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Jovens, querem ser médicos? Não!

Autora: Carolina Aires

Jovens, querem ser médicos? Não. Querem ser Médicos de Família? Não! Não! Não!
Estou na casa dos 30, sou casada, tenho 2 filhas pequeninas (giras e simpáticas, sou uma mãe babada), todos temos saúde e vai havendo folga orçamental para as contas mensais. Pais com pouca doença. Amigos bons. Tudo para ser feliz!
#sóquenão
Sou Médica de Família desde 2017. Estou colocada a 70km de casa. Gasto 450 euros em gasóleo e portagens. A vaga era carenciada no concurso anterior, mas no meu deixou de ser.
Chego à extensão onde estou alocada às 10h (faço 30h/semana porque uma das bolachinhas tem menos de 1 ano de idade). Tenho as secretárias clínicas esgotadas, nervosas e irritadas. Fora as pessoas que elas já mandaram embora, as conversas agressivas que ouviram, os insultos de que são alvo, há todos os dias a mesma andança: umas 3-4 baixas por doença profissional, 3-4 pessoas “só para dar uma palavrinha”, 4-5 utentes que precisam de consulta “do dia”.
Aqui começa o grande drama. Uns querem consulta para mostrar os exames que eu pedi há 2 meses, e que ainda ninguém viu. Outros querem consulta do dia porque não conseguem marcar consulta programada em tempo útil (a meados de abril já tinha maio cheio, e só não tinha junho porque as agendas estão fechadas à espera dos novos horários). Outros trazem carta da urgência do hospital onde estiveram ontem “para o MF passar exames com urgência”. Outros porque foram ao privado (porque não conseguem ter consulta comigo) e têm exames para eu passar credenciais. Outros, vá, têm febre ou tosse ou dores de garganta.
Depois de um esforço para tentar dar resposta a todas as solicitações, sempre com um sorriso na cara e a respirar fundo para não começar a gritar ou a chorar, começo a consulta programada das 11h com 1h de atraso. O sítio está fechado das 13 às 14h, por isso é 1 hora sem entrar ninguém. Não almoço, mas também não há problema porque estou de dieta.
Tenho que referenciar os utentes da semana passada para consulta hospitalar, mas ainda não consegui ter tempo. Passo umas receitas se a PEM deixar. Vejo as receitas todas anteriores, reimprimo as receitas, risco o número de embalagens que ainda há, a marcador florescente a data de validade. Escrevo nas notas e imprimo o recadinho “ainda tem até julho 3 embalagens deste, 1 do outro… deve fazer melhor uso das receitas”. Ahhh, mas já agora vejo que é diabético e que não tem consulta há mais de 1 ano… Peço umas análises, reescrevo o recadinho acrescentando que deve fazer as análises e deixar para eu ver em consulta não presencial porque eu ainda não tenho agenda.
Entretanto a enfermeira pede-me para ir à sala de pensos ver uma ferida que não tem bom aspecto.
Como tenho que atravessar o corredor é mais 1 ou 2 “posso dar-lhe uma palavrinha? É que a minha mãe tem 93 anos esta acamada e precisava que a dra fizesse um domicílio”. Contra todos os bons princípios médicos, tenho que recusar. Não tenho tempo. Não tenho tempo para os que vão ao gabinete, muito menos para me deslocar à casa das pessoas.
A ferida precisa de antibiótico. A pv¥@ da PEM não está a funcionar…. Devia escrever email para o servicedesk a reportar mais uma falha, mas tenho que me despachar. Escrevo no SClinico um recadinho para a farmácia dispensar o ATB por favor, visto não ter PEM. Podia passar à mão, mas não tenho receitas manuais ainda que as tenha pedido há 5 meses (e as vinhetas que já são minhas, pagas por mim). Amanhã não me posso esquecer de passar a receita. E a fisioterapia do sr em cadeira de rodas, que a família já me pediu há 2 semanas e a Assistente Social vai lá para a semana….
Recomeço as consultas da tarde a horas ou com um atraso de 15min. A mesma saga. Rezar a todos os santinhos e anjos que o sistema funcione. Não resulta, se calhar porque não sou crente em nenhum Deus nem no Sr Dr Henrique Martins. Consultas demoradas, muitos problemas para resolver – é difícil adiar assuntos, porque todos são importantes e porque não tenho vaga nos próximos tempos. Já agora, tento dar resposta a quase tudo. A enfermeira liga porque há mais um recém nascido, não tem médico… Para quando e para quem marcar? Não posso ver, não tenho tempo. “Oh dra, mas é um bebé prematuro, e os pais são anti-vacinas… era mesmo melhor ver”.
Ahhh, já disse que estou a fazer 30 horas e tenho 1907 utentes e 2540 unidades ponderadas? Já disse que desde janeiro 2019, quando comecei a trabalhar naquele lugar, que aguardo que façam uma rectificação de utentes no meu ficheiro? Que é ilegal para 40 horas? Já nem falo no ajuste que devia haver tendo em conta que tenho uma redução de 25% de carga horária.
Somos uma UCSP com 2 pólos. Se todos os ficheiros fossem revistos, ficávamos com 2285 UP extra. Façam contas!… Dava para mais um médico! Isto sem contar com os 622 utentes sem médico. Saiu o mapa de vagas para recém especialistas a madrugada passada. Sabem quantas vagas temos na nossa unidade??? Zero. Porque o ficheiro ainda não está criado (culpa de quem?? Director executivo do ACeS? Equipa informática? Nossa porque não insistimos as vezes necessárias?) e porque a Dra X que está de CIT ainda não está reformada (é só em julho daqui a 1 mês). Ahhhh, a outra colega que está de licença de maternidade? Até puseram lá um colega sem especialidade a fazer de médico de família, apenas que o contrato dele acaba agora em junho. Somos é uns queixinhas!
Acabo a última consulta. Já devia ter saído às 16 h, mas ainda tenho tanto para fazer… passo mais umas receitas que a PEM agora está a dar, mais uns recadinhos, peço 1 consulta, vejo os exames que deixaram, mas só assim por cima para ver se não há nada grave e urgente pq não tenho tempo para os registar. São 17h, a secretária pergunta “ainda fica?”. Já fiquei várias vezes. Mas eu tenho algum medo de ficar sozinha no meu local de trabalho, já fui ameaçada e já tive que sair dali escoltada pela GNR. Ok, eu também vou embora.
E vou durante os 70 km que me separam de casa com um aperto no coração, um nó na garganta, a cabeça cansada e sobretudo preocupada “terei deixado escapar algo?”. Tenho que me concentrar no caminho para não me estampar. Ligam do infantário porque a menina está a fazer febre. Valham-me os Avós que amanhã podem ficar com as duas. Depois de uma noite mal dormida entre ameaças ao caraças do Ben-u-ron que agora é à prova de bala, mudar lençóis porque uma vomitou, dar colinho à bebé que chora vá lá saber-se porquê…. Só custa mesmo sair de casa com a de 2 anos aos gritos “fica comigo Mamã”. Não posso filha, tenho meninos e outros senhores que estão doentes e a Mamã tem que os ir curar. “Mamã, eu estou doente, fica a curar-me a mim”. Isso dói. Dói muito.
Mas não posso faltar aos meus utentes. Falho à minha filha. Não posso ficar em casa porque tenho que ir passar baixas para as mães que não foram trabalhar porque têm os filhos doentes. Non sense, quiçá….
Chego atrasada. Tenho que justificar no próprio dia (acho que tenho 48h, não sei). Por causa das tosses e para não me acusarem de nada, ligo ao pediatra ou ao Médico de Família “a Inês está doente, passa-me um papel por favor. Não tenho tempo de ir aí. Se a coisa piorar, à noite falamos”. Ainda perguntei ao ACeS se podia usar as horas que todos os dias faço a mais para ir “gozando” nestas ocasiões. Disseram que não, se faço a mais é culpa minha. Eu depois ainda digo para mim mesma, baixinho “Ai é???? Vocês vão-se lixar!! Logo à tarde eu vou sair às 16 h nem que tenha um utente em gabinete”. Claro que é só fúria momentânea , porque às 16 h ainda não saí, ainda não fiz a acta da última reunião de serviço, ainda não pedi as consultas hospitalares que já vão com um atraso considerável (e ainda recebi 2 recusas porque pedi para um hospital que não é o de referência – que tem 500 dias de espera), e o utente em gabinete é que se lixa se eu não o atender porque a minha hora está a passar.
Queria ir a um curso de diabetes, há medicação nova que ainda não estou muito à vontade. E devia voltar a fazer o SAV que fiz há 5anos, nunca usei mas nunca se sabe (diabo-seja-cego-surdo-e-mudo, que não me calhe a mim) . Mas não posso dar-me ao luxo de me ausentar 2 dias. Até porque para o próximo mês estou de férias, já vão ser 2 semanas fora. Não dá. Tenho que estudar em casa. Quando as miúdas acabarem com as viroses à vez e estiverem a dormir a coisa fica mais calma e já dá para olhar para uns resumos recentes. Coisas simples e básicas, por favor, que agora não dá para muito mais.
E o dia avança. Vão acumulando-se os pedidos de receitas, os MCDT’S que eu digo para deixarem para eu ver em consulta não presencial (zero minutos por semana para tais actividades). A secretária liga, a sra dos MCDT’S que ontem não deu para passar porque o sistema não estava a dar já foi lá 2 vezes “óh dra dá para passar? É que ela já vociferou aqui vários palavrões…”. Passo, contrariada, porque mais urgente era pedir a colonoscopia ao sr que veio do hospital com retorragias – e por ele não interrompi nenhuma consulta. Mas como a sra está lá fora a ser mal educada e porque as secretárias, coitadas, não têm culpa, eu passo.
Chegam as 16h e eu fico. Já é habitual!…. E saio às 17h, tenho tanta coisa pendente… devia ficar mais um pouco, mas a Avó já ligou “uma chora, a outra vomita”…. E na verdade, eu precisava mesmo era de 1 semana ali sem utentes, só para tratar do que já está em espera – rezo outra vez a todos os santinhos e anjinhos que não seja nada grave ou urgente. Ficar só mais um pouco era paliativo.
Venho embora triste. Não estou a ser boa médica. Não estou a fazer o meu trabalho como deve ser. Sem tempo, sem paciência, sem me actualizar. Lá vem a viagem de 70km com o aperto no coração, um nó na garganta, a cabeça cansada e muito muito preocupada “terei cometido algum erro? Deixei escapar alguma coisa?”
Sou uma pessoa de bem com a vida, alegre, bem disposta, optimista. Sempre encarei os problemas com ânimo para me auto-superar. Neste momento, estou cansada, desiludida, desapontada, triste, preocupada.
Não me dá prazer ir trabalhar – mas adoro o que faço.
Não quero ter que dizer não às pessoas – sei que mereciam uma consulta.
Não quero correr o risco de errar por falta de tempo – não quero ter culpa.
Não quero ter medo dos utentes mais agressivos – e desses há por lá muitos…
Há a luz ao fim do túnel? Não a vejo…
Hoje, 17 de Maio 2019, dei por mim a pensar “será isto o burnout?”