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O papel dos Cuidados de Saúde Primários em “Tempos de Pandemia”

Autor: Ana Sara Gomes da Silva, médica interna de Medicina Geral e Familiar na USF Manuel Rocha Peixoto (ACeS Cávado I)

 

Resumo: Como médica de família, dando o meu contributo no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, dos quais me orgulho particularmente nesta altura difícil, revejo-me nas palavras do Professor Doutor Sakellarides, “Para tempos extraordinários como este, precisamos de ir para além do obrigatório, (…) aumentar a resiliência face à adversidade e acreditar que havemos de superar este desafio.”

 

A 11 de Março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a infeção provocada pelo vírus SARS-CoV-2 como pandemia mundial. Em Portugal, perante esta situação de calamidade pública, o Presidente da República decretou o Estado de Emergência Nacional1. Vivem-se tempos conturbados!

Contudo, mais de um mês após a confirmação dos primeiros casos de infeção no nosso país, posso concordar que o balanço é particularmente positivo. Na saúde merecem destaque, pela positiva, a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde, em particular dos profissionais de saúde na dita “linha da frente”. É de salientar o envolvimento dos Cuidados de Saúde Primários, a sua célere adaptação às circunstâncias, adotando diferentes procedimentos, em constante readaptação, com o objetivo de garantir uma resposta adequada, atempada e articulada, para salvaguardar a manutenção da saúde pública e a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

A Medicina Geral e Familiar assume uma posição privilegiada na Medicina, conhecendo bem o contexto do indivíduo e da sua família, compreende as condicionantes subjacentes ao seu estado de saúde e doença. De acordo com a World Organization of Family Doctors (WONCA)2, o Médico de Família surge como o primeiro ponto de contacto médico com o sistema de saúde, proporcionando acesso aberto e ilimitado, e gerindo todos os problemas de saúde, independentemente das características individuais da pessoa. Utiliza eficientemente os recursos de saúde, coordenando os cuidados com outros profissionais e assumindo-se na advocacia do doente sempre que necessário. O seu processo de tomada de decisão é particular, determinado pela prevalência e incidência da doença na comunidade, gerindo simultaneamente problemas agudos e crónicos, que frequentemente se apresentam de forma indiferenciada num estadio precoce do seu desenvolvimento e que podem requerer intervenção célere. Lida com os problemas de saúde nas suas dimensões física, psicológica, social, cultural e existencial. Estes são “médicos pessoais”, que prestam cuidados abrangentes e continuados, promovem a saúde, prevenindo a doença e providenciando cura, cuidados ou paliação2.

Existe evidência de que sistemas de saúde alicerçados nos Cuidados de Saúde Primários são mais efetivos clinicamente, com menores custos2. E, de acordo com especialistas nas áreas da infeciologia e da pneumologia, este envolvimento dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal pode explicar a diferença significativa dos resultados alcançados pelo nosso país em relação às realidades de países como Itália e Espanha, mais centrados na rede hospitalar3.

O planeamento dos cuidados de saúde é fundamental, no sentido de adequar a prática clínica às patologias com maior impacto na qualidade de vida e na mortalidade, promovendo a sua prevenção, deteção atempada e tratamento.

Nos últimos anos, a prestação de cuidados de saúde de elevada qualidade, a par da instituição de um Programa Nacional de Vacinação, em 1965, universal e gratuito, contribuíram de forma determinante para uma diminuição da morbimortalidade por doenças infeciosas. As doenças cardiovasculares constituem, atualmente, a principal causa de morte no mundo, determinando uma importante morbimortalidade ao nível nacional4. Estas representam uma parte importante da atividade do Médico de Família, que se dedica à sua deteção precoce, tratamento e orientação, mas fundamentalmente atuando na sua prevenção primária, pela educação para a saúde, promovendo a adoção de hábitos e estilos de vida saudáveis. Ora, nas últimas semanas, perante a eclosão da epidemia de uma infeção para a qual, infelizmente, ainda não existe uma vacina, este paradigma alterou-se.

Contudo, e apesar das dificuldades na capacidade e no acesso aos testes de diagnósticos, na carência de equipamentos de proteção individual (EPI) e na falta de material diferenciado, a rede assistencial soube adaptar-se à necessidade de estabelecer circuitos diferenciados para manter a prestação dos melhores cuidados a todos os doentes, aos infetados com o novo vírus, mas também a todos os outros “com as doenças que sempre existiram”. Os hospitais estão a transformar-se para dar resposta aos doentes graves, enquanto nos cuidados de saúde primários, as equipas de saúde das USF/UCSP asseguram a vigilância de utentes suspeitos ou com COVID-19 que, por se apresentarem clinicamente estáveis, se encontram em isolamento no domicílio. Fazem-no a par da sua atividade diária, dando também resposta às doenças agudas não relacionadas com esta infeção e mantendo o acompanhamento dos grupos vulneráveis, como as crianças e as grávidas, e de risco, nomeadamente os doentes com doenças crónicas, predominantemente do foro cardiovascular.

Como médica interna de Medicina Geral e Familiar, dando o meu contributo no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, dos quais me orgulho particularmente nesta altura difícil, revejo-me nas palavras do Professor Doutor Sakellarides, “Para tempos extraordinários como este, precisamos de ir para além do obrigatório, precisamos de adotar voluntariamente códigos de conduta próprios destes tempos, (…) fazer novas aprendizagens e adquirir novas competências, aumentar a resiliência face à adversidade e acreditar que havemos de superar este desafio.”5

 

Bibliografia:

  1. Direção Geral da Saúde. Norma nº 004/2020 de 23/03/2020 atualizada a 25/04/2020
  2. The European Definition of General Practice / Family Medicine. WONCA EUROPE 2011 Edition
  3. Froes, Filipe; Diniz, António – “Balanço dos primeiros 30 dias da resposta à pandemia: o bom, o menos bom e o futuro próximo” – Artigo de Opinião – Expresso 10-04-2020
  4. PORDATA – Base de Dados Portugal Contemporâneo. [online] Disponível em: http://www.pordata.pt/
  5. Sakellarides, Constantino – “Estado de guerra”: nada pode ser como de costume” – Artigo de Opinião – Diário de Notícias 25/03/2020