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“O Médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe” – Estágio de MGF em Cabo Verde

 

Autor: Miguel Alves, Médico Interno de MGF no 4º ano na USF Nova Via (ACeS Espinho/Gaia)

 

Resumo: Com este artigo pretendo partilhar a experiência vivida num estágio de 2 semanas realizado na Ilha de Santiago, em Cabo Verde.

 

Parece que foi ontem, mas a verdade é que já comecei a minha carreira como médico na longínqua data de setembro de 2007, com início no 1º ano do Mestrado Integrado em Medicina, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS). Embora já tenha passado uma década, lembro-me pormenorizadamente do primeiro dia em que entrei no velhinho edifício do ICBAS, prestes a ter a minha primeira sessão de praxe, como caloiro, pelos intimidantes “Doutores”. Uma das coisas em que reparei, nesse primeiro dia, foi numa citação gravada nas paredes do átrio daquele vetusto edifício, proferida pelo Professor Abel Salazar, ilustre patrono do ICBAS: “O Médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe”. A verdade é que na altura não liguei muito a esta frase e, tão pouco, me apercebi do seu alcance. No entanto, de ano para ano, a mesma foi ganhando expressão e forma e, no ano em que concluí o curso, em 2013, já a interpretava de forma totalmente diferente de quando a lera pela primeira vez, exatamente no mesmo átrio, exatamente na mesma parede, seis anos antes.

Nesta fase, em que me encontro no último ano do Internato de formação específica de Medicina Geral e Familiar (MGF), senti que estava na altura de viver uma experiência que fosse para além da Medicina que conhecemos e praticamos no dia-a-dia. Foi com este intuito que decidi fazer um estágio de duas semanas em Cabo Verde. Este estágio surgiu como uma oportunidade de aliar o meu conhecimento médico, com a possibilidade de conhecer uma nova realidade, contactar com uma nova cultura, para conhecer um povo diferente que também me ensinasse algo que pudesse transportar para a minha vida futura.

Falar deste país traz logo à mente imagens de um destino paradisíaco, para umas férias num resort de luxo… mas a verdade é que nestas ilhas africanas há também histórias muito diferentes para contar…

Fiz este estágio, com mais seis colegas de MGF, na cidade da Praia, na ilha de Santiago, onde ficamos distribuídos por 3 Centros de Saúde. Um dos aspetos que me chamou a atenção logo no início do estágio, e que mais me surpreendeu, foram as excelentes condições dos Centros de Saúde: não só eram muito espaçosos, com gabinetes de grandes dimensões, como também estavam muito bem equipados no que diz respeito a material médico e de enfermagem. A organização das consultas é semelhante à dos Centros de Saúde de cá, uma vez que também separam os diferentes tipos de consulta em Saúde Infantil, Saúde Materna, Planeamento Familiar, Saúde de Adultos e “Consulta de Urgência”. Em todos os Centros de Saúde, há também consultas semanais de outras especialidades médicas (Ginecologia-Obstetrícia, Estomatologia, Dermatologia) e Psicologia. Cada Centro de Saúde dá apoio à população da sua área geográfica, onde estão incluídas diferentes comunidades e onde é bem visível a enorme pobreza que existe e as más condições de habitabilidade destas pessoas, realidade muitas vezes desconhecida/ignorada, e que contrasta com a vida luxuosa que vemos estampada nas montras de agências de viagens que promovem o turismo de Cabo Verde.

Eu e uma colega, que ficou alocada comigo ao Centro de Saúde da Achada, tivemos oportunidade de assistir a várias consultas médicas e de enfermagem e ficámos com a noção de como era o seu funcionamento. Foi precisamente sobre essas comunidades da Achada de Santo António que incidiu grande parte do nosso trabalho. Durante estas duas semanas de estágio, juntamente com a Drª Madalena Monteiro, Psicóloga do Centro de Saúde, dirigimo-nos aos bairros e aproximamo-nos dos seus habitantes. No terreno, fizemos variadíssimas sessões de Educação para a Saúde, tendo abordado diversos temas, e foi com muito agrado que sentimos uma grande recetividade por parte dessas populações que, para além de serem bastante interessadas e participativas, foram também muito hospitaleiras. Embora pessoas pobres e com habitações em mau estado e inacabadas, aparentavam ser felizes. Era com orgulho que nos davam a conhecer os seus bairros e faziam questão que entrássemos nas suas casas e convivêssemos com as suas famílias. Fomos igualmente convidados para participar em algumas das suas festas, em que pudemos ter um contacto ainda mais próximo com as comunidades e um melhor conhecimento da sua cultura.

Tivemos ainda oportunidade de ver de perto ações de Saúde Pública, como a aplicação de petróleo em locais de reprodução de mosquitos (vetores da transmissão de várias doenças prevalentes no continente africano, como Malária, Dengue e Zika), para tentar a sua erradicação, e o encerramento temporário de uma escola primária com mais de 1000 alunos, devido à infestação por mosquitos.

Também nos foi dada a possibilidade de visitar duas escolas para apresentarmos um trabalho sobre o corpo humano, a alunos de uma escola primária. Foi uma experiência formidável poder contactar, conviver e brincar com centenas de crianças e, também elas (e os seus professores), nos souberam receber muito bem, querendo dar-nos a conhecer todos os cantos das suas escolas. Contactámos ainda com duas turmas do ensino especial de crianças surdas-mudas e, com elas e a sua professora, aprendemos um pouco de linguagem gestual.

Foram, por isso, experiências fantásticas vividas em Cabo Verde, de onde trago boas recordações, que irei certamente guardar para a vida. Esta aproximação a uma cultura que diverge da nossa… este conhecer de perto uma realidade que é muito diferente da que estamos habituados… este contacto próximo com as crianças nas escolas e com as populações nas diversas comunidades por onde andamos, onde iniciámos algumas novas amizades… é algo que não se aprende na Faculdade de Medicina… é algo que vai mesmo além da própria Medicina, pois não são experiências contadas num livro, mas sim vividas com intensidade.

Colegas, espero, por isso, que tenham ficado com este preceito do Professor Abel Salazar e o vão relembrando pela vida fora:

– “O Médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe”.