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Os pores do sol e a Saúde na Guiné Bissau

Autor: Maria José Costeira,

Consultora de Neonatologia do Hospital Senhora da Oliveira- Guimarães

 

Integrado no protocolo assinado entre o Instituto Marquês Valle Flor e o Hospital Senhora da Oliveira- Guimarães, desloquei-me à Guiné Bissau no âmbito do Projeto PIMI II. Este projeto tem como objetivo major a redução da mortalidade materna e infantil, abrangendo todo o País, sendo uma iniciativa do IMVF, com a colaboração e financiamento da UE e Instituto Camões.

 

Os pores do sol e a Saúde na Guiné Bissau

 

Os pores do sol na Guiné Bissau são ímpares, de uma beleza cativante e envolvente! Duas razões que contribuem para tal são a pouca luz do entardecer que nos impede de ver a realidade de forma nua e crua, tornando os detalhes e pormenores mais ténues e pouco nítidos, adoçando alguns aspetos e, por outro lado, uma conjugação de elementos da atmosfera que condicionam a dispersão dos raios solares…

Mas não é só a atmosfera meteorológica que é particular na Guiné Bissau. De facto, verificam-se um conjunto de circunstâncias relacionadas com a saúde que são peculiares a este país que, embora mantenha indicadores de saúde, sociais, demográficos e de desenvolvimento global dos mais baixos do mundo (só para ilustrar, e apesar dos números reais variarem consoante as fontes,  o índice de desenvolvimento humano é de 0.455, coeficiente de Gini 0.47, taxa de mortalidade infantil 50%0, esperança média de vida ao nascimento 57 anos1), por outro lado, usufrui dum manancial de ajuda internacional e da participação de múltiplos benfeitores, nos quais Portugal ocupa uma posição de destaque.

Efetivamente, analisando a realidade Guineense o que mais se destaca é a enorme ajuda internacional, a multiplicação dos projetos, de ONGs e de intervenções, desde programas específicos e focais a projetos abrangentes e latos, em todas as áreas, passando obrigatoriamente pela saúde e pela formação dos profissionais de saúde, incluindo a proliferação de projetos de cariz eminentemente solidário.

Todo este esforço internacional é responsável por (alguma) melhoria dos indicadores de saúde, ainda que a melhoria não seja proporcional ao investimento. Uma das razões para tal é que muitos indicadores considerados de saúde são na realidade indicadores de desenvolvimento global, não dependendo somente das condições e do acesso aos cuidados de saúde, mas também das infra estruturas do país, saneamento, vias de comunicação, transportes, nutrição, entre outros factores. Por outro lado, a ajuda internacional não é objeto duma gestão global, não sendo feita  qualquer articulação entre os diferentes projetos, originando que os recursos disponibilizados tenham uma eficácia relativa, limitada no tempo, não sustentada e não continuada, problema esse claramente identificado no Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário elaborado pelo Ministério da Saúde Guineense2.

Um outro factor contributivo para esta situação é a qualidade da formação dos profissionais de saúde (e porventura de outras áreas), nomeadamente enfermeiros e médicos: existem várias escolas de enfermagem (nem todas certificadas), o ensino médico pré-graduado é maioritariamente realizado pela Faculdade de Medicina de Bissau em parceria com a Faculdade de Medicina Raúl Diaz Arguelles, que confere uma titulação em “Medicina Geral Integral” (havendo também alguma formação via Escola Nacional de Saúde e do convénio com o governo Brasileiro pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), praticamente não existindo formação médica pós –graduada.

Dada a relação histórica e a proximidade entre Portugal e a Guiné Bissau, bem como o peso da cooperação entre os dois países4, surpreende que esta realidade não seja ainda tema de maior discussão e atuação nos fóruns da diplomacia da saúde, nos Ministérios da Saúde, Negócios Estrangeiros e do Ensino Superior.

Do lado do estado Português há igualmente uma multiplicidade de atores e intervenientes desde a Cooperação Portuguesa via Instituto Camões, passando pela Direção Geral de Saúde, CPLP, Ordem dos Médicos, Fundação Calouste Gulbenkian, havendo projetos e acordos focalizados em algumas áreas (por exemplo, Oncologia, Cardiologia Pediátrica) e com algumas universidades e instituições de ensino (FMUC, UBI, IHMT, INSA, a título de exemplo).

Esta desatenção e desarticulação da interface nacional é de algum modo surpreendente, pois está-se a desperdiçar uma janela de oportunidade a vários níveis:

  • Do ponto de vista da formação:

Esta área corresponde ao eixo 1 (Formação e desenvolvimento da força de trabalho e saúde) do Plano Estratégico da Cooperação em Saúde da CPLP3, havendo uma intenção clara de reforço da mesma.

– a nível do ensino médico pré-graduado não há um envolvimento estruturado do estado Português, permitindo algumas intervenções focais dum ou outro estabelecimento de ensino- faria talvez mais sentido um protocolo de ensino médico pré-graduado entre os dois estados, envolvendo as diferentes Escolas Médicas e Faculdades de Medicina Portuguesas.

– a nível do ensino médico pós-graduado seria crucial o envolvimento da Ordem dos Médicos e respetivos Colégios de Especialidade, desenhando programas formativos adequados à realidade Guineense, estruturados, incluindo os especialistas Portugueses disponíveis para colaborar mas, acima de tudo, evitando a realização de formações ad hoc que se verificam, realizadas por médicos Portugueses na Guiné, carecendo de articulação e de integração com a realidade local (formações essas maioritariamente autorizadas como comissões gratuitas de serviço, algumas como licenças sem vencimento, logo com custos para o estado Português); eventualmente poderia ser estratégico avançar somente com algumas especialidades como sejam Anestesiologia, Obstetrícia/Ginecologia, Pediatria, Infeciologia e Cirurgia Geral, abrangendo assim um leque significativo de patologia.

– seria pertinente incluir na formação temas não clínicos como a gestão de unidades de saúde, qualidade e segurança do doente ou governação cínica.

2- Do ponto de vista assistencial:

– a nível das juntas médicas e da prestação de assistência médica a cidadãos Guineenses evacuados seria importante agilizar e uniformizar os procedimentos, priorizar adequadamente os casos, propiciando intervenção atempada, trabalho este maioritariamente na dependência  da DGS5;

– ainda do ponto de vista assistencial, e considerando a dificuldade que existe em cumprir os números mínimos de alguns tipos de cirurgias ou de intervenções, seria estratégico para os internos da formação específica de algumas especialidades poderem usufruir desta população ou ainda, para o cumprimento dos números mínimos de doentes tratados nos Centros de Referência…

– por outro lado, o acesso de internos da formação específica a uma população de doentes diferentes permitiria o conhecimento e estudo de patologias menos frequentes em Portugal, ampliando a sua formação.

3- Do ponto de vista de investigação (eixo 4 do Plano Estratégico da Cooperação em Saúde da CPLP):

– esta é uma área já em desenvolvimento, com múltiplos projetos das diferentes universidades portuguesas, com financiamento nacional e internacional, embora fosse passível dum incremento significativo.

 

Na realidade Guineense trabalham ainda um conjunto de instituições/associações, laicas e religiosas, ONGs nacionais (Instituto Marquês Valle Flor, Saúde em Português, Assistência Médica Internacional, a título de exemplo) e internacionais, com um cariz misto entre atividade assistencial, formativa e de solidariedade que, naturalmente, também beneficiariam de articulação e de gestão integrada.

Várias destas questões estão já identificadas, algumas incluídas no Plano Estratégico da Cooperação em Saúde da CPLP 2018-2021 ainda em fase de implementação. Uma diferente atitude do estado Português em relação aos países lusófonos, através da articulação e gestão integrada da cooperação na área da saúde, permitiria alcançar resultados efetivos e sustentados, enquadrando-se numa estratégia  double win, com benefícios para ambos os países, ficando a Guiné Bissau mais perto de atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Naturalmente que estas medidas não resolveriam o problema da Saúde na Guiné, havendo ainda um longo caminho a percorrer pelo estado Guineense, tendo de passar forçosamente pela estabilidade política, política de remuneração, distribuição e fixação dos profissionais de saúde, políticas de saúde, financiamento adequado, sistemas de informação, entre outros.

 

Bibliografia:

1- GUINEA-BISSAU Fact sheet of Health Statistics 2018 (www.aho.afro.who.int) 2- Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2008- 2107; MINSAP

3- Plano Estratégico da Cooperação em Saúde da CPLP 2018-20121; CPLP

4- Estratégia de Cooperação da OMS com os Países 2009-2013 Guiné Bissau

5- Decreto n.º 44/92, Diário da República n.º 243/1992, Série I-A de 1992-10-21