O combate à pandemia da COVID-19 obrigou a uma reorganização dos hospitais e centros de saúde, o que passou pelo adiamento de exames, consultas e cirurgias programadas. A própria Ordem dos Médicos recomendou, desde o primeiro momento, que fosse feita uma reprogramação das agendas, salvaguardando os casos prioritários ou urgentes.
Contudo, os indicadores que nos chegam sobre o excesso de morbilidade e mortalidade e algumas situações concretas de doentes, mostram que, infelizmente, os doentes não COVID-19, por falta de estratégia e organização da tutela, estão a ser relegados para segundo plano em patologias que não podem esperar. Por exemplo, o diagnóstico, tratamento e/ou seguimento com exames complementares de doentes oncológicos, de doentes transplantados ou a aguardar transplante, de doenças neurológicas, de outras doenças crónicas como doenças autoimunes, insuficiência cardíaca, DPOC, doenças inflamatórias intestinais, insuficiência renal, diabetes, etc., doenças que podem descompensar rapidamente, em doentes com medo da COVID-19 e sem alternativa fácil a cuidados de saúde.
“Temos noção que numa pandemia como a que estamos a viver é impossível conseguirmos manter toda a atividade normal e responder aos doentes com COVID-19 no SNS. Aliás, nem seria prudente ter os médicos e restantes profissionais totalmente tomados pela atividade programada “normal” e com risco acrescido de eles próprios contraírem o novo coronavírus. Mas também não podemos aceitar que se esteja a fazer uma gestão meramente política desta pasta, em que parece que só os números da pandemia importam e todas as outras doenças e mortes deixaram de existir”, afirma o bastonário da Ordem dos Médicos.
Alguns dados vindos a público esta semana indicam que houve um crescimento sustentado da mortalidade ao longo do mês de março. Os dados da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e do CINTESIS referem uma subida de uma média de 297 mortes por dia nos primeiros sete dias de março, para uma média de 352 mortes por dia nos últimos sete dias. O ano de 2020 teve por isso os últimos dez dias de março com mais mortes dos últimos 12 anos — 3471.
Já os dados da London Business School alertam para mais 984 mortes entre 16 de março e 3 de abril, sendo que só 266 foram oficialmente atribuíveis ao novo coronavírus.
Ao mesmo tempo, segundo o Portal do SNS, no recurso a urgências hospitalares assistiu-se a uma quebra muito significativa. Só em março, registaram-se menos 246 mil episódios de urgência em relação ao mesmo mês do ano passado e menos 181 mil do que em fevereiro.
Miguel Guimarães lembra que muitos dos exames complementares de diagnóstico e terapêutica de doentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), fundamentais para diagnóstico, estadiamento e tratamento de várias doenças, eram feitos através de convenções com os setores privado e social, que também viram a sua atividade reduzida com encerramento total ou parcial de várias unidades de saúde (hospitais e clínicas) e, com o próprio SNS a requisitar profissionais que acumulavam atividade pública e privada, impedindo os médicos de exercer fora do serviço público. Isto significa que nos próximos meses podemos também ser confrontados com diagnósticos tardios, por exemplo de casos oncológicos, com impacto na possibilidade de tratamento e de cura.
“Temos uma quebra colossal no número de doentes que vão à urgência e nem sabemos o que está a acontecer nas restantes linhas de atividade. É urgente que o Ministério da Saúde crie uma task-force, eventualmente a funcionar junto da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que monitorize com muita transparência e seriedade o que está a acontecer aos outros doentes e que faça contactos diretos para que ninguém fique perdido. Os danos que a COVID-19 está a infligir na nossa sociedade já são suficientemente cruéis para podermos aceitar ainda mais danos colaterais”, reforça o bastonário.
Miguel Guimarães lamenta que a tutela não tenha acolhido a proposta da Ordem dos Médicos, feita logo no início de março, de ter hospitais públicos e privados ou áreas específicas bem delimitadas dentro dos mesmos apenas dedicados à COVID-19, até para reforçar a confiança dos outros doentes de que poderiam ir em segurança aos hospitais que não recebessem doentes infetados. Da mesma forma, não foi feita atempadamente uma articulação e integração com o setor privado e social, para minimizar o impacto nos doentes com problemas não relacionados com a pandemia.
A Ordem dos Médicos gostaria de deixar uma palavra de tranquilidade a todos os doentes e de apelar a que sigam as recomendações do seu médico assistente. As idas a uma urgência hospitalar, para os casos urgentes que exigem uma resposta diferenciada e rápida, não devem ser adiadas, muito em particular perante sintomas de doenças agudas como o enfarte agudo do miocárdio ou o acidente vascular cerebral.
Lisboa, 09 de abril de 2020
2020.04.09_NI – Não COVID-19 – Ordem preocupada com falta de resposta a doentes prioritários