Autor: Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos
A Portaria 45/2018 que confere o grau de licenciado em “medicina tradicional chinesa” (MTC) a qualquer cidadão que frequente um curso superior de quatro anos nesta área representa uma ameaça à saúde dos portugueses e uma ofensa à comunidade científica.
Uma ameaça e uma ofensa com o alto patrocínio do ministro da Saúde e do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que decidiram, por portaria, validar cientificamente práticas sem qualquer base científica comprovada.
O ministro da Saúde disse publicamente que queria deixar uma marca no seu mandato. Pois bem, aí está ela. Esta já ninguém lha tira. Pelo menos a intenção. E logo na companhia do ministro da Ciência! Em vez de promoverem e defenderem a saúde das pessoas e a ciência com base na investigação e na metodologia científicas, como é sua obrigação, vêm transmitir aos portugueses que, afinal, a saúde e a ciência não necessitam de ter valor científico. Pode ser qualquer coisa. Uma pseudociência, uma banha da cobra. Com esta atitude, estes ministros aumentam de forma exponencial o risco para a saúde e para as finanças dos portugueses, e desvalorizam o papel da ciência e da investigação. E sem qualquer responsabilidade pela vida das pessoas e pelos atrasos nos diagnósticos e tratamentos de situações potencialmente graves. Uma ofensa imperdoável a todos aqueles que dedicam milhares e milhares de horas a estudar, a investigar, a diagnosticar e a tratar doentes, a promover a saúde e a prevenir a doença.
Está em causa um retrocesso inaceitável relativo à essência da fundamentação científica da investigação e da evolução da inovação tecnológica e terapêutica da medicina e da ciência. Uma decisão que poderá ter tido por base a cedência a pressões e interesses comerciais e publicitários. Nem sequer tiveram a dignidade de exigir que o termo “medicina tradicional chinesa” fosse substituído por “práticas tradicionais chinesas”, deixando em aberto o equívoco quanto à componente (inexistente) de formação médica. Chamar-lhe medicina é um perfeito logro. De resto, qualquer cidadão informado entende que não faz qualquer sentido existirem profissionais licenciados habilitados ao uso de terapêuticas que não funcionam.
Só existe uma medicina a nível internacional (a convencional), cujos progressos, com todos os seus defeitos e limitações, têm sido notáveis. Doenças fatais foram erradicadas e outras são hoje passíveis de cura ou controlo como doenças crónicas. Os avanços na medicina são robustos porque a eficácia e os efeitos colaterais de cada tratamento médico são minuciosamente avaliados em múltiplos estudos clínicos publicados e debatidos a nível internacional. Se as ditas terapêuticas alternativas, onde se incluí a MTC, provassem a sua eficácia e segurança usando a metodologia científica, não teriam o nome de alternativas. Seriam incorporadas na medicina convencional, na ciência. Não há pois uma medicina ocidental e uma medicina oriental, nem uma medicina moderna e uma medicina tradicional.
As práticas tradicionais chinesas não são baseadas em conhecimento validado cientificamente. As revisões organizadas da literatura científica existente, que combinam resultados dos principais ensaios clínicos em que foi seguida a metodologia científica, não apresentam prova sólida da sua eficácia e segurança. Bem pelo contrário. Sem validação científica, devidamente comprovada, é a saúde das pessoas que fica em sério risco.
Os ministros criaram um problema crítico que lhes cabe resolver. Sabemos que é preciso coragem para fazer frente aos interesses económicos dominantes. Mas só é ministro quem aceita defender o interesse público com prejuízo da sua vida pessoal e profissional. Quando a pressão é exagerada existe sempre uma saída. E no caso do ministro da Saúde não me parece que possa, desta vez, responsabilizar o ministro das Finanças. Estou em crer que os ministros em questão não querem manchar o seu edifício ético e moral, induzindo os portugueses em erro e colocando o interesse público na “gaveta”. Apesar da imunidade dos detentores de altos cargos políticos, a responsabilidade pelas centenas ou milhares de pessoas que possam vir a ser realmente prejudicadas por esta decisão vai sempre existir. De uma forma ou de outra. De resto, não conheço qualquer tipo de penalização aplicada a quem pratica a dita MTC, o que é próprio de quem não se orienta pela ciência.
Numa altura de crise social, em que todos nós, portugueses, nos sentimos injustiçados, e em que o bom senso deveria constituir um imperativo público, este tipo de decisões são inadmissíveis. Não é seguramente uma posição de quem tem a responsabilidade de defender a ciência e a saúde dos cidadãos. Apenas contribuem para aumentar a indignação de quem acredita nos méritos do conhecimento e da ciência, como é o caso dos médicos.
Para os médicos, que tenho o privilégio de representar, é uma honra poder servir os doentes e o país. Os médicos são responsáveis a vários níveis pelo exercício da sua profissão. Têm a obrigação de atuar de acordo com os valores e princípios da ética e as boas práticas, o estado da arte, cumprindo o código deontológico da Ordem dos Médicos. As indemnizações e penas a que são submetidos em caso de erro, negligência ou violação das regras éticas e deontológicas são conhecidas e na sua grande maioria do domínio público. O que parece não ter equivalência nas decisões políticas.
Será que os ministros ignoram o facto de um estudante se tornar médico especialista ao fim de 11 a 13 anos após ter entrado numa Escola Médica, muito estudo, aquisição de competências específicas e prestação pública de múltiplas provas, que lhe permitem o exercício da medicina e auferir um ordenado não compatível com a enorme responsabilidade que têm na sociedade civil? Ou que a progressão profissional dos médicos na carreira médica significa a existência de concursos e a prestação de mais provas públicas? Ou que os médicos, como pilar essencial do SNS, são os principais responsáveis pela melhoria da qualidade dos cuidados de saúde prestados aos cidadãos e pelo sucesso internacional do nosso SNS? Ou que estão associados aos méritos do nosso SNS relatados pela OCDE e pela OMS? Ou que são pressionados a exercerem a sua atividade em condições de trabalho que não dignificam os doentes? Ou que são constrangidos a fazerem serviços de urgência sem limites ou a produzirem cada vez mais números (consultas, cirurgias, procedimentos) em vez de serem estimulados a beneficiar a qualidade da medicina e a relação médico-doente?
Senhor ministro da Saúde, não está a saber honrar a medicina e a ciência que salvam a vida aos doentes. Na nossa memória individual e colectiva permanecerá como o ministro da pseudociência, da “medicina tradicional chinesa”.
A defesa da saúde dos portugueses é uma obrigação da Ordem dos Médicos, não uma atitude corporativista. Devia ser também a primeira preocupação do ministro da Saúde. Desafio quem acredita no Estado de Direito e na democracia a defender a causa da ciência.
Opinião no PUBLICO_Ministro MTC
*Artigo de opinião do Público de 28 de fevereiro de 2018