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O aviso da COVID 19

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

Viver uma pandemia em tempo de comunicações processadas à velocidade da luz é uma agressão colectiva que dificulta e até pode distorcer a compreensão das diversas análises que este acontecimento dramático implica.

É essa vivência que estamos a ter com um modelo de resposta político-sanitária que é quase universal e que todos sabemos ter um custo social incalculável. Vão ser necessários dez ou vinte anos depois de se considerar a situação sanitária controlada até se poder afirmar que temos uma opinião cientificamente validada sobre a dimensão política, mas também de saúde colectiva, quer do tempo pandémico quer do tempo subsequente e seus efeitos colaterais.

Refiro-me particularmente às mortes: as que agora se atribuem ao vírus e que mais tarde serão separadas em grupos como por exemplo “mortos pelo vírus” ou “mortos com o vírus”; mas também às mortes durante a pandemia não registadas nem num nem noutro grupo e que ocorrem diariamente por todo o mundo. Em números sempre crescentes porque havendo mais pessoas há mais mortes quer nos países onde a miséria é “epidémica” quer nos de registos fiáveis.

A mortalidade final desta pandemia “COVID 19” será de 3 a 3,5%. Embora o número de actuais infectados, quer mortos quer sobrevivos, seja seguramente muito mais elevado em ambas as variáveis julgo que, após correcção, a mortalidade final será próxima daquele intervalo. O exacto conhecimento destes dados surgirá num tempo que já não será meu mas ainda será de vida de muitos dos actuais protagonistas no registo, na análise e na estruturação das medidas de resolução do problema.

Com esta argumentação terá sentido esta minha especulação sobre o valor relativo dessas mortes, o seu potencial significado fora das interpretações convencionais social e cientificamente aceitáveis e a relevância do tecido social dos países como variável sanitária?

Talvez não se justifique o que penso. Mas não tenho dúvidas que mesmo que seja uma visão desagradável ou sem fundamento socialmente tolerável será sempre “mais uma maneira de ver”. E acredito que seria bom que justificasse preocupação bastante para poder ser considerada como merecedora de atenção nas futuras resoluções sociais subsequentes à vivência da pandemia. É esse, pois, o objectivo deste texto.

 

Pirâmides etárias

A pirâmide etária “normal” das sociedades complexas até metade do século passado era um triângulo com as idades menores, apesar da “brutal” mortalidade infantil, a ocuparem indiscutivelmente a sua base. O espaço próximo do vértice superior correspondia ao número de velhos sendo os mais velhos dos velhos a sua ponta.

Até a ciência económica reconhecia a normalidade deste desenho, com grande produção de crianças, para bem consubstanciar em força de trabalho o meio do triângulo. Assim se ganhando a capacidade financeira criada por estes que permitia manter a ganhar sem trabalhar as populações de idades mais próxima do vértice superior cujo número “naturalmente” decrescia até ao zero da ponta.

Nascia-se muito e morria-se muito em criança. Mas os sobreviventes criavam valor económico relevantíssimo enquanto adultos, o período da vida em que iam envelhecendo. E quando eram definitivamente velhos morriam algum tempo depois de deixarem de ser produtivos. Era o ciclo biológico vital de todos os seres vivos, racionais e irracionais, com o específico dos racionais chamarem “trabalho” à subsistência.

Esta pirâmide, como resultado do muito de bom que se conseguiu nos últimos anos, mormente nos países que designamos como mais desenvolvidos, alterou-se. Hoje temos não um triângulo mas antes uma espécie de jarro invertido de pequeno gargalo com uma “barriga” larga e uma base que se mantém tão larga como a “barriga” ou até maior do que esta. Isto significa que no colectivo há menos crianças, felizmente quase todas sobrevivendo à infância, e que há uma população produtora de valor económico cuja idade se vai lentamente aproximando da base sendo, percentualmente, inferior ao que era habitual até há poucos anos atrás porque a base desta falsa pirâmide vai tendo um tamanho cada vez mais descomunal em relação às duas outras variáveis.

Simplificando: há demasiadas pessoas no planeta e esse excesso está muito relacionado com o elevado número de velhos goste-se ou não desta palavra.

Velhos a quem o progresso permitiu que possam deixar de trabalhar mais cedo do que há cem anos e continuar a viver com a subsistência assegurada. Hoje quase todas estas pessoas vivem muito mais do que os seus antepassados próximos e a sua morte é cada vez mais atrasada pelos avanços e pela generalização dos cuidados de saúde (mas também de outros enormes melhoramentos da vida quotidiana como e apenas como exemplos, alimentação, saneamento, segurança, negociação de direitos e deveres).

Tudo isto seria excelente se uma das consequências imediatas destas vantagens não fossem, para demasiados desses velhos, uma vida de solidão e uma cada vez maior percentagem de doenças neurodegenerativas, mormente demenciais, física e emocionalmente limitativas. E uma vida de miséria, de muita miséria, de demasiada miséria, sua e dos seus próximos, pois o pretendido abandono familiar dos velhos resulta, em muitíssimos casos, de limitações financeiras dos familiares que, porque recebem salários baixíssimos e ocupam o dia a dia no local de trabalho e nas horas de deslocação para e desse local de trabalho, não têm qualquer tempo para si. Em casa comem, dormem pouco, vêem televisão e, talvez para responder a uma necessidade fisiológica, de quando em vez têm relações sexuais arremedando proximidades ao amor. São cada vez mais os casais onde a mulher vive com os filhos que procura sustentar e os pais, incapazes de o fazer, mudam de mulher procurando nessa diversidade a competência social que a vida difícil os impede de adquirir e valorizar. Não abandonam os seus velhos. Simplesmente o seu tempo não chega para eles.

Claro que alguns quererão ver neste dramático uma oportunidade de negócio com novas formas de empregabilidade, com a criação de novas profissões e até com um novo tipo de relacionamento com objectivos que se teorizam como integrativos e se propõem como alternativa, quiçá séria e caritativa, a uma sociedade onde o ser-se avô deixou de fazer parte das funções familiares.

Não consigo acreditar que esta realidade seja uma normalidade. Que há uma mudança no viver colectivo é óbvio. Mas aceitar-se essa mudança como inevitável e irreversível ainda me parece não ser o caso. A reconstituição de alguns valores tradicionais tem de ser possível ainda que adaptada ao tempo actual, principalmente porque continuamos a ser animais sociais e a aprender pela interacção com o outro.

“Outro” que temos de ver, de voltar a ver ou de começar a ver, como os parceiros que dão sentido à nossa existência individual. Somos, ou temos de ser se queremos sobreviver, todos por todos e cada um pelo outro seja este quem for.

 

O outro, sempre o outro como nós

Mas será que esta argumentação significa que a vida, valor abstracto que se contrapõe à morte, deve ser preservada a todo o custo e que a sua avaliação se deve fazer exclusivamente por critérios biológicos? Uma vida vegetativa tem sentido? Uma vida em sofrimento continuado compensado medicamente tem sentido? Uma vida sem relação com outros de identidade próxima e sem novos nexos relacionais tem sentido?

Alguém sabe responder a estas questões? Julgo que não. Mas acredito, sem ser crente ou esotérico, que a natureza talvez tente responder-lhes por nós.

A pirâmide etária, de ontem e de hoje, deve ser um triângulo sendo a sua alteração actual, com graves repercussões sociais, resultado de progressos criados pelo engenho humano. Que todos concordamos terem permitido reduzir, num mundo desigual e pouco solidário, a miséria, a fome, a morte evitável, o sofrimento associado à conflitualidade por motivos pueris como são os religiosos, os económicos ou os migratórios. Mas estas reduções são muito menores do que era possível ter-se alcançado o que não é agradável de reconhecer. Mas sim, há redução, pelo que é razoável louvar esse pouco por muito pouco que seja.

A presente pandemia COVID 19 é, ao meu entendimento, um aviso da natureza, um alerta, para o irrazoável dos nossos procedimentos como exploradores do planeta através de uma reacção dessa mesma natureza que consideramos apocalíptica apesar da agressão ser mínima quando comparada com pandemias anteriores e, muito mais grave, com as potenciais próximas. E uso a expressão próximas com o significado de “daqui a poucos anos”.

Esta doença é altamente contagiante e revela-se nos números oficiais de infectados detectados mas também nos muitos mais que, seguramente, este modelo de contabilização ignora. Todo o mundo acompanhou a viagem do agressor e se impressionou com o número de mortos a aumentar diariamente. Mas aparentemente ninguém percebeu ou se interessou pelo valor relativo dessas perdas humanas em relação à mortalidade diária mundial. Durante um ano morrem de mortes diversas mais de 55 milhões de pessoas no mundo (o meio milhão de mortos relacionados com a pandemia foi atingido no dia 29 de Junho de 2020) que serão principalmente velhos. Mas neste número incluem-se muitos novos, quase todos pobres, pois a esperança média de vida em grande parte do planeta é inferior a 50 anos.

Esta pandemia tem mostrado ter uma mortalidade selectiva, preferindo idades acima dos 65 anos, sendo poucos os casos de jovens sem patologia crónica conhecida mortos pelo vírus. E mesmo os “velhos” são quase todos portadores de patologias que os matariam em tempo mais ou menos curto.

Dito de forma mais cruel esta pandemia tem morto como causa directa, ou está associada a morte antecipada como facilitadora de uma morte anunciada, pessoas cuja vida tinha uma expectativa, na sua muito grande maioria, reduzida ou bastante reduzida.

Quando se fala de “mais um falecimento de uma idosa de 90 anos institucionalizada que sofria disto e daquilo” é de mortos sociais e não de mortes por uma determinada doença que se está a falar. Muitos são pessoas que se reconhecem como vivas apenas porque respiram não tendo qualquer existência relacional ou que julgamos não terem porque a dimensão da nossa ignorância continua a ser extremamente grande. Mas com o saber que possuímos podemos afirmar que existem em sofrimento, em isolamento, em condicionamento por regras que pretendemos serem o seu bem-estar. Só comem com ajuda, são higienizadas por terceiros que nada lhes dirão e são mantidas várias horas do dia em frente de estúpidos programas de televisão sendo deitadas a horas que nunca foram as suas.

E tudo isto por bem. Claro que também há velhos autónomos e saudáveis capazes de gerirem uma boa parte do seu quotidiano. Mas as instituições de acolhimento de velhos estão ocupadas preferencialmente pelo outro tipo, por “mortos esquecidos de morrer”.

Sendo estes os de grande risco para uma morte antecipada directa ou indirectamente provocada pelo vírus pandémico. E são também as pessoas que fazem parte e alargam significativamente a zona superior da actual pirâmide etária que, por isso, já nem se deve designar como “pirâmide”.

O vírus, ou a natureza por ele, está a procurar avisar-nos para o absurdo de em nome do valor vida como um absoluto, que queremos ver como bem-estar, estarmos de facto a prolongar a existência de pessoas que talvez já o não sejam, deixando-os esperar a morte em depósitos socialmente inaceitáveis, ajudados por cuidadores sem formação (como se houvesse formação para cuidar de quem não existe como cidadão integrado) mas com vontade de bem fazer que se lhes dedicam com o mesmo afecto que tantos outros oferecem aos animais de companhia e se esgotam como seres humanos num propósito impossível.

Claro que alguns dirão: mas temos emprego. E outros dirão: estes são os empregos do futuro. Embora outros digam que o apoio com modelos tecnológicos preparados para cuidar será muito mais eficaz: porque não se fatigam, não se aborrecem, estão 100% disponíveis e responderão a cada necessidade, referida ou percebida, de uma forma personalizada.

Tudo isto será verdade. Mas estaremos mesmo a cuidar de quem precisa e da forma que lhes será útil? E será que se justifica cuidar de vários desses aparentes necessitados nos termos em que o fazemos, ou seja, exclusivamente em função do valor superior “vida biológica”?

Sim, porque viver ainda é, principalmente, relação. E esta, no seu essencial, é competência para ver o outro o que é tarefa muito mais difícil do que parece. Porque implica não só ver o que está à vista mas também e demasiadas vezes ver da mesma forma o que se não exprime, o que se esconde consciente ou inconscientemente e até o que se desconhece.

 

COVID 19 e amanhã

Esta pandemia pode ser percebida como um aviso sobre um irregular natural do viver-se. Por bem, por muito bem, modificámos a normal distribuição dos grupos etários dos humanos criando assim um problema social que não sabemos resolver e acerca do qual só reflectimos marginalmente porque receamos o livre uso da palavra e as suas potenciais interpretações por terceiros, por vezes, tão bem intencionados como os que criticam. O envelhecimento cada vez mais acentuado das populações de todo o planeta, mas principalmente dos países que temos como mais desenvolvidos, com degradação da vida de muitíssimos desses velhos é um problema social real e que carece de resolução urgente.

A COVID 19 veio alertar-nos para a necessidade de olharmos criteriosamente e com preocupação para esta parte da população do mundo que seleccionou como sua vítima preferencial. A doença fez a sua parte para reduzir a dimensão da ponta superior anormal da pirâmide etária mas sem afirmar que há pessoas que devem ser excluídas da vida por não terem direito à mesma. Disse antes que disponibilidade permanente para responder aos números de uma agressão pandémica não basta. Uma pandemia obriga todos os decisores a erguerem os olhos das mesas de reunião e dos imensíssimos documentos de avaliação que têm de apreciar e darem ao tecido social de cada país pelo menos a mesma importância que dão a esses números e documentos.

No ambiente cuidador dos Médicos têm de se definir critérios precisos sobre quem deve ou não receber um pacemaker, quem deve ou não ser reanimado, quer deve ou não ser integrado num programa de diálise ou ligado a um ventilador, quem deve ou não ser tratado com obstinação porque há motivo cientificamente válido para o fazer. E a definição de vida tem de valorizar o seu carácter biológico sem esquecer ou desvalorizar o social e o relacional.

Dir-se-á que são problemas que se conhecem e que têm merecido muita análise, apreciação e discussão mas cuja complexidade impede acordos ou simples regulamentações aceites por todos. Admito-o. Mas a COVID 19 mostrou que os velhos no mundo desenvolvido, ao se tornarem improdutivos, são secundarizados e socialmente esquecidos. Reconhece-se o seu direito a uma institucionalização quando dependentes. Mas os critérios de dependência e de tratamento adaptados à sua circunstância estão longe de estar precisados sendo obrigatório afirmar de forma clara, isenta e socialmente interessada que a vida de todos nós é um valor biológico mas também um valor social. Isto significa que manter uma vida biológica só por o ser é um erro. Com todas as suas implicações mesmo as que potencialmente conflituem com os princípios sobre que nos construímos.

A COVID 19 diz-nos que a antiga pirâmide etária tem de ser recuperada para que os novos tenham vida e também nos diz que as políticas sociais e as respostas a agressões pandémicas têm de ser orientadas “para todos” com decisões-escolhas determinadas em função do superior interesse do tecido social de cada país. Só depois é que vêm os números.

Em Portugal o tecido social não são apenas os lares de terceira idade onde se acumulam 20 ou 30 pessoas em 4 ou 5 quartos deitados em camas pequenas para melhor rentabilizar o negócio; são os gestores destes lares que não têm outros rendimentos e fazem desta nova oportunidade uma forma de vida tal como o são os usufrutuários dos mesmos que não têm dinheiro para outro tipo de apoio; são os pequenos proprietários sem empregados, sapateiros, costureiros, operários de diversas actividades que trabalham por sua conta; são os novos escravos contratados a tempo curto e mantidos em barracos sem qualquer higiene, protecção ou autonomia; são as famílias, com dez ou mais membros, que vivem em apartamentos com duas assoalhadas; são os deslocados dos bairros de lata para a periferia das cidades e para bairros que só não são de lata porque os prédios são de cimento; são todos os trabalhadores precários como os distribuidores de empresas sem direitos nem protecções porque não são empregados das mesmas mas seus sub-contratados; são os trabalhadores sazonais que vivem uma parte do ano do subsidio de desemprego e outra parte como empregados indiferenciados de actividades turísticas; são os desempregados sem esperança; são os que tentam esmolar o pão do dia a dia e por vezes são “encontrados” por quem lhes dá esse pão a troco da sua dignidade ou da sua honestidade pessoal; são os agentes de autoridade que preferem não cumprir o seu dever de intervenção cívica porque a actividade repressiva será sempre ou quase considerada como excessiva e penalizada pela opinião pública com potenciais consequências na sua progressão na carreira; são os Médicos em treino que, perante um morto que vai à urgência com uma unha encravada e a quem descobrem uma arritmia, utilizam “para fazer mão” na colocação de um pacemaker; são os Juízes que perante o que designam como pequenos crimes julgam os seus autores pela décima vez e voltam a decidir não os penalizar porque as cadeias estão cheias e não são local adequado a uma boa recuperação social desse delinquente; são as leis que organizam a vida colectiva mas que não são respeitadas nem pelos prevaricadores que se sentem imunes ao castigo nem pelos executores que entendem menos complicado não verem o que está á vista; são os portugueses que acham que uma pequena corrupção ou um pequeno nepotismo não são graves “porque o exemplo vem de cima”; são infinitos exemplos sobre a nossa desorganização como país e sobre cada um de nós como partes individuais desse país e é o pouco empenho em a corrigir; é um sistema judicial que penaliza com o mesmo castigo o matador de uma pessoa e o que matou cem e que o faz em nome da defesa dos direitos humanos; é, infelizmente, o fazermos a nossa vida desligados do que nos rodeia iludindo-nos todos com a ideia de que ao vendermos sol temos o futuro garantido.

Não temos!