Exmo. Senhor
Ministro da Saúde
Lisboa, 12 Agosto 2013
Assunto: Parecer sobre o projecto de decreto-lei que estabelecerá um novo regime jurídico das convenções com o SNS
Correspondendo ao solicitado pelo Ministério da Saúde sobre o assunto em epígrafe, somos a informar a apreciação que o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos sobre ele faz.
Considerações preambulares
As Convenções existentes desde há muitos anos desempenham um papel fundamental, reconhecido e imprescindível no suprimento de carências do SNS, apenas tendo pecado por não serem de adesão livre e aberta, cumpridos os pressupostos legais em vigor.
Têm um valor único numa lógica de acessibilidade e proximidade aos cuidados de saúde, insuperável em algumas zonas, nomeadamente junto de populações mais desfavorecidas, fora dos grandes centros urbanos ou com dificuldades da mobilização.
Os custos a elas inerentes e a fixação de preços sempre foram controlados e regulados pelo Estado e pelo poder político da forma que melhor entenderam.
Assim sendo, sempre foram cumpridos os princípios da complementaridade, da liberdade de escolha, da transparência, da igualdade e da concorrência pela Qualidade, aos quais se acrescenta a insuperável mais-valia que é a medicina de proximidade para as populações, sem que no caso em apreço represente maiores custos directos para o Estado, mas sim e apenas para os prestadores.
Existem por isso múltiplas entidades convencionadas que, na sequência da sua actividade de longos anos, criaram estruturas significativas, geraram empregabilidade local e regional importante, assumiram investimentos vultuosos e prestam cuidados de qualidade que não podem, hipoteticamente e de forma discricionária, ser aniquilados num prazo de um ano, conforme se induz do citado Projecto. Para estes deve ser assumido um prazo obrigatoriamente mais longo e regras que os protejam em função de toda a actividade e custos/investimentos dispendidos no passado, com o enquadramento legal que estava em vigor, devendo ser muito clara e não superficialmente generalista a regulamentação que os impeça de continuar os citados cuidados.
Numa verdadeira Democracia respeitadora dos cidadãos, as regras não podem ser subitamente alteradas sem quaisquer preocupações pelas consequências humanas, sociais e empresariais decorrentes dessas alterações.
Como (ainda) é
1. Desde 1998, o estabelecimento de contratos de convenção – doravante designados, simplesmente, “convenções” – entre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e os prestadores privados de cuidados de saúde aos seus utentes tem obedecido ao regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 97/98, de 18 de Abril. Da sua leitura não é difícil apercebermo-nos das linhas orientadoras que presidiram à sua elaboração. Para efeitos deste parecer, as mais relevantes são, em súmula, as seguintes:
a) Foi considerado particularmente desadequado o modelo de concurso público para a celebração de convenções no sector da saúde, sendo consagrada uma ponderação mais qualitativa do que quantitativa, sustentada no princípio da livre escolha do utente face a prestadores devidamente credenciados (do preâmbulo);
b) Esta orientação é concretizada através da livre adesão dos prestadores credenciados interessados a um clausulado tipo definido pelo Ministro da Saúde (artigos 3.º e 4.º). Desse clausulado tipo, decretado pelo pagador e não pelos prestadores, sublinhe-se, constam os actos abrangidos e os respectivos preços;
c) Deste clausulado uniforme e universal para cada tipologia de serviço de saúde a prestar resulta, ainda, uma livre escolha para o utente do SNS dependente da qualidade e acessibilidade do serviço prestado e não do seu custo;
d) É enunciada a intenção de garantir a segurança do investimento do sector privado e de lhe criar condições de estabilidade (do preâmbulo);
e) Nesse sentido, o artigo 8.º estabelece que as convenções são válidas por períodos de cinco anos, renovando-se automaticamente por iguais períodos, salvo se, com a antecedência mínima de seis meses em relação ao termo de cada período de vigência, qualquer das partes resolver o contrato.
Como seria (?)
2. Ora, com o projecto de decreto-lei agora apresentado pelo Ministério da Saúde, pretende o Governo estabelecer um novo regime jurídico das convenções com o SNS, alterando e adulterando profundamente os princípios basilares, acima descritos, que enformam o Decreto-Lei n.º 97/98, de 18 de Abril, ainda não revogado.
Com efeito,
3. Este novo projecto propõe-se, designadamente:
a) Instituir dois modelos de procedimentos para a celebração de contratos de convenção: um primeiro, para uma convenção específica [alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º], destinado a mercados com baixo grau de concentração ou com concorrência significativa (preâmbulo) e que se regerará pelas regras estabelecidas no Código dos Contratos Públicos (n.º 4 do artigo 4.º); e um segundo, de natureza excepcional, que se processa através da adesão a um clausulado-tipo previamente publicado [alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º] e que se destinará a mercados com graus de concorrência reduzidos (preâmbulo);
b) Criar, quanto à extensão do território abrangido pelo contrato de convenção, um modelo de âmbito nacional e outro de âmbito regional (preâmbulo, nos 2 e 3 do artigo 3.º), sendo o último afastado pela existência de um outro de âmbito nacional (n.º 4 do artigo 3.º);
c) Estabelecer como preços máximos a pagar no âmbito das convenções os constantes na tabela de preços do SNS (n.º 1 do artigo 7.º) e indexar padrões de qualidade ao financiamento [alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º];
d) Reduzir o prazo de validade das convenções para 3 anos e o da sua denúncia para 90 dias antes do final de cada período de vigência (n.º 1 do artigo 11.º);
e) Os contratos de convenção vigentes à data de entrada em vigor do decreto-lei agora projectado cessarão passado um ano sobre aquela data (n.º 1 do artigo 16º), sem cuidar de investimentos feitos e legítimas expectativas existentes;
f) Os preços podem ser revistos anualmente (n.º 2 do artigo 11.º).
4. Numa primeira apreciação genérica, e deixando de lado os aspectos respeitantes à qualidade técnica legislativa porque, para tanto, nos falta a competência para o fazer, diremos que, da leitura deste projecto de diploma, se evidenciam os seguintes aspectos:
a) Sem uma Lei de Licenciamento justa e de aplicação eficaz e equilibrada torna-se impossível e inaplicável o que é proposto neste projecto de diploma (já que a condição basilar para o estabelecimento dos contratos é o das unidades estarem licenciadas)
b) Várias das disposições enunciadas – desde logo no preâmbulo e, depois, no articulado – são vagas e não sujeitas à definição dos termos utilizados nem dos critérios de aplicabilidade, abrindo, por essa via, as portas ao livre arbítrio e à discriminação não fundamentada.
É o caso do âmbito geográfico das convenções e o das modalidades para o procedimento de contratação. Ambos constam do preâmbulo mas, no articulado, surgem como se já estivessem instituídos. O articulado não contempla a definição dos termos nem os critérios para a sua aplicação.
Fica-se sem se saber quais são as convenções que terão âmbito nacional ou regional. Desde logo, não é claro o significado de ‘convenções de âmbito nacional’: o conceito refere-se ao estabelecimento de um clausulado-tipo a ser aplicado em todo o território ou ao estabelecimento de um contrato de convenção com um ou mais prestadores que assumirão a cobertura em todo o país?
Esta falta de clareza resulta de, na prática actual, as convenções obedecerem a um clausulado-tipo aplicado em todo o território continental mas são estabelecidas com as Administrações Regionais de Saúde. São de âmbito nacional ou regional?
Estabelece-se que a contratação de convenções de âmbito nacional afasta as de âmbito regional (n.º 4 do artigo 3.º), mas não se esclarece o que sucede às últimas que tenham sido estabelecidas antes da primeira.
Também não é claro quais as convenções que ficarão sujeitas a um procedimento concursal ou as que se processarão por mera adesão. Não se caracteriza um ‘mercado com baixo grau de concorrência’, ou o que é ‘concorrência significativa’ ou um ‘mercado com grau de concorrência reduzido’. Quem, ou quê, os define? São valores já estabelecidos? Quais são eles? São avaliados pelo índice de Herfindahl Hirschman ou por um outro? É a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho (“lei da concorrência”)? É a Autoridade da Concorrência? É o estudo da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) publicado em Maio do corrente ano intitulado ‘Acesso, Concorrência e Qualidade no Setor Convencionado com o SNS’? Ou, afinal, será o Governo que, na ausência de critérios claros e pré-definidos, o decidirá discricionariamente em cada momento, conforme cada interesse circunstancial e para cada convenção?
c) O Governo tenciona subalternizar e fragilizar os prestadores convencionados. Desde logo, pelas indefinições referidas na alínea anterior. Depois, pela precarização dos contratos de convenção – reduzindo o seu prazo de vigência de 5 para 3 anos, encurtando o período para a sua denúncia de 180 para 90 dias antes do termo de cada período de vigência e, por fim, reclamando para si o discricionário e plenipotenciário poder de rever anualmente os preços sem que, antecipadamente, defina os modelos e os critérios para o fazer.
E, assim, adultera o sentido e a ética que, entre contraentes, deve presidir ao estabelecimento de um contrato. Reclama para si o poder de, unilateralmente, alterar as cláusulas contratuais durante o período de vigência do acordo sem, sequer, admitir a renegociação com o outro contraente;
d) É inacreditável que o Governo, que já efectua os seus pagamentos sempre com insuportáveis atrasos, declare na legislação a sua intenção de não honrar os contratos de convenção que subscreveu e que se prolongariam para lá do período de um ano após a data de entrada em vigor do diploma em projecto, assim impedindo qualquer planeamento empresarial minimamente consistente. Este Projecto estabelece extensamente as obrigações dos contratados mas o legislador esqueceu-se de elencar as obrigações do contratante, como sejam os prazos para liquidação das facturas.
5. A aplicação das novas “regras” que o Governo pretende implementar para a contratação de entidades privadas para a prestação de serviços de saúde, em regime de “convenção”, conduziria aos seguintes efeitos:
a) Com a nova norma jurídica estaria criado um ambiente económico que conduziria à fragilização dos prestadores convencionados actuais e geraria barreiras intransponíveis ao aparecimento de potenciais novos prestadores – resultante da inexistência de uma definição rigorosa do modelo jurídico a aplicar e da imprevisibilidade no critério adoptado pelo decisor político na aplicação das novas “regras” instituídas, da previsível quebra das margens de lucro operacional, do anunciado incumprimento dos contratos vigentes, do encurtamento do tempo de duração dos contratos e, consequentemente, da maior dificuldade (ou, mesmo, impossibilidade) em gerar excedente económico suficiente para amortizar os investimentos (de substituição ou de expansão) efectuados, sobretudo nas áreas em que eles atingem montantes mais significativos, do seu afastamento da intervenção negocial para o estabelecimento dos preços, da sua total dependência de um novo poder discricionário do Governo e, portanto e em suma, da ausência de segurança e de confiança que, deliberadamente, esta Administração pretende incutir-lhes. Esta fragilização conduzirá inexoravelmente ao encerramento de muitos estabelecimentos de prestação de serviços de saúde e à ausência de novos investimentos nesta área, designadamente entre os prestadores de menor dimensão.
Com esta medida, o Ministério da Saúde manteria e endureceria a política que tem vindo a conduzir à destruição da rede assistencial privada e convencionada baseada em pequenos e médios prestadores concorrenciais e de proximidade.
b) Ao contrário do que o Ministério da Saúde tem vindo a tentar fazer crer sobre o seu combate à concentração nas áreas convencionadas onde predominam os grandes prestadores – que, em grande parte, são detidos por capitais estrangeiros ou multinacionais –, este projecto de decreto-lei, se vier a ser promovido a diploma legal, terá um efeito diametralmente oposto. Favorecerá um agravamento da concentração nos mercados, afastará os recursos dos doentes, com prejuízo dos mais desfavorecidos, reduzirá a concorrência e permitirá a cartelização dos preços, com captura do Estado, desde logo contrariando dois dos princípios que o DL protesta defender, os princípios da equidade e da concorrência.
Não é necessário ser-se economista ou político para entender que os grandes prestadores, detentores de elevada capacidade económica e financeira, terão muito maior capacidade para enfrentar as dificuldades que se adivinham do que os operadores de menor dimensão. Não só as suportarão como poderão, até, vir a utilizá-las para adquirir a baixo custo os seus concorrentes de menor dimensão que não conseguirão vencê-las. Nem sequer serão afectados pela transitória menor rentabilidade de uma ou outra das unidades adquiridas. Pelos mecanismos de economia de escala, essa menor rentabilidade pontual será diluída pelos seus proventos globais. E, se não derem lucro, encerrá-las-ão e manterão, impassivelmente, a sua actividade, sem qualquer preocupação com os “clientes”.
Quanto aos pequenos prestadores, o encerramento da unidade que exploram, por perderem um concurso, significa a sua insolvência definitiva e retirada do mercado, com todos os prejuízos daí inerentes.
c) A introdução do procedimento concursal para encontrar o preço que irá governar os contratos de convenção com prestadores de serviços de saúde é mais uma aberração que, porém, prossegue com a linha-mestra destruidora que orienta a política para a Saúde deste Governo.
Ao invés da filosofia espelhada no diploma que anteriormente regulava o estabelecimento de convenções (Decreto-Lei n.º 97/98, de 18 de Abril) – «é particularmente desadequado o modelo de concurso público para a celebração de convenções no sector da saúde» –, este Governo decreta que os tempos são outros e que é necessário definir um novo modelo de convenções mais consonante com a actual realidade de prestação de cuidados de saúde. Todavia, não esclarece que actual realidade é essa, presumindo-se que ela se limitará à difícil situação económica em que o País se encontra. E isso justificará qualquer medida restritiva que, no curto prazo, possa vir a reduzir os gastos à tout le transe? E sem qualquer preocupação ou estudo das consequências a curto, médio e longo prazo para prestadores e doentes e para o Sistema Nacional de Saúde?
Quem elaborou este Projecto esquece, ou não sabe, ou desvaloriza que na área da prestação de cuidados de saúde existem incontornáveis regras éticas que não são iguais às de qualquer outro negócio de bens de consumo. Na saúde, o produto final é o bem-estar físico, psicológico e social do indivíduo. E isso tem exigências abaixo das quais não é possível atingir tal desiderato com Qualidade e com ganhos em Saúde.
Ora, a implementação de um processo concursal, cujo único parâmetro de avaliação será, está bem de ver, o custo, incorre no mais que provável risco (para além de outros que se descreverão) de gerar a degradação dos cuidados prestados.
Um prestador privado não pode, pelo menos duradouramente, prescindir das mais-valias que a sua actividade lhe proporciona. Ao candidatar-se a um concurso em que o menor preço é, na prática, o único parâmetro de escolha (todos os candidatos serão credenciados para a prestação do serviço posto a concurso, todos eles se proporão a prestar o mesmo serviço, todos eles assegurarão vir cumprir as regras técnicas estabelecidas), como poderá ele, sobretudo se for um pequeno prestador, reduzir os custos de forma competitiva sem comprometer uma margem de lucro, por mais pequena que seja, que assegure a viabilidade e a continuidade da sua actividade?
E como pode um pequeno prestador nacional – para quem a sua subsistência depende dos lucros alcançados – competir com uma multinacional, para a qual o lucro obtido numa unidade não é mais que uma parcela aditiva aos proventos resultantes da globalidade da sua actividade?
A metodologia de fixação e actualização de preços de referência nunca se deveria basear apenas num preço máximo, como é referido no art. 7º, mas igualmente no estabelecimento de um preço mínimo, garantia de qualidade mínima do serviço prestado. Relembramos aqui que a existência até há alguns anos atrás na Ordem dos Médicos de um valor de K máximo e mínimo em cada acto permitia assegurar que a prestação de cuidados tivesse uma valorização dentro do que seria considerado adequado e, por outro lado, assegurava um preço mínimo como garante de qualidade.
Em conclusão, o modelo concursal para o estabelecimento de contratos de convenção com prestadores de serviços de saúde promoverá a inviabilidade de pequenas empresas do ramo, a redução da oferta e o agravamento da concentração em vários mercados. Em simultâneo, fomentará a degradação, em maior ou menor grau, da qualidade dos serviços prestados e reduzirá o leque de escolha aos utentes do SNS.
Este modelo concursal é tanto mais absurdo, e, por consequência, não será inocente, quanto é verdade que o Ministério da Saúde tem o poder de controlar administrativamente os preços, o que já gerou enormes poupanças no passado recente, sem colocar em causa a sobrevivência vital dos prestadores de pequena e média dimensão e com características de proximidade.
d) Bem pode o Ministério da Saúde continuar a propalar repetidamente nos diversos diplomas que vai publicando, desde meros despachos a decretos-lei, que eles asseguram a acessibilidade dos cidadãos a cuidados de saúde de qualidade em termos de equidade e de igualdade. A obsessiva necessidade de o enunciar apenas revela o reconhecimento do oposto, porque a realidade é bem diversa.
E essa diversa realidade não é resultante do acaso ou de condicionalismos impostos de fora. Ela é, em enorme parte, derivada da política de saúde deliberadamente prosseguida por este Governo, o que é bem exemplificado e demonstrado por este projecto de diploma.
Aliás, a implementação de medidas discricionárias no acesso aos cuidados de saúde pelo SNS vem sendo apanágio da sua política. Atente-se, a título de exemplos (entre outros) do que se acaba de afirmar, nos seguintes diplomas:
(i) Decreto-Lei n.º 128/2012, de 21 de Junho – agrava drasticamente as chamadas ‘taxas moderadoras’, transformando-as em verdadeiras prestações de copagamento dos cuidados prestados pelo SNS ou por prestadores dos quais ele é financiador;
(ii) Portaria n.º 142-B/2012, de 15 de Maio – institui o copagamento dos transportes de doentes não urgentes submetidos a tratamento crónico e regular;
(iii) Despacho n.º 7702-C/2012, de 1 de Junho – burocratiza e dificulta de forma inaudita o transporte de doentes;
(iv) Despacho n.º 10429/2011, de 1 de Agosto – impede os hospitais públicos, as unidades convencionadas de hemodiálise e médicos no exercício de medicina privada de solicitarem a prescrição de exames às unidades de cuidados de saúde primários, ficando estas últimas impedidas de prescrever MCDT por eles solicitados.
Todos estes diplomas e despachos, pese muito a retórica utilizada, têm como objectivo dificultar, ou mesmo impedir, o acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde prestados pelo SNS ou por ele financiados. Mas, de entre todos, realçamos o último que, na prática, impede muitos cidadãos – no pleno gozo dos direitos que lhes são atribuídos pela Constituição da República Portuguesa e que pagam os seus impostos, i.e., que são cofinanciadores do SNS – de ter acesso à realização de MCDT requisitados nos cuidados de saúde primários (CSP) a pedido dos médicos assistentes privados ou convencionados, mesmo quando são observados todos preceitos deontológicos que regem a relação entre médicos e os exames solicitados, porque devidamente fundamentados, mereçam o acordo do clínico dos CSP. Esta deliberação é discriminatória, atropela grosseiramente direitos constitucionais e “castiga” cidadãos que, reduzindo a sobrecarga sobre o SNS, têm a ousadia de recorrer a serviços privados.
6. Somos obrigados a reiterar que concursos exclusivamente ao menor preço e com total esmagamento de margens de lucro vão afectar inapelavelmente a Qualidade dos serviços prestados, com prejuízo dos doentes e do SNS. Para que esta realidade seja mais facilmente percepcionável para quem não está directamente ligado à Saúde, reproduz-se um email que recebemos de um reputado Colega, devidamente identificado:
“Mais uma vez estou plenamente de acordo com a opinião emitida no artigo «Destruir as convenções». E talvez tenha ficado muito mais sensibilizado para este assunto por dois casos «clínicos» que acompanhei, nos últimos dias, um deles com um colega nosso, que apresentava uma grave hipoglicemia que, afinal, não tinha.
A outra situação é bastante mais grave, pois tratava-se de uma pancitopenia (Hh-11,7, leucocitos-2.300 e plaquetas-40.000). Claro que este «doente» já tinha pedida uma bateria de exames – incluindo a biópsia óssea – quando me foi solicitada a opinião. Depois de fazer a história clínica e a observação do senhor, duvidei, com firmeza, daqueles valores. No dia seguinte, repetiu análises, noutro laboratório (Hb-16, leucocitos-6.000 e plaquetas-200.000).
Em ambos os casos as colheitas de sangue, em veias com alguns milímetros de diâmetro, determinaram volumosos hematomas.
O laboratório em causa está sediado no Porto e faz análises para várias instituições públicas, pelo menos para … . Ganhou o concurso porque apresentou uma proposta financeiramente mais vantajosa. Confesso que gostava de saber quem faz as colheitas e em quanto tempo, e em que condições, chegam os produtos ao Porto. Já me testemunharam que amostras de urina para análise estão muito tempo à espera que as levem.
Que confiança podemos ter nestes resultados? E os doentes, que devem andar a ser tratados a doenças que não têm? Quantos outros exames serão pedidos nesta sequência? O barato não sairá caro? E finalmente, mas não menos importante, quem acode às pessoas, quantas vezes não doentes, neste labirinto kafkaniano?”
7. Dentro da caprichosa indefinição geral desta proposta de DL, também não está definido o que é um cargo de Chefia (nº 3, artº 5º). Há tantos cargos de Chefia intermédia, focal ou transitória no SNS que tornam inaceitável esta incompatibilidade e quase impediriam que as Direcções Técnicas fossem assumidas por elementos mais graduados. Por exemplo, não faz nenhum sentido que Chefiar uma equipa num Serviço de Urgência seja impeditivo do exercício de funções de Direcção técnica em entidades convencionadas. Por conseguinte, a referência indefinida a “Chefia” deve ser retirada do texto legal, mantendo-se apenas os cargos de Direcção no SNS como incompatíveis, circunstância ainda assim controversa, mas aceitável.
8. No artigo 5º, nº2, pretende estabelecer-se que “os profissionais vinculados ao SNS não podem celebrar convenções, deter funções de gerência ou titularidade do capital superior a 10% de entidades convencionadas, por si mesmo, por seus cônjuges e pelos seus ascendentes ou descendentes do 1º grau”. Este ponto parece-nos absolutamente arbitrário: o candidato a contratado/convencionado poderá ser penalizado por condições exteriores a ele próprio (exceptuando o cônjuge, situação que por si só é um contrato vinculativo). O facto de eventualmente o pai ou a mãe (na interpretação da ARS de Lisboa estende-se aos sogros…) também terem eles próprios outras convenções ou fazerem parte de sociedade contratada com o SNS poderá inibir um indivíduo de integrar uma sociedade candidata a contrato com o SNS, o que não é aceitável numa Sociedade democrática e moderna.
9. No art. 5º ao mencionar-se os requisitos de idoneidade para a celebração das convenções, pensamos que, no âmbito da Medicina Física e Reabilitação e das suas diferentes valências terapêuticas (fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala), deve ser explícito que a titularidade de licenciamento se realiza ao abrigo da Portaria em vigor: Portaria 1212/2010 de 30 de Novembro, não bastando a inscrição na ERS, uma vez que esta entidade admitiu a inscrição de Gabinetes de fisioterapia sem garantir a prescrição de médico especialista, dos mecanismos de controlo de qualidade e muito menos de um programa de reabilitação integral como expressámos oportunamente. Apenas através da prescrição de médico especialista se garante uma prescrição de reabilitação que, tal como a farmacológica, é uma prescrição galénica, tendo em conta os vários actos da tabela da Ordem dos Médicos e incorporando o conhecimento técnico-científico dos mesmos, incluindo das suas indicações e contra-indicações.
Em resumo
O projectado decreto-lei, a ser publicado conforme está, trará, entre outras, as seguintes consequências:
a) O agravamento da já encetada destruição da rede de cuidados de saúde privados e convencionados;
b) O forte agravamento do grau de concentração em alguns mercados;
c) O agravamento da dificultação do acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde;
d) A degradação inaceitável do nível de Qualidade dos serviços prestados aos doentes;
e) E, por fim e por via das anteriores, alguma poupança para o Estado no curto prazo (o único e verdadeiro objectivo do Governo, embora não expresso), mas de consequências futuras imprevisíveis e não minimamente avaliadas, dentro de uma política de “quem vier a seguir que feche a porta”.
f) Ou seja, o resultado da aplicação deste DL seria exactamente o contrário daquilo que são os seus anunciados propósitos.
Para que não viesse a ser
Para que isso não venha a suceder, será necessário alterar o presente projecto. Para tanto, apresentamos as seguintes sugestões:
a) Clarificar conceitos;
b) Eliminar o modelo de atribuição de convenções por concurso, mantendo, apenas, um modelo aberto de adesão aos termos de um clausulado-tipo previamente conhecido, com controlo administrativo ponderado e equilibrado dos preços;
c) Não reduzir o tempo de vigência dos contratos nem do prazo para a sua denúncia;
d) Pelo contrário, aumentá-los para as áreas de prestação que exijam investimentos mais volumosos, como a Radiologia, por exemplo;
e) Instituir a renovação automática dos contratos após o seu termo de validade, apenas limitada pelo incumprimento de exigências de carácter técnico, ético ou legal;
f) Instituir um mecanismo justo de actualização de preços que seja previsível (por exemplo, indexação à inflação) e o processo negocial nos casos em que isso se justifique;
g) Instituir meios de eficaz e consequente controlo de Qualidade.
h) Quando neste projecto-lei se fala da indexação de padrões de qualidade ao financiamento, o que nos parece essencial, esta situação deverá ser discutida e concretizada com a Ordem dos Médicos e os colégios das respectivas especialidades, que são as entidades com a competência e a capacidade para definir e auditar as normas de qualidade das respectivas áreas de actuação.
O Conselho Nacional Executivo e as Direcções dos Colégios da Ordem dos Médicos, conscientes da importância da revisão do modelo de convenções, encontram-se disponíveis para colaborar num modelo de convenção que garanta maior acessibilidade e qualidade aos doentes, evite o desperdício de recursos e tenha em consideração a actual situação de Portugal.
Com os mais cordiais cumprimentos