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O tempo do Médico de Família cuidar de si

Autora: Margarete Costa, Médica Interna do 4º ano de MGF (USF Fiães, ACeS Entre Douro e Vouga I)

 

O desejo de cuidar do outro está presente, desde cedo, na maior parte dos médicos, sendo uma motivação frequente para abraçar esta profissão. Quase sempre muito motivados, ao mesmo tempo que um pouco assustados, prometemos fazer o possível por prestar os melhores cuidados de saúde aos nossos utentes, sejam eles preventivos, curativos ou, tantas vezes, apenas estar lá para o ouvir desabafar. Nas características da Medicina Geral e Familiar, estão bem presentes a promoção da saúde e a prevenção da doença, atividades que o Médico de Família dos dias de hoje leva a cabo de forma diligente. As metas são cada vez mais ambiciosas, o tempo de consulta cada vez menor, o número de utentes na lista cresce de dia para dia, as burocracias multiplicam-se, a lista de palavras-passe não para de crescer, os cliques informáticos transformam o dia de trabalho numa sucessão de bloqueios… No meio de tanta confusão, e com uma sobrecarga cada vez maior, todos estes aspetos contribuem para o burnout do médico e, portanto, para a desmotivação… De quantas formas diferentes estará o médico a colocar em causa a sua saúde enquanto cuida da saúde dos demais?

Entre uma secretária, um computador, uma cadeira… O Médico de Família passa grande parte do seu dia acompanhado por estes três objetos. O tempo que passa sentado vai-se acumulando e o risco para a sua saúde também. Cada vez que o médico questiona o nível de atividade física do utente e cada vez que dá um conselho, inúmeras vezes repetido: “deve praticar mais exercício físico!” está, muitas vezes, a falar para si próprio. No entanto, a pressão do trabalho mantem-se, as jornadas de trabalho são longas e o conselho, que tantas vezes lamentamos que outros não cumpram, cai em saco roto quando se aplica a nós próprios.

O tempo sentado prolongado tem-se mostrado um fator de risco para todas as causas de mortalidade[1], podendo mesmo ser independente do nível de atividade física. Uma meta-análise encontrou um aumento de risco de 2% por cada hora sentada diária adicional, de mortalidade por todas as causas depois de ser tida em conta a atividade física[2]. E convenhamos, não me parece que sejamos campeões no que diz respeito a cumprir as orientações de 150 minutos de atividade física moderado por semana.

Falando um pouco sobre a saúde mental, o «Estudo Nacional de Burnout na Classe Médica», realizado em 2016, encontrou um nível elevado de exaustão emocional em 66% da população, em 39% um nível elevado de despersonalização e em cerca de 30% uma elevada diminuição da realização profissional.[3] Estes dados são preocupantes, uma vez que indicam não só um maior risco para a saúde mental da classe médica, como a possibilidade de perdermos a capacidade de prestar os melhores cuidados aos nossos utentes.

Com certeza, todos conseguiremos apontar, no mínimo, uma mão cheia de coisas que gostaríamos que mudassem no nosso local e condições de trabalho, uma boa parte dela estão dependentes do governo e de um próximo orçamento de estado, outras a cargo das chefias… Mas e enquanto isso não chega? Então e nós? O que podemos mudar em nós para nos sentirmos mais satisfeitos?

Podemos começar por pensar na nossa saúde física e procurar estratégias de sermos mais ativos no nosso local de trabalho, onde passamos um terço ou mais do nosso dia. Evitar cair na tentação de pensar apenas na próxima receita a emitir ou no exame que está por registar e, pelo menos, por cada hora sentados fazer uma pausa ativa (ex.: caminhar no corredor, levantar e realizar alguns exercícios)[4]. Isto vai permitir relaxar, ativar o sistema muscular e, eventualmente, aumentar a produtividade da tarefa que temos que desempenhar a seguir. Aproveitar todas as oportunidades para levantar, seja ir à sala de espera chamar os utentes ou falar ao telefone. Porque não realizar as reuniões de serviço em pé, sempre que possível? Quem nunca deu conselhos semelhantes aos seus utentes? Quem os pratica com regularidade?

Quanto à saúde mental, fomentar um bom ambiente laboral é essencial. A exigência não é contrária à gentileza, que deve estar presente entre pares, e que no meio da azáfama podemos ser levados a ignorar. É com os colegas de trabalho que passamos a maior parte do nosso dia, pelo que devemos tentar ser facilitadores e não obstáculos na vida de cada um. Trabalhar mais e melhor em equipa e evitar o bullying sobre os colegas, que muitas vezes ocorre inadvertidamente. Já que é mais difícil controlar a sensação de opressão fruto de todas as decisões que não dependem de nós, devemos tentar intervir no que está ao nosso alcance e que possa contribuir para melhorar o nosso estado de espírito e o dos restantes elementos da equipa.

Tentar construir um horário de trabalho capaz de dar resposta às exigências da nossa lista de utentes, enquanto responde também à necessidade do médico de tempo para as múltiplas tarefas não assistenciais que tem a desempenhar, é fundamental para evitar uma sobrecarga de trabalho e o burnout do médico.

Dedicarmo-nos a atividades que nos dão prazer e que nos permitam descomprimir depois de um dia de trabalho intenso, porque a vida não é só trabalho.

Por último, não ter medo de mudar para fazer melhor.

Que façamos todos por ser cada dia melhores médicos e médicos mais felizes!

 

Referências Bibliográficas

  1. Van der Ploeg HP, Chey T, Korda RJ, Banks E, Bauman A. Sitting time and all-cause mortality risk in 222 497 Australian adults.
  2. Josephine Y. Chau, Anne C. Grunseit, Tien Chey, Emmanuel Stamatakis, Wendy J. Brown, Charles E. Matthews, Adrian E. Bauman, Hidde P. van der Ploeg. Daily Sitting Time and All-Cause Mortality: A Meta- Analysis.
  3. Burnout na Classe Médica Estudo Nacional – Principais resultados – Sessão de Apresentação Ordem dos Médicos, Lisboa 28/11/2016
  4. Aconselhamento Breve Para A Promoção Da Atividade Física. Ferramentas de apoio. Lisboa: Direção-Geral da Saúde, 2018.