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O conhecimento pessoal na era da inteligência artificial

Numa era de excesso de informação e da crescente presença da inteligência artificial releva-se a importância de preservar e gerir o conhecimento pessoal. Numa abordagem reflexiva, escreve-se sobre a aprendizagem, o conhecimento e a individualidade integrados numa dimensão coletiva.

Autor: Gustavo Montanha, Anestesiologista / Intensivista

 

A cognição humana deveria interessar a todos, em particular aos trabalhadores do conhecimento, entre os quais estão incluídos os médicos. O principal capital de um médico, é o conhecimento.

A cognição humana engloba processos mentais que permitem adquirir, processar, armazenar e usar informação como conhecimento. Segundo a teoria da cognição distribuída os processos cognitivos (raciocínio, capacidade de tomar decisões e de ação inteligente) não estão confinados ao indivíduo, mas estão distribuídos por objetos, outros indivíduos e os seus locais (equipes), artefactos (tecnologia, ferramentas) e o ambiente e organização social ao longo do tempo (cultura)1. Assim, aprender e saber não se resumem aos atos de estudar e de praticar aptidões. Na nossa sociedade não prevalece esta visão distribuída da cognição, focando-se muito no desenvolvimento pessoal e individual e no desenvolvimento de aptidões individuais, descurando os outros elementos necessários para uma aprendizagem e geração de conhecimento individual e coletivo.

Como médicos, estamos expostos a um volume de informação que ultrapassa a nossa capacidade de processamento, pela sua quantidade, caos, dificuldade em distinguir o que é necessário, inútil ou até prejudicial. Com a inteligência artificial (IA) no campo do conhecimento tornar-nos-emos mais vulneráveis, deixaremos de conhecer as fontes e a validade da informação. Vamos interagir cada vez mais com entidades equipadas com ‘cérebros eletrónicos’. O risco que corremos é que deixemos de ter conhecimento real e fiquemos sem capacidade de decisão por ignorância, desconhecimento ou por manipulação com intenção maliciosa.

Devemos obviamente abraçar a tecnologia, mas não podemos negligenciar os valores fundamentais como indivíduos, como a segurança, a privacidade e o direito ao conhecimento. Esses valores definem, primeiro o indivíduo, e por consequência, a sociedade. Ler John Steinbeck, é refletir sobre o significado do que é ser “um indivíduo”, sobre a complexidade da natureza humana e sobre os valores que defendemos2. A individualidade não está isolada, mas profundamente enraizada numa teia de relações sociais e responsabilidades coletivas. É um equilíbrio delicado entre o eu e o outro, entre o individual e o coletivo. A verdadeira força do indivíduo não reside na solidão, mas na conexão com outros seres humanos e no reconhecimento dos nossos destinos compartilhados. O desafio do conhecimento pessoal, não é apenas adquirir e organizar o conhecimento para o bem pessoal, mas também para contribuir para o bem-estar coletivo.

A gestão do conhecimento pessoal é um dos componentes-chave na construção do conhecimento, uma competência essencial que não é sistematicamente ensinada ou estimulada durante o desenvolvimento como indivíduos. É uma lacuna na nossa cultura de consumo acrítico e passivo. A crescente interação com agentes eletrónicos não é acompanhada por um desenvolvimento da nossa literacia digital. Questiono-me sobre como utilizamos as ferramentas eletrónicas no meio das quais vivemos para criar um sistema sustentável e útil a longo prazo. Não aprendemos os princípios, não sabemos usar as ferramentas. O uso de sistemas eletrónicos de gestão do conhecimento pessoal – personal knowledge management systems (PKMS)3 – é uma área fundamental e negligenciada do conhecimento. PKMS é ao mesmo tempo, algo de universal, com princípios e ferramentas comuns, e algo de pessoal – como se implementa varia para cada um.

Um médico tem de gerir a sua informação. Tem de criar o seu conhecimento. Tem de desenvolver a sua capacidade de crítica. Transformar informação em conhecimento implica uma série de tarefas realizadas de uma forma sistemática, que respeite o indivíduo, de modo a funcionar para o próprio. Funcionando para o indivíduo, temos o primeiro passo para o funcionamento coletivo. A informação, armazenada e processada de forma pessoal, tem o potencial de construir pontes entre o conhecimento individual e o conhecimento coletivo. A partilha e interligação dos sistemas pessoais permitem o amadurecimento de uma cultura de aprendizagem colaborativa e o desenvolvimento de uma cultura de aprendizagem contínua.

Em conclusão, a implementação de estratégias de gestão do conhecimento pessoal é um elemento crucial para a operacionalidade produtiva e contínua do médico ao longo da sua carreira. Como pode ser efetivamente integrado na prática médica diária? Podem as plataformas digitais existentes ser mais bem utilizadas para esse fim? Como podemos garantir que as gerações futuras de médicos estarão equipadas com as aptidões necessárias para a gestão do conhecimento pessoal? Pela sua relevância, será pertinente a inclusão dos princípios e ferramentas que levam à implementação dessas estratégias no ensino da medicina. Coletivamente, é a abordagem colaborativa que será responsável pelo avanço do conhecimento, pelo sucesso de uma sociedade, de uma civilização, de uma espécie integrada na ordem do universo, no cosmos4.

Referências

  1. Hazlehurst B. When I say … distributed cognition. Med Educ. 2015;49(8):755-756. doi:10.1111/medu.12672
  2. John Steinbeck – Steinbeck’s Philosophy | Steinbeck in the Schools. Accessed June 8, 2023. https://steinbeckintheschools.com/authors-context/steinbecks-philosophy
  3. Personal knowledge management. In: Wikipedia. ; 2023. Accessed June 8, 2023. https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Personal_knowledge_management&oldid=1150347393
  4. Galgotia D, Lakshmi N. Implementation of Knowledge Management in Higher Education: A Comparative Study of Private and Government Universities in India and Abroad. Front Psychol. 2022;13:944153. doi:10.3389/fpsyg.2022.944153