+351 21 151 71 00

O lado oculto da pandemia COVID-19

Autora: Cláudia Pinho, Médica Interna do 3º ano de Medicina Geral e Familiar, USF Vale do Vouga

 

Resumo

A meados de março deste ano, o mundo focou toda a atenção no controlo da propagação de um dos vírus mais assustadores da história e devemos estar muito orgulhosos do nosso trabalho. Mas será que não nos estamos a esquecer de nada? Quais serão as consequências das políticas de confinamento, do distanciamento social, do medo e das restrições à deslocação presencial às instituições de saúde?

 

A 11 de Março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a infeção provocada pelo vírus SARS-CoV-2 (COVID-19) como pandemia mundial. Em Portugal, perante esta situação de calamidade pública, o Presidente da República decretou o Estado de Emergência Nacional, levando as famílias portuguesas a mergulhar num confinamento nunca antes vivido.

No meio das lutas mundialmente travadas no combate à propagação do vírus, a OMS e a Direção Geral da Saúde (DGS) foram obrigadas a desenvolver novas normas orientadoras que vieram alterar o paradigma do trabalho dos profissionais de saúde, nomeadamente ao nível da priorização e da acessibilidade atribuída aos utentes.

O impacto da COVID-19 atingiu todos os níveis de cuidados de saúde, principalmente o acompanhamento dado às doenças crónicas e ao tratamento das suas agudizações. O acesso aos serviços de saúde sofreu alterações, criaram-se circuitos distintos para doentes suspeitos e não suspeitos de infeção por COVID-19 e o atendimento presencial foi limitado a situações agudas ou crónicas agudizadas e a vigilâncias inadiáveis, minimizando assim os contactos entre os utentes. Foram também criadas linha telefónicas de apoio, para orientação e priorização de situações de atendimento presencial e o regime de teleconsulta foi, e continua a ser, a chave mestra da gestão atual dos cuidados de saúde em Portugal.

Durante o estado de emergência, as políticas de confinamento, o distanciamento social, o medo e as restrições à deslocação presencial às instituições de saúde, reduziram também o acesso dos utentes aos rastreios, aos tratamentos e acompanhamentos, tanto crónicos como de carácter urgente.  Verificou-se uma menor adesão à terapêutica e um descuidar dos utentes com patologia crónica, que, perante a emergência da pandemia, passaram a considerar a sua doença “um mal menor”. Esta situação foi agravada pelas especulações que foram surgindo, em paralelo ao caos científico vivido. Na busca de um maior conhecimento sobre o vírus, foram levantadas questões que dificultaram o controlo das situações crónicas, nomeadamente a polémica associada à possível interferência dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECAS) com o mecanismo de infeção do vírus, a utilização profilática da hidroxicloroquina, o potencial efeito deletério do ibuprofeno na progressão da doença, assim como diversas fabulações partilhadas pela comunicação social de remédios caseiros com potencial utilidade no combate à infeção pelo COVID-19.

O foco dos profissionais de saúde, dado à infeção pelo COVID-19, foi inevitável, contudo, toda a moeda tem o seu verso e a vida das pessoas com doenças crónicas encontra-se, neste momento, perante diferentes impactos: o causado pela morbilidade e mortalidade provocada pela COVID-19, o impacto da restrição de recursos nas situações urgentes não COVID-19, o impacto da interrupção dos cuidados nas doenças crónicas, e o trauma psicológico associado, com o aumento das doenças mentais, para além do impacto socioeconómico e da pobreza galopantes.

A pandemia arrastou silenciosamente inúmeras consequências que vão sendo reveladas à medida que os dias e os meses avançam desde a sua chegada. O confinamento desacelerou a economia, gerou desemprego, menor produtividade e o aumento dos gastos dos recursos empresariais tanto nos setores públicos como privados. Com isto, surge a pobreza, o menor poder de compra e a necessidade individual e familiar de direcionar os recursos financeiros. Infelizmente, os cuidados preventivos, as atividades de promoção de saúde e as situações menos agudas foram deixadas para segundo plano. A pobreza dificulta o acesso aos cuidados de saúde, aos medicamentos e potencializa estilos de vida menos saudáveis, como o sedentarismo e o consumo de alimentos mais calóricos, que infelizmente são ainda os mais baratos do mercado.

A obrigação de nos mantermos em isolamento social causou mudanças repentinas e gerou stress e incerteza no momento, mas, a curto prazo, já se verifica o impacto destas alterações na saúde mental da população. Esperam-se novos casos de síndrome depressivo e perturbações de ansiedade, assim como o agravamento daqueles já existentes, o que vai conduzir a um aumento da necessidade de recursos em saúde, da incapacidade e absentismo laboral, e consequentemente, o agravamento da pobreza gerada até agora pela pandemia. O cenário que se prevê não é positivo, ainda que as reais consequências sejam difíceis de prever, pela novidade inerente a este vírus.

Contudo, não podemos cruzar os braços. A Medicina Geral e Familiar assume um papel privilegiado nos cuidados de saúde, conhecendo o contexto do indivíduo e da sua família, e as condicionantes subjacentes ao seu estado de saúde e doença, como nenhuma outra especialidade médica. Somos a especialidade que trabalha os níveis de prevenção e que permite um acesso livre e ilimitado aos cuidados de saúde. Enquanto se aguarda o desenvolvimento de uma vacina que proteja as populações mais vulneráveis e suscetíveis de complicações pela infeção COVID 19, podemos trabalhar no sentido de abrandar algumas frentes de impacto desta pandemia. Assim, a nível primordial, é urgente o investimento na criação de postos de trabalho que aumentem a produtividade e reduzam os gastos crescentes com os estados de incapacidade da população, a criação de programas de educação para a saúde que procurem mudar mentalidades e melhorar o acesso da população a alimentos saudáveis e a programas de atividade física regular que sejam promotores da saúde. A nível primário, a vacinação e os cuidados de vigilância de saúde infantil e materna, mantidos a muito custo durante o estado de emergência, e que devem continuar a ser uma prioridade dos cuidados de saúde primários, pelas graves consequências que advêm do seu descuido. A nível secundário, os rastreios, que, quanto mais tempo se mantiverem suspensos, mais difícil será controlar as doenças outrora apelidadas como evitáveis. E, por último, a vigilância e o controlo da pandemia das doenças crónicas, que assombra o mundo desde o início do século XX e que não pode ser esquecida. A vigilância destas doenças deve ser retomada de forma urgente, mas talvez com estratégias diferentes das anteriormente usadas, uma vez que a crise financeira que se prevê não deixará disponível todos os recursos de que antes dispúnhamos.

Pensar no futuro será pensar em manter permanentes os cuidados de higiene e de etiqueta respiratória, será investir em tecnologias que nos permitam monitorizar utentes à distância, priorizando o contacto presencial para as situações que o exijam, evitando voltar aos aglomerados de pessoas nas salas de espera, às listas de espera intermináveis e aos atrasos na prestação de cuidados que vivíamos antes de Março de 2020. O mais difícil será conseguir tudo isto e, ao mesmo tempo, combater a deterioração dos direitos e das condições da população, reforçar a coesão social e os meios de subsistência. A pandemia COVID -19 abriu portas a novos desafios, a muitas dificuldades, mas também nos trouxe a oportunidade de melhorar, de não voltar a cair nos erros que se foram acumulando ao longo de anos, e de ver crescer novos paradigmas nos cuidados de saúde em Portugal. Este é o outro lado da pandemia, aquele que vive nas entrelinhas, a ferida aberta que, a meu ver, ainda podemos controlar.