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Medicina Geral e Familiar além-fronteiras (Estágio em cuidados Primários no Brasil)

Autora: Ana Luisa Albuquerque, Médica Interna no 4º ano de MGF na USF Coimbra Centro (ACeS Baixo Mondego)

 

Os programas de intercâmbio são importantes ferramentas de formação e objetivam a promoção da consolidação, expansão e internacionalização da ciência e da cultura. São sem dúvida oportunidades únicas de explorar novas culturas, novos contextos epidemiológicos, novas realidades. A experiência de viver em outro país abre novas perspetivas, auxilia na superação de dificuldades, pois deparamo-nos com uma necessidade de adaptação a um novo ambiente, enfrentar desafios e crescer na perspetiva pessoal e sobretudo profissional. Promove um desenvolvimento psicológico, autoconfiança, amadurecimento, independência, capacidade de nos relacionarmos e nos sentirmos “cidadãos do mundo”.

Durante o internato de Medicina Geral e Familiar os internos têm o privilégio de dispor de vários programas de intercâmbio ao seu alcance, sejam eles europeus, através da Wonca Europa ou, nos outros Continentes, através do programa Family Medicine 360º, que nos apoiam e reconhecem a importância destes intercâmbios como ferramenta de formação de futuros médicos de família.

Desde o início do internato senti que na minha formação deveria ser enriquecida com a realização de um intercâmbio. Não um qualquer intercâmbio, mas sim uma experiência onde pudesse vivenciar a Medicina Geral e Familiar além-fronteiras e ajudar população mais carenciada. Assim, ao abrigo do programa Family Medicine 360º, da organização Mundial de Médicos de Família, WONCA, foi-me possível concretizar um programa de intercâmbio internacional, durante o meu 3º ano de internato.

Tive a oportunidade de passar um mês no Brasil: duas semanas no Rio de Janeiro e outras duas semanas em João Pessoa, possibilitando-me assim a aquisição de novos conhecimentos científicos e culturais, e explorar um novo contexto epidemiológico, em zonas distintas do mesmo país.

A escolha do Brasil deveu-se não só ao facto de ser um país que sempre me fascinou, mas também pela facilidade da língua, e ainda pelo facto da minha unidade de saúde, USF Coimbra Centro, receber vários internos brasileiros em que a convivência e a partilha de experiências sempre me foi cativando.

Aventurei-me assim a ir, sozinha, para o Brasil, dividindo o meu intercâmbio entre, como já referi, dois locais bem diferentes — Rio de Janeiro e João Pessoa.

 

Brasil e cuidados de saúde

O Brasil apresenta uma extensa área geográfica e grandes assimetrias bem notórias ao nível dos cuidados de saúde primários, CSP. Nove anos após a criação do serviço Nacional de Saúde, SNS, em Portugal, o Brasil, em 1988, implementou o SUS, Sistema Único de Saúde, com o objetivo de oferecer, de forma gratuita, saúde a todos. Contudo, só durante a década de 90, se iniciou um grande investimento ao nível dos CSP, ocorrendo a criação das Unidades de Saúde Familiares, que ainda continuam em crescimento e desenvolvimento.

 

Rio de Janeiro

A minha experiência começou no Rio de Janeiro, capital do brasil, conhecido tanto pela sua beleza como pelas suas favelas. Tive a oportunidade de ficar alocada à clínica da família Maria do Socorro, na favela da Rocinha, a maior favela pacificada do Rio de Janeiro, com aproximadamente 100.000 pessoas.

Existem outras duas clínicas dentro desta favela para responder a este elevado número de habitantes. Aqui pude, durante 2 semanas, conhecer  uma realidade bem diferente, não só pelo contexto epidemiológico (notória a grande incidência de tuberculose e dengue devido ás fracas condições de saneamento, esgotos a céu aberto, falta de ordenamento, fracas construções….), social (notória a grande incidência de problemas familiares e consequente violência doméstica ) e clinico, mas também pelo medo constante que faz parte do dia a dia destes médicos. Tiroteios recorrentes, planos de fuga organizados e a incerteza vivida diariamente.

Esta clínica oferece os seus serviços das 8 às 20 horas e tem ainda uma Unidade de Pronto de Atendimento, 24 horas por dia. Apesar de inserida numa favela, é uma clínica com bastantes recursos, dispondo de dentista, farmácia comunitária, laboratório de análises, clínica psiquiátrica, nutricionista, ginásio, aulas de yoga e pilates, homeopata, psicólogo, serviço de internamento de curta duração.

É ainda uma Unidade bastante dotada de equipamento e programas informáticos, muito semelhantes ao Sclinico. Ainda assim, as referenciações hospitalares continuam a ser efetuadas por carta, o que causa um grande atraso no agendamento de consultas a nível hospitalar.

De notar que a maioria do trabalho aqui exercido por mim foi o acompanhamento das equipas de saúde em campanhas de vacinação e na realização de domicílios onde presenciei 3 situações de tiroteio que nos obrigaram a fugas, devidamente coordenadas pelos gentes comunitários que acompanham sempre a equipa médica nestas visitas.

Uma das grandes diferenças relativamente a Portugal situa-se na elevada taxa de domicílios realizados, sempre com toda a equipa de saúde (agente sanitário, enfermeiro, médico especialista e interno) com o principal objetivo de avaliar as condições de higiene e comodidade dos domicílios em questão.

O tipo de consultas mais realizados foram consultas do dia assim como a maioria dos tratamentos aplicados baseavam-se em terapias naturais, (auriculoterapia, agulhamento em seco) pois falamos de uma população com baixa literacia em saúde e, como tal, não entende ainda a importância das consultas de vigilância agendadas, nem a importância da toma de determinada medicação. As consultas são maioritariamente realizadas pelos internos. No momento estavam presentes 14 internos, todos de diferentes anos de formação. Os orientadores permaneciam apenas numa “sala de apoio”, sendo os internos responsáveis pelas consultas.

 

João Pessoa

Durante a segunda metade do meu intercâmbio, a 2500 km de distância do Rio de Janeiro, realizei o meu estágio em João pessoa, cidade do estado de Paraíba, onde fiquei alocada á Unidade de Saúde Integrando Vidas.

Esta Unidade não estava inserida numa favela propriamente dita, mas sim no Bairro João Paulo II, um dos bairros mais carenciados e problemáticos da cidade. Apesar de tudo arrisco-me a dizer ser um local mais seguro e tranquilo em comparação com o Rio de Janeiro.

A unidade, construída a céu aberto devido ao calor extremo desta região, serve cerca de 20.000 utentes, com horário de funcionamento das 07:00 h ás 18:00 h. As condições, no seu interior, são muito escassas, possuindo apenas uma farmácia comunitária e uma horta coletiva que serve como terapia para alguns doentes do foro psiquiátrico. Não dispõem de computadores, sendo todos os registos e envios a consulta hospitalar feitos de forma manual e enviados por correio. Apesar de ser uma unidade mais modesta, não é esse um impedimento de manter os melhores cuidados de saúde e acessibilidade aos seus utentes.

Devido à escassez de recursos e de medicação nesta unidade, a medicina alternativa é muito usada: horta comunitária para cultivo de plantas medicinais, aromaterapia, auriculoterapia, agulhamento a seco, massagem terapêutica. Recorrem também muito ao uso de terapia comunitária, isto é ida a lares de idosos, a grupos de igreja, a infantários, a bairros mais carenciados promovendo atividades físicas e lúdicas, transmitindo carinho empatia e campanhas de sensibilização.

Aqui o conceito de consulta agendada também não existe, mas apenas o conceito de consulta do dia. Pude assim participar, em colaboração com os outros 7 internos, e à semelhança do Rio de Janeiro, neste tipo de consulta e ajudar na prática de “terapia comunitária “, realizar terapias naturais, tão queridas e usadas nesta região do Brasil e participar ainda  em campanhas de sensibilização da população. Nesta vertente participei na campanha do Outubro Rosa, campanha de sensibilização para alertar para a importância do rastreio do cancro de mama, e ainda em campanhas para sensibilização para os perigos da obesidade e de comportamentos aditivos.

Apesar de inserida num bairro problemático, os utentes desta unidade são agradecidos aos profissionais de saúde, que protegem nas várias situações, nomeadamente nas situações de violência e nos constantes assaltos à unidade.

 

Outro tipo de cuidados

É de notar que em ambos os locais onde estive a medicação prescrita pelos MGFs são fornecidas de forma gratuita. Ainda que a lista de medicamentos disponíveis seja curta, cobre-se a maioria dos medicamentos prescritos pelo MGF. A atual crise política que o país atravessa levou à falta de investimento na área da saúde, o que contribui para que a maioria dos medicamentos estejam esgotados, tendo os doentes como solução recorrer a farmácias  populares, fora das Unidades de Saúde, onde também alguns medicamentos para doenças crónicas (HTA, diabetes, asma, dor crónica…) podem também ser dispensados de forma gratuita. Todos os outros medicamentos que não constem nesta lista não são comparticipados, ao contrário do que acontece nas farmácias portuguesas, razão pela qual a população brasileira recorre a grande maioria das vezes a terapias naturais, assim como também os MGF acabam por as prescrever.

Nas Unidades de Saúde e nos Hospitais do SUS não existem taxas moderadoras.

 

Internato

O internato médico no Brasil tem uma duração de apenas dois anos, e os internos passam entre 55 a 60 horas semanais nas suas Unidades de Saúde. No Rio de Janeiro ficam atribuídos entre dois a três internos a cada orientador e desde o início do seu percurso é-lhes concedida uma grande autonomia, mas sempre com o orientador na retaguarda. Em João Pessoa os internos pertencem à Unidade e não têm um orientador fixo como no Rio de Janeiro e em Portugal. Em cada período de trabalho há um orientador escalado para dar orientação e discutir casos com o interno.

Os estágios hospitalares são de curta duração, sendo as especialidades de Pediatria, Ginecologia e Dermatologia as mais escolhidas por serem as mais aplicadas na MGF.

Há sem dúvida imensas diferenças no internato ao nível de cada região. Ainda assim, a avaliação final do interno é feita através de um projeto final de residência avaliado pelos diversos orientadores, não havendo necessidade de realização de exame final.

 

Conclusão

Com esta experiência não me restam dúvidas que escolhi a especialidade certa. Ainda que nas zonas onde estive a prevenção primária ainda não esteja tão implementada como em Portugal, o médico de família continua a ser o responsável, em primeiro lugar, pela prestação de cuidados abrangentes e continuados a todos os indivíduos que procuram cuidados médicos, independentemente da sua idade, sexo ou religião. Prestam cuidados a indivíduos no contexto das respetivas famílias, comunidades e culturas, respeitando sempre a autonomia dos seus pacientes. Reconhecem ter também uma responsabilidade profissional para com a sua comunidade. O médico de família continua a ser o “apoio” que sempre está presente nos bons e nos maus momentos.

O que vivenciei neste intercâmbio influenciou a minha prática clínica, pois permitiu-me valorizar ainda mais a importância da ligação da Unidade de Saúde com a Comunidade e demonstrou-me como nós, Médicos de Família, nos adaptamos a qualquer adversidade, sempre em prol dos nossos utentes. Veja- se o exemplo da nossa adaptação de trabalho desdobrado e multifacetado nesta pandemia Covid-19.

Foi uma experiência enriquecedora a nível pessoal e profissional, e fez-me sem dúvida valorizar e agradecer a segurança e a saúde pública que Portugal oferece aos seus cidadãos.

Como o lema para o dia Mundial do Médico de Família de 2020 refere “Somos médicos sempre na linha da frente”.

 

Bibliografia:

  • Prefeitura do Rio de Janeiro, página oficial da internet, acesso em Outubro de 2020, disponível em https://prefeitura.rio/
  • Ministério da Saúde Brasileiro, página oficial da internet, acesso em Outubro de 2020, disponível em https://antigo.saude.gov.br/
  • Favela da Rocinha/Clinica da Família Maria do Socorro , página oficial da internet, acesso em Outubro de 2020 , disponível em https://faveladarocinha.com/1123-2/
  • Prefeitura de João Pessoa, Página oficial da internet, acesso em Outubro de 2020, https://www.joaopessoa.pb.gov.br/
  • Universidade Federal Paríba:UFPB, Página oficial da internet , acesso em Julho de 2020 https://www.ufpb.br/
  • Residência em Medicina De Família e comunidade no Rio de Janeiro, página oficial da internet, acesso a Outubro de 2020, http://www.rmfcrio.org/
  • Sociedade Brasileira Medicina de Família e Comunidade, página oficial de internet , acesso em Outubro de 2020,  http://sbmfc.org.br/