Autora: Clara Jorge, Interna de Formação Específica de MGF (Unidade Local de Saúde do Nordeste); Membro da Ordem dos Médicos – Conselho Sub-regional de Bragança.
Resumo: Deparamo-nos com uma medicina cada vez mais burocrática que valoriza o alcance de objetivos numéricos, produtividade e eficiência e esquecendo algo que está num patamar superior: o bem-estar do doente. Entretanto, a ciência avança a passos largos prevendo um futuro diferente ao qual o médico terá de se adaptar mantendo a deontologia médica.
Ainda se lembra de quando escolheu estudar medicina?
Ainda se lembra do primeiro dia de faculdade? E do último?
Os motivos que nos levaram a escolher esta carreira profissional podem variar de indivíduo para indivíduo, mas o objetivo final pode e deve ser igual para todos: o bem-estar do doente.
Quando iniciámos a faculdade, ninguém nos alertou para o difícil que iria ser (devê-lo-iam ter feito?). Será que se nos tivessem avisado de como e onde estaríamos neste momento teria alterado o nosso destino?
A arte da medicina mudou drasticamente no último século, a medicina deixou de ser uma profissão consagrada para se tornar numa profissão sob o constante escrutínio dos meios de comunicação social. Era este o futuro que previa no primeiro dia de faculdade?
O nosso dia-a-dia profissional obriga a tomar decisões, muitas, imensas. Quais são as que nos causam maior stress emocional? As que implicam diretamente o doente ou as que se relacionam com a papelocracia associada aos cuidados de saúde?
Cada vez nos é exigido mais com menos recursos humanos, técnicos e materiais. Atingir a perfeição neste contexto é uma utopia e termina num desgaste emocional e sequelas enormes, tal como indicam os estudos recentes de Burnout na classe médica1. A nossa profissão envolve seres humanos, e como tal, envolve também a singularidade de cada um. Torna-se portanto muito restritivo englobar um rol de pessoas dentro de um protocolo (ainda que os protocolos sejam essenciais na medicina), há e haverá sempre a exceção à regra, aquela que nos faz descer à terra e pensar que os fins justificam os meios.
Está em curso desde 2015, um ensaio clínico com o objetivo de dotar o ser humano de vida eterna: “matar a morte”2,3,4 e que se iniciou tendo em conta que no organismo humano já existem células imortais: as células neoplásicas. A paciente zero, nossa colega Elizabeth Parrish, está a realizar a primeira terapia genética bem-sucedida contra o envelhecimento humano: um inibidor da miostatina, que impede a perda muscular e uma terapia genética com o objetivo de alongar os telómeros. Até à presente data foi possível reverter a idade celular em 20 anos nesta paciente. Os resultados são promissores: os cientistas afirmam consistentemente que entre 2029 e 2045 a morte será opcional. Evidentemente este ensaio clínico poderá não atingir o seu objetivo final mas, e se for atingido? Se realmente nos dotarem de vida eterna? Onde ficaria o papel do médico? O que significaria na nossa prática clinica diária? O que mudaria? Mudaria tudo!
A história ensina-nos que a medicina não é estanque, evolui e muda constantemente. Verificou-se na última década uma evolução lenta comparativamente ao século passado, na qual os conhecimentos médicos cresceram de forma exponencial, no entanto, os cientistas afirmam que nos próximos 20 anos se produzirá mais conhecimento do que nos últimos 2000 anos. O próximo século presentear-nos-á com novos avanços médicos e estes vão implicar uma reorganização global da saúde.
O futuro exige de nós médicos, competências de gestão: gerir listas de utentes, gerir vagas de internamento, gerir recursos disponíveis, gerir gastos de papel, gerir horas de trabalho, gerir indicadores e contratualização, gerir emoções, gerir medicação disponível… E no meio de tudo isto, gerir a vida do doente. A burocracia aumentou e tende-se à desumanização dos cuidados de saúde. Nos tempos que hoje correm, estaremos a desviar-nos do rumo que tomamos no primeiro dia de faculdade?
E no final de tudo, manter-se-á o bem-estar do doente como a nossa primeira preocupação?
Referências bibliográficas
- Marôco J., Marôco A.L. et al: “Burnout em Profissionais da Saúde Portugueses: Uma Análise a Nível Nacional”, Acta Médica Portuguesa, Jan 2016; 29(1):24-30.
- Bär, C., Blasco, M. A., “Telomeres and Telomerase as Therapeutic Targets to Prevent and Treat Age-Related Diseases”, F1000Research5 (2016): F1000 Faculty Rev–89. PMC. Web. 26 Nov. 2017.
- https://bioviva-science.com/blog/2017/3/2/first-gene-therapy-successful-against-human-aging.
- http://blogs.discovermagazine.com/crux/2016/04/29/liz-parrish-is-an-ceo-and-patient-zero/#.Whrpk0pl82x.