Autora: Joana Mendes Pereira
Oftalmologia
No dia 27 de março de 2024, a comunidade científica despediu-se de um titã, Daniel Kahneman. Pioneiro da economia comportamental e laureado com o Prémio Nobel, Kahneman dedicou a sua vida a desvendar os mistérios do julgamento e da tomada de decisão.
Para homenagear o seu legado, proponho um tributo singular: falar abertamente sobre os nossos erros.
O raciocínio, que engloba o raciocínio clínico, funciona como um sistema dual, com um componente intuitivo e um analítico, ou como descreve Kahneman, o sistema 1 e o sistema 2. Na realidade, as suas interações são integradas e interdependentes, mas com o objetivo de simplificar a explicação, continuemos por este caminho.
O sistema 1, ou componente intuitivo, é caraterizado por primeiras impressões, reconhecimento de padrões e respostas rápidas a informação. É suscetível à influência do afeto e das emoções.
O Sistema 2, ou componente analítico, é um processo deliberado que leva à resolução de problemas. Considera os diferentes elementos, alternativas e opções. É mais lento que o sistema 1, requer um considerável trabalho cognitivo e está baseado na lógica, causalidade, inferência e probabilidade.
O componente analítico é ativado quando não reconhecemos um padrão ou vemos nele falhas. Quando, por exemplo, um achado laboratorial ou clínico não se ajusta num quadro clínico facilmente reconhecível. Por ter a capacidade de se sobrepor às primeiras impressões de reconhecimento de padrões, o sistema 2 tem menos propensão para o erro.
Não obstante, um indivíduo só inicia esta operação quando alguma característica do reconhecimento de padrões lhe parece fora do normal, já que parece existir uma tendência para voltar rapidamente ao sistema que precisa de menos esforço cognitivo.
Essa relutância em ativar o sistema analítico, pode-nos deixar ficar mal. Pensa-se que até 75% dos erros em medicina interna sejam de origem cognitiva, ou erros cognitivos.
Kahneman mostrou-nos que a mente humana, longe de ser um instrumento lógico infalível, é um sistema complexo sujeito a diversas armadilhas mentais. As heurísticas, embora úteis em algumas situações, podem-nos levar a julgamentos equivocados e decisões subótimas.
Uma experiência recente com um caso de embolia pulmonar pode nos predispor a solicitar uma angiotomografia de pulmão num doente com baixo risco, mesmo que a probabilidade real seja baixa. O viés de disponibilidade decorre da noção de que, se algo for imediatamente acessível à lembrança, deve ser importante, mesmo que não seja representativo da probabilidade geral e leva-nos a sobrestimar a probabilidade de eventos com base na facilidade com que nos vêm à mente. O viés de disponibilidade é um exemplo de um viés relacionado com a tomada de decisão. Outras heurísticas desse grupo incluem o viés de representação e o viés de omissão.
Chama-se viés de representação à tendência para interpretar os dados recolhidos de forma que encaixem numa hipótese previamente concebida.
Imagine um doente jovem, sem histórico familiar de doenças cardíacas, que chega ao consultório com dores no peito. O médico já atendeu muitos outros doentes com queixas semelhantes e diagnosticou-os com enfarte do miocárdio. Mesmo com um eletrocardiograma normal e exames cardíacos sem alterações, o médico pode tender a diagnosticar um enfarte neste doente mais jovem, apenas por ele se encaixar no perfil clássico de um doente com dor torácica.
O viés de omissão representa a nossa tendência para preferir ações que evitem perdas em vez de ações que gerem ganhos. Um médico pode optar por não realizar um procedimento invasivo, mesmo que ele possa salvar a vida do doente, por medo de causar danos.
A recolha e análise de informações devem ter em consideração a existência de vieses cognitivos, que podem distorcer a interpretação dos dados.
Ao suspeitar que o doente tem uma infeção, a observação de um aumento de glóbulos brancos pode confirmar a suspeição em vez de incitar a questão ‘Pergunto-me porque é que os glóbulos brancos estarão aumentados, que outros achados existem?’ A isto chamamos um viés de confirmação, à tendência de interpretar informações que confirmem as nossas crenças prévias, ignorando ou minimizando evidências contrárias.
Quando paramos a investigação após iniciar o tratamento da pneumonia num doente dispneico, corremos o risco de negligenciar o enfarte agudo do miocárdio secundário, que pode estar presente concomitantemente. Reconhecer a nossa tendência para suspender a procura de alternativas quando a primeira solução plausível é encontrada permite minimizar o efeito do viés de ancoragem.
O viés retrospetivo é a tendência que temos de acreditar, após um evento ter ocorrido, que poderíamos ter previsto o resultado. Um exemplo clássico desse viés seria o seguinte:
Imagine que atendeu um doente com sintomas inespecíficos, como febre e dor de cabeça. Após alguns dias, o doente desenvolve uma pneumonia. Após o diagnóstico da pneumonia, pode pensar: “Na verdade, eu já deveria ter suspeitado de pneumonia desde o início, pois a tosse do doente era um sinal claro”.
Então o que aconteceu aqui? Houve um ajuste da memória. Com o benefício da informação posterior (o diagnóstico de pneumonia), ajustou a sua memória do caso inicial, dando mais ênfase aos sintomas que se encaixam no diagnóstico final e minimizando aqueles que não se encaixam. Agora acredita que tinha todas as informações necessárias para fazer um diagnóstico preciso desde o início, quando na verdade, a retrospetiva permite uma visão mais clara e completa da situação.
Ignorar este viés pode induzir uma sobrestimação da nossa própria capacidade, levando a uma falsa sensação de segurança. Podemos não sentir necessidade de analisar o caso de forma crítica e identificar os pontos onde erramos. Além disso, podemos julgar de forma mais severa as decisões de outros colegas em situações semelhantes, acreditando que teríamos tomado uma decisão diferente.
É fundamental ter presente o conceito de viés cognitivo e a influência que ele tem no julgamento clínico. O trabalho de Kahneman lembra-nos que os nossos vieses individuais não são fenómenos isolados, fazem parte da experiência humana partilhada.
Para honrar verdadeiramente o seu legado não devemos hesitar em examinar a nossa própria falibilidade. Ao invés disso, urge compreender os mecanismos cognitivos causadores de erros, refinar o pensamento e aperfeiçoar a tomada de decisão.
Bibliografia
- O’Sullivan ED, Schofield SJ. Cognitive bias in clinical medicine. J R Coll Physicians Edinb. 2018 Sep;48(3):225-232. doi: 10.4997/JRCPE.2018.306.
- Kahneman, D. 2012 Pensar, Depressa e Devagar. Temas e Debates.