Autoras: Catarina Vilaverde Soares, Interna de MGF; Daniela P. Alves, Interna de MGF; Soraia Gonçalves, Interna de MGF
O presente trabalho pretende descrever a experiência de 3 internas de medicina geral e familiar durante 1 mês de estágio em Cabo Verde.
Durante o mês de Novembro de 2022, realizamos um estágio no Centro de Saúde de Fazenda, na ilha de Santiago – Cabo Verde, que se revelou uma experiência extremamente enriquecedora a todos os níveis.
O plano formativo do internato de Medicina Geral e Familiar contempla a realização de um estágio de um mês numa unidade de cuidados de saúde com uma população com características diferentes da unidade de colocação. Neste contexto, e com o sentimento de que estávamos perante uma oportunidade única de viver uma experiência enriquecedora e gratificante, propusemo-nos a realizar um estágio num país com características sócio-económico-demográficas realmente distintas das nossas – Cabo Verde (CV).
Cabo Verde é um País Africano de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), localizado na costa ocidental de África, sendo constituído por dez ilhas. A cidade da Praia, capital do país, alberga 27,9% da população residente e 51,1% da população da ilha de Santiago. A média de idades é de 28 anos e apenas 3,8% dos habitantes apresentam idade igual ou superior a 65.1 Deparamo-nos assim, com uma população bastante mais jovem comparativamente com a do Agrupamento de Centros de Saúde do Alto Minho, que integramos, onde 26,9% dos cidadãos apresentam idade igual ou superior a 65 anos.2 No que diz respeito à educação, a população da cidade de Praia estuda em média 8,7 anos, contudo 27,9% dos jovens (15-24 anos) não se encontram empregados nem a frequentar um estabelecimento de ensino.1
Relativamente à situação profissional, a taxa de desemprego é de cerca de 14,5% e o salário mínimo nacional ronda os 117€. 3
A realidade acima descrita, aliada à curiosidade em contactar e integrar outras culturas que nos ensinassem algo que pudéssemos trazer para as nossas vidas, bem como conhecer outras perspectivas e organizações de cuidados de saúde, foram os principais motivos que nos levaram a selecionar Cabo Verde para o nosso estágio.
Assim, em novembro de 2022 abraçamos o desafio e rumamos à Cidade da Praia onde realizamos um estágio de um mês, no Centro de Saúde (CS) de Fazenda.
O CS de Fazenda localiza-se junto ao maior mercado da ilha e próximo de uma das paragens de transportes públicos mais importantes da cidade. Devido à sua posição estratégica, dá resposta não só à população dos bairros circundantes mas também à do interior da ilha, correspondendo assim ao CS mais movimentado de Santiago. Este encontra-se dividido em áreas de atuação: Saúde da Mulher/Adolescente, Saúde Infantil e Saúde de Adultos. Existem ainda consultas de algumas especialidades, nomeadamente ginecologia, pediatria e dermatologia. Além disso, as instalações estão equipadas com uma farmácia e uma sala de medicina dentária/estomatologia. De forma a podermos contactar com as diversas áreas de atuação, frequentamos, durante uma semana cada uma delas, tendo ainda assistido pontualmente a consultas de dermatologia.
A primeira impressão do CS foi, surpreendentemente, muito positiva, um verdadeiro exemplo de como fazer tanto com tão pouco, sendo visível o empenho de todos os profissionais em prestar os melhores cuidados possíveis. Ainda que os recursos fossem muitas vezes escassos, encontramos profissionais proativos e dedicados na organização e dinamização da instituição, sendo estes a verdadeira alma do sistema de saúde cabo-verdiano. Apesar da azáfama do dia-a-dia, fomos recebidas de braços abertos e sentimo-nos sempre integradas na equipa.
Nas consultas de Saúde de Adultos pudemos assistir e participar na avaliação, seguimento e orientação terapêutica de grupos de risco como doentes com diabetes mellitus (DM), hipertensão arterial (HTA), tuberculose e Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). O agendamento para cada dia é programado, no entanto o atendimento é feito por ordem de chegada, dando prioridade a pessoas idosas ou com maior afetação do estado geral. Para além das consultas programadas, cada dia tem a “demanda espontânea”, que corresponde à nossa consulta aberta e onde percebemos a importância que ganha o exame objetivo quando os recursos disponíveis são mais escassos.
Tal como em Portugal, encontramos vários desafios na promoção de estilos de vida saudáveis, alteração de comportamentos e prevenção secundária, nomeadamente o facto de se tratar de uma população menos instruída, com alguns mitos enraizados, muito centrada na doença aguda e com dificuldades económicas significativas.
A nível da patologia crónica, o seguimento da DM e HTA ocorre de forma semelhante à realizada em Portugal. No que concerne à patologia infecciosa, a prevalência da tuberculose em CV, em 2014, era de 236 por 100.000 habitantes e a prevalência do VIH, em 2018, de 60 por 100.000 habitantes.6 Assim, representam patologias crónicas frequentes na prática clínica dos cuidados de saúde primários, com necessidade de rastreio oportunístico e sistemático, contrastando com a realidade portuguesa. O contato com estas patologias constituiu uma mais valia para a nossa formação, aumentando a nossa confiança na gestão das mesmas, o que poderá ser valioso na nossa prática clínica futura.
No que diz respeito às consultas de Saúde da Mulher/Adolescente, o conceito da vigilância é semelhante ao português, contudo as realidades são bastante diferentes. CV apresenta uma percentagem de gravidez na adolescência de 16,0%.4 Segundo os dados de 2018 do inquérito demográfico e de saúde reprodutiva, a idade mediana ao nascimento do primeiro filho era de 20,7 anos.4 Por outro lado, em Portugal a idade média das mães ao nascimento do primeiro filho, em 2021, era de 30,9 anos.5
Nesta área de atuação existem três tipos de consulta: planeamento familiar, vigilância da gravidez de baixo risco e consulta do adolescente. As consultas são realizadas, na maioria das vezes, pela equipa de enfermagem, sendo esta a principal diferença em relação à dinâmica portuguesa. Importa ainda ressalvar outras particularidades muitas vezes impostas pelas condições sócio-económicas do país, que enumeramos de seguida.
No planeamento familiar, os métodos contraceptivos mais utilizados são o progestativo injectável, a pílula combinada (que contém suplementação de ferro na semana correspondente ao placebo) e o implante subcutâneo (sendo colocados dois dispositivos para perfazer a dosagem adequada). A nível de rastreios, a citologia é realizada a cada três anos e as utentes têm que adquirir o próprio espéculo.
Relativamente à vigilância da gravidez de baixo risco, apesar do plano ser semelhante ao nosso, a sua aplicação torna-se, muitas vezes, difícil: as grávidas chegam à primeira consulta já com um tempo de gestação avançado; a maioria tem apenas possibilidade de realizar uma ecografia durante toda a gestação devido a fatores económicos. De forma a contornar estas adversidades, o rastreio do VIH e VDRL é realizado oportunisticamente no primeiro contacto com a grávida, através de testes rápidos; o exame físico torna-se uma ferramenta imprescindível, em particular as manobras de Leopold, para avaliação da posição fetal e o doppler para avaliar a vitalidade do feto.
Na consulta de saúde do adolescente é realizado o planeamento e vigilância da gravidez das adolescentes, sendo mais uma vez de destacar a elevada utilização do progestativo injectável, método não utilizador dependente.
As consultas de Saúde da Mulher/Adolescente constituíram uma oportunidade de incentivar as mulheres e adolescentes a planear as futuras gestações, assim como promover os diferentes métodos contraceptivos e praticar o exame físico na grávida.
Nas consultas de Saúde Infantil constatamos que o programa de vigilância é semelhante ao nosso, sendo, no entanto, aplicado apenas até aos 5 anos. Após essa idade as crianças são avaliadas apenas em contexto de doença aguda. A maioria das consultas é realizada pela equipa de enfermagem que presta todos os conselhos relacionados com os cuidados antecipatórios bem como sinais e sintomas de alarme. Sempre que necessário, a criança é encaminhada para a consulta médica. Tendo em conta tratar-se de uma população jovem, com um número significativo de crianças, a afluência a estas consultas é elevada, o que não compromete a avaliação do desenvolvimento psicomotor, que apesar de ser realizada de uma forma mais informal e breve não deixa de ser efetuada. Além das diferenças expectáveis do programa de vacinação local, também a suplementação é diferente da nossa, sendo disponibilizado a todas as crianças a partir dos 6 meses um multivitamínico com ferro.
Nesta área de atuação, fomos enquadradas na equipa, realizando as consultas de vigilância com o apoio da enfermagem sempre que necessário, devido às barreiras linguísticas. Participamos ainda na consulta médica, com a clínica geral dedicada apenas à saúde infantil.
Adicionalmente tivemos oportunidade de colaborar numa ação de educação para a saúde na comunidade, juntamente com a Delegacia de Saúde da Praia e o CS de Fazenda. Esta atividade decorreu no dia 14 de novembro, Dia Mundial da Diabetes, junto dos trabalhadores do mercado municipal da Praia. A população alvo foi selecionada devido ao seu estilo de vida: mulheres sedentárias com hábitos alimentares pouco saudáveis.
Por fim, em regime de voluntariado, em colaboração com o Centro de Intervenção Comunitária do Fonton, um dos bairros mais problemáticos da Praia, tivemos oportunidade de organizar uma feira de saúde que decorreu durante o dia 20 de novembro. No período da manhã realizamos rastreios de DM e HTA e atividades para as crianças, onde se incluía a sensibilização para a lavagem dos dentes e das mãos. No período da tarde, as atividades foram dirigidas aos adolescentes. Com o intuito de promover a saúde sexual, construímos um jogo de tabuleiro com várias questões sobre métodos contracetivos e doenças sexualmente transmissíveis (DST). Adicionalmente dinamizamos um segundo jogo a fim de sensibilizar para a transmissão de DSTs.
A nível profissional este estágio foi uma experiência extremamente enriquecedora. Tornamo-nos médicas mais completas, mais atentas à anamnese e exame físico, aprimoramos a nossa capacidade de adaptar a prática clínica à realidade de cada doente, e de estabelecer prioridades. Foi ainda uma ótima oportunidade de desenvolver a nossa capacidade de comunicação e habilidades interpessoais.
Não podemos deixar de referir o enorme contributo que esta experiência teve para nós em termos pessoais, mostrando-se realmente transformadora. O povo cabo-verdiano sabe receber e integrar como nenhum outro, nas palavras de alguém que nos é querido: “Quando chegas a Cabo Verde és cabo-verdiano!”. Assim, durante este mês, tivemos a oportunidade de integrar verdadeiramente a comunidade. Aprendemos a diminuir o ritmo e aproveitar cada momento e cada pessoa. Aprendemos a língua, a música, a dança, a gastronomia, os hábitos, as dificuldades e um bocadinho da capacidade de ser feliz com o mais simples.
Referências bibliográficas
1- Instituto Nacional de Estatística. Dia do Município da Praia 2022 [Internet][cited 2023 Apr 24]. Available from: https://ine.cv
2- Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde primários [Internet][cited 2023 Apr 24]. Available from: https://bicsp.min-saude.pt/pt/biufs/1/10001/1160172/Pages/default.aspx
3-Observador. Cabo Verde aumenta salário mínimo e atualiza ordenados mais baixos no setor público. [Internet] 2022 Out 1. [cited 2023 Apr 24]. Available from: https://observador.pt/2022/10/01/cabo-verde-aumenta-salario-minimo-e-atualiza-ordenados-mais-baixos-no-setor-publico/
4- Instituto Nacional de Estatística. Inquérito Demográfico & Saúde Reprodutiva (ISDR-III) 2018. [Internet] Praia: Instituto Nacional de Estatística, 2019 [cited 2023 Apr 24]. Available from: https://ine.cv/publicacoes/inquerito-demografico-saude-reprodutiva-isdr-iii-2018/
5-Pordata. Idade média da mãe ao nascimento do primeiro filho. [Internet] Lisbon: Fundação Francisco Manuel dos Santos, c2010-2022 [cited 2023 Apr 24]. Available from:https://www.pordata.pt/Portugal/Idade+m%C3%A9dia+da+m%C3%A3e+ao+nascimento+do+primeiro+filho-805
6-World Health Organization Regional Office for Africa. Cabo Verde: HIV/AIDS. [Internet] Brazzaville: WHO, 2021 [cited 2023 Apr 24]. Available from: https://aho.afro.who.int/trackers/cv?tr=hiv&des=VIH%20/%20SIDA