Intelligentia Artificialis: ex-machina
Nos últimos meses a imprensa foi inundada de artigos de opinião, reportagens e entrevistas sobre a inteligência artificial (AI): textos filosóficos (ex: António Guerreiro no «ípsilon» a 17 de fevereiro 2023), práticos, alarmistas… tem havido de tudo, até capas de jornais. Há 20 anos teríamos dito que correm rios de tinta. A tinta agora é virtual porque as letras são reproduzidas em écrans luminosos. Chama-se a isto a era do digital. Mas as metáforas permanecem, sobretudo para quem atravessou os últimos 50 anos e pode dar-se ao luxo de comparar os tempos porque simplesmente os viveu na primeira pessoa. Até agora nada de novo. O que trouxe este tema subitamente para a ordem do dia foi a utilização crescente do Chatgpt. Este Chat Generative Pre-trained Transformer, é como o nome indica um programa de computador (ou uma aplicação para dispositivo móvel) que permite conversar em tempo real e fazer perguntas sobre os mais variados temas obtendo respostas com um grau de fiabilidade considerável. Digo considerável, mas podia dizer variável porque não é perfeito: também dá respostas com erros, alguns básicos. Há quem diga que é mais uma prova da sua pálida semelhança com o humano, o que se chamava no passado o «humanóide», uma palavra (como tantas…) caída em desuso. Não é preciso chegar a 2023 para conhecer o potencial intelectual destes programas. Há 25 anos o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, perdeu o campeonato contra um programa de computador IBM saído naturalmente de mãos (ou cabeças…) humanas. Ele ficou frustrado, mas a verdade é que não se pode ter tudo. Ou temo-nos a nós ou temos as máquinas e os instrumentos que nos substituem ou pelo menos nos facilitam a vida. Negá-lo é negar a evolução do mundo, o que é plausível. O velho do Restelo, bem conhecido dos portugueses é uma figura a ter em conta, não o subestimemos como fonte de reflexão. Por curiosidade o chatGPT conhece-o bem…. Em última análise sem a descoberta do fogo, um marco essencial na história da humanidade, havia menos guerras e menos incêndios florestais. A verdade é que sempre sonhámos possuir robots para as tarefas pesadas (ou nem tanto) e cedo percebemos como nos podem deixar ficar mal. Quando as impressoras da consulta falham (o que acontece todos os dias, porque todos os dias os utentes idosos nos pedem receitas e marcações em papel…) vêm-nos invariavelmente à mente as cenas hilariantes dos filmes sublimes do Jacques Tati, que satirizam a vida moderna e as novas tecnologias (Mon oncle, 1958 e Playtime, 1967). Ou pelo menos vêm á mente de quem os viu. A arte deixa um rasto de espanto, desassossego ou deslumbramento no espírito. É talvez o grande desafio para a AI porque não é concreta. É difícil programar algo que não sabemos definir, só queremos ser surpreendidos. A imprevisibilidade joga contra a AI neste campo onde a própria variabilidade genética é enriquecedora. Tantas vezes é o louco ou o excêntrico a ser reconhecido séculos depois como o artista imortal.
Dos argumentos a favor e contra a AI o que se me afigura mais assustador é o que alerta para as consequências da sua utilização a longo prazo no cérebro humano: a perda progressiva de capacidades por «preguiça neuronal» o que ao nível da evolução da espécie parece catastrófico. Um exemplo banal tem a ver com a massificação do uso das máquinas de calcular ou da escrita inteligente nos telefones móveis. Poucos de nós farão atualmente contas rápidas de cabeça. A maioria perdeu destreza manual na caligrafia e esqueceu a ortografia elementar. Chegados aqui a questão que se coloca é: podemos ou devemos interromper o caminho imparável da tecnologia digital nomeadamente a AI? Não me parece. Temos de usá-la como aliada porque veio para ficar. A medicina e a dermatologia não podem excluir-se da evolução do mundo e da sociedade. Quando se abordou este assunto numa reunião da SPDV há uns anos houve colegas, estranhamente os mais jovens, principais utilizadores das novas tecnologias, que receosos do desemprego iminente, se manifestaram abertamente contra. O futuro pós-pandemia (e não só…) mostrou que estavam errados. A dermatologia pela sua especificidade clínica foi das primeiras especialidades a usufruir da teleconsulta (EUA, 2018). Os livros de dermatologia já incluem um capítulo denominado «teledermatologia e exame objetivo da pele, cabelo e unhas». Dão dicas sobre a forma de tirar o melhor partido possível desta prática de observação dermatológica. A nível caseiro todos recebemos fotografias pelo WhatsApp domingo à hora de almoço, vindas de amigos, conhecidos ou colegas que pedem um diagnóstico dermatológico rápido naturalmente seguido de terapêutica… Também sabemos que em mais de 90% dos casos acertamos sem necessidade de consulta presencial. Negar depois a utilização institucional deste instrumento de trabalho seria incompreensível da nossa parte. Como tal, está instituída a figura da teleconsulta nas plataformas de saúde públicas e privadas. Os pedidos de consulta de dermatologia, chamada referenciação ou P1 provenientes da medicina-geral ou familiar obrigam à anexação de fotografia clínica. Esse é um caminho já trilhado. Como as centenas de mails ou mensagens que recebemos diariamente de utentes ou colegas para «tirar dúvidas». Isto levanta outro problema. Como gerir ou contabilizar este trabalho permanente e fora de horas? Tem de ser enquadrado do ponto de vista laboral e legal. Se nos consultam estamos a trabalhar. Tudo parece fácil e acessível a quem tem os aparelhos eletrónicos na mão 24 horas por dia. As regras têm de estar definidas como já fazem empresas de outro tipo de serviços. Nós próprios damos azo a esse comportamento porque também estamos ligados permanentemente com notificações em tempo real.
Voltemos a Chatgpt ou a outro chat inteligente e à sua aplicação na prática médica assistencial. Pode ajudar a rentabilizar recursos humanos cada vez mais escassos face à procura crescente diminuindo deslocações desnecessárias ou pelo contrário, agilizando-as quando o atraso diagnóstico pode ser prejudicial ou inconveniente para o doente?
Foquemo-nos na dermatologia, a área que nos interessa. Por enquanto, a imagem inserida numa plataforma de AI com algoritmos de decisão é usada apenas na dermatoscopia digital para diagnóstico de melanoma maligno onde consegue superar o dermatologista tal como o computador ganhou ao Kasparov. Eu disse consegue, não disse consegue sempre. O Kasparov também não perdeu sempre. Basta perder uma vez para percebermos que alguma coisa mudou no mundo da inteligência global. A microscopia confocal é outra técnica de imagem que pode entrar nesse género de programas. Certamente se lhe seguirá a dermatopatologia ou a clínica quando as fotografias deixarem de ser avaliadas pelo olho humano, mas pelo software treinado. O mesmo em relação a imagens ecográficas, TAC, PET ou RNM. Tal como o pedido de exames complementares de diagnóstico nos casos difíceis que impliquem estudo complexo ou a sugestão terapêutica transpondo guide-lines lidos por médicos para guide-lines lidos pelo chat. Parece-lhes fácil? Perigoso? A mim parece-me cada vez mais trivial e exequível. Basta lembrar os anos 80 quando líamos Aquilino Ribeiro com um volumoso dicionário de papel ao lado e compará-los com 2023 bastando clicar no dicionário Priberam online. Os linguistas estão preocupados? Talvez, mas também aliviados dum grande peso que os leitores agradecem. O telerastreio com imagem pode ajudar a MGF no diagnóstico diferencial antes do envio à consulta da especialidade ou o próprio dermatologista quando a recebe e volta a rastrear uma segunda vez.
Outra área importante da AI na dermatologia e na medicina em geral diz respeito ao ensino médico virtual. Já são comuns os cursos e reuniões online, os livros e os blocos de apontamentos eletrónicos. Todos substituíram o papel e eventos presenciais num curto espaço de tempo. Podemos acrescentar aqui o ensino virtual e a realidade aumentada como ferramenta de programação cirúrgica ou estética.
Há uma última questão que deixei propositadamente para o fim. Não entregamos a nossa humanidade assim de bandeja embora a AI seja criada pelo homem, não há que ter inveja do seu sucesso. Da parte do médico não pode haver temor do progresso porque ele é o futuro: «timendi causa est nescire». Não ceder ao medo do desconhecido, à ignorância que é causa do obscurantismo, negando a evidência por interesse pessoal ou corporativo. É preciso acompanhar o tempo e a sua transformação técnica e social.
Voltemos ao ponto sensível. Num mundo cada vez mais solitário e despersonalizado, onde quase tudo se resolve em casa frente a um dispositivo eletrónico (o que é um alívio para muitos…) as consultas presenciais têm uma procura crescente. Os idosos não saem do consultório médico sem lhes darmos a data da próxima vinda. Querem voltar mesmo quando o problema dermatológico não o justifica. Um número elevado de utentes não tem doenças graves da pele, não tem sequer patologia, mas procura um interlocutor com quem trocar impressões, dúvidas (?), repetem as perguntas e nós repetimos as respostas, leem a prescrição com ar receoso como se usar um champô ou um dermocosmético fosse um procedimento de grande complexidade manual e mental. Serão solitários, deprimidos, hipocondríacos ou ansiosos em busca dum contacto humano num mundo maquiavelicamente virtual? Somos nós, os dermatologistas, especialistas dum órgão demasiado grande e demasiado exposto, escolhidos ou simplesmente disponíveis para atrair as atenções destas pessoas? Estarão inebriadas desde o princípio do mundo com a expectativa da eterna juventude? Ou da eterna beleza? Com a estética da perfeição fácil? Creio que tão cedo não vamos ser dispensados deste dever de ajudar o próximo. Com inteligência natural ajudada pela artificial. Aqui, como em todo o lado, damos as boas-vindas a quem vier por bem.