão, a minha maior barreira com esta mudança na tipologia de consulta, foi a consequente mudança na comunicação. Perder o acesso aquilo que “não é dito”. Já não é possível reconhecer um “encolher de ombros”, uma “postura defensiva” ou uma lágrima no canto do olho. Não fomos treinados a interagir desta forma, o que faz com que parte da informação já não seja compreendida. Enquanto médica, saio frustrada deste tipo de consulta e acredito que crie uma certa desilusão e angústia no utente. No entanto, tenho consciência de que não sou a única profissional de saúde com este sentimento… e, observando os colegas que me servem de exemplo, sinto que a adaptação a este “novo normal” com a sua “nova” prática clínica, está a conduzir a um lento e progressivo burnout da classe médica – Colegas que fizeram da Medicina Geral e Familiar carreira e vida, que se agarram ao trabalho com paixão todos os dias e que me inspiraram a seguir este percurso, mas que, na tentativa de manterem os níveis dos cuidados através das tecnologias, e devido ao volume de trabalho diário, ficam exaustos, frustrados e desiludidos com a sua atividade. O erro que surge como resultado das alterações do foro biopsicossocial do médico são uma realidade e é urgente encontrarmos estratégias que o previnam.

Há que valorizar a capacidade de adaptação do Serviço Nacional de Saúde nestes tempos de dificuldade. A teleconsulta, um dos mecanismos adaptativos, foi essencial para conseguirmos dar resposta a problemas dos utentes, mesmo à distância. Mas, ainda que eu reconheça o potencial e os benefícios inerentes a esta tipologia de consulta, tenho, também, muito receio da falta de legislação e protocolos, bem como das falhas que podem advir da ausência de um exame físico ou das falhas da comunicação no seu todo.

Na minha perspetiva, a teleconsulta é um recurso a manter e a aprimorar no futuro, para benefício de determinados utentes, mas que, na minha opinião, nunca conseguirá substituir por completo a consulta presencial.