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Imortalidade para quê?

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

 

Um dos grandes contributos da ciência à nossa vida complexa foi ensinar-nos que somos animais exactamente como todos os outros diferentes que conviveram no nosso espaço e com quem competíamos pela posse e pelo controlo das áreas territoriais que queríamos nossas. Terá sido bem mais tarde que descobrimos que além de animais também éramos racionais e que isso nos diferenciava absolutamente de todos os outros. Esta transformação é um passo gigantesco no que hoje chamamos “evolução”.

 

Sexualidade

De entre as muitas expressões da animalidade há uma que se deve considerar como primária porque embora fosse praticada instintivamente até antes da animalidade só deve ter sido percebida como excepcionalmente relevante muito depois de consciencializarmos o sermos racionais. Refiro-me à sexualidade.

De facto tudo indica que fomos animais mais ou menos irracionais que procriaram de forma mecânica utilitária e depois, com a racionalidade e decerto lentamente, fomos tomando consciência do seu significado tendo a procriação passado a ser um propósito consciente.

Foi um percurso longo, com escolhas que ainda desconhecemos, mas que nos permite afirmar que a sexualidade tem como objectivo exclusivo a continuidade da espécie. Tem-no hoje como sempre teve pelo menos até ao sempre actual.

Esta verdade, que julgo simples, inquestionável e não polémica, tem sido demasiadas vezes considerada como retrógrada por razões que, apesar das diferenças de argumentação, têm em comum o esquecerem que o que diz respeito ao básico da prática sexual, heterossexual potencialmente procriadora, é um comportamento anterior, quiçá muito anterior, às aculturações racionais. E é comum a todos os animais irracionais e a muitos outros seres vivos não animais. A sexualidade em abstracto é a prática de sexo, relações sexuais genitais, para que os parceiros tenham descendência.

Esta verdade só se alterou com a racionalidade quando o animal que deixou de ser irracional descobriu o sexo lúdico e lhe deu um lugar relevantíssimo na sua vida quotidiana. Claro que, infelizmente, também como mais uma expressão de poder e dominação desigual com perda ou desvalorização da componente de prazer que deve ser o próprio do lúdico.

Não conhecemos este tipo de prazer associado à actividade sexual noutros seres vivos, ou pelo menos não o sabemos perceber, pelo que tem sentido, repito, associar a sua criação e regular fruição à racionalidade. (Suspeita-se que os chimpanzés tenham práticas de sexo lúdico, mas as observações são insuficientes para o afirmar de forma clara não só por serem raras, mas também porque são de interpretação duvidosa. Mas se se vierem a confirmar, isso apenas demonstrará que a muito pequena porção de genes que nos separa foi suficiente para atrasar em milhares e milhares de anos a sua chegada ao tempo evolutivo de descoberta desta alternativa à procriação).

O sexo lúdico é um complemento da vida que corresponde a um momento altíssimo da evolução. Ao qual não foi fácil chegar pois exigiu alterações significativas, quer na nossa estrutura orgânica, quer na emocional como o provam e apenas como exemplo, o desaparecimento do cio feminino com ganho de disponibilidades procriativa e lúdica permanentes na mulher, a adaptação da morfologia genital a uma prática sexual frontal em ambos os sexos e tem sentido para mim acreditar que a selecção de parceiros terá passado a ser feita de forma menos orientada para os melhores genes e muito mais para o fenótipo das partes. Claro que não sabemos se o sexo lúdico resultou destas alterações ou se as provocou mas basta-nos que saibamos que estão relacionados e que são evolução.

Processo que, aliás, não está terminado. Sabemos que a gravidez continua a ser um risco para mães e filhos, ainda elevado sem ajuda científica, o que parece ser um erro ou um atraso da evolução de difícil compreensão. E também é evolução (talvez involutiva) as práticas de sexo lúdico como produto comercial, como suporte de manipulação de poder ou como prática vulgarizada sem envolvimento emocional, continuado ou não, ou ainda como compensação artificial sabe-se lá do quê.

Mas seja qual for a forma como o sexo lúdico for entendido, prazer por si, negócio ou exploração, há uma característica, provavelmente absoluta e relativa, que merece ser devidamente contextualizada na vida. Refiro-me ao seu chamemos-lhe tempo de êxito ou talvez melhor tempo de valor. Que é um período do continuado do viver que, pelo menos face ao desejo de imortalidade da nossa época, se deve considerar muitíssimo curto.

É um tempo que em liberdade é sagrado e que se vive como tal. Mas (infelizmente) é um período da vida para o qual não temos qualquer meio que permita transformá-lo em mais tempo, em tempo sem fim. A sexualidade, reprodutiva ou lúdica, depende de funções orgânicas e como todos os nossos órgãos envelhecem, uns mais cedo outros mais tarde, nenhum escapa a esse destino pelo que também os sexuais têm uma duração funcional “apenas” num período determinado do nosso tempo ordinário de vida.

 

Natalidade

Actualmente as taxas de natalidade na Europa e nalguns outros países chamados desenvolvidos são consideradas demasiado baixas para compensar as exigências laborais da modernidade. Embora tenhamos um número dramaticamente crescente de seres humanos no mundo quando o vemos como um todo. Estes mesmos países têm políticas sociais que contrariam as imigrações, mormente de africanos e asiáticos, por receios de contaminação cultural, principalmente religiosa, que destrua os benefícios associados à liberdade que são padrões da vida ocidental. Defende-se que o direito a ser-se o que se quiser desde que se respeite o outro deve ser intocável. O que é louvável.

Mas lamentavelmente nem sempre se tem o mesmo vigor em defender a promoção deste valor no espaço de onde surgem os migrantes o que é uma estranha contradição porquanto um e outro princípio, o nosso e o deles, são irmãos gémeos.

Para resolver uma parte do problema defendem que a natalidade deve ser promovida (leia-se que a sexualidade tem de ser politicamente reprodutiva) para se evitarem algumas das consequências “inconvenientes” dessas migrações de comunidades com elevada reprodutividade procriativa.

Como se fossem possíveis quer o contrariar os fenómenos migratórios que não são mais do que uma característica da racionalidade, quer alcançar em duas ou três dezenas de anos uma produção de filhos de autóctones capaz de compensar a actual raridade de jovens.

É uma ilusão.

Porque é difícil criar filhos com segurança quando se tem consciência de que este valor deixou de ser relevante. Sendo exactamente os mesmos que dizem que o progresso, que a maioria de nós pretende, depende das exigências do mercado o qual não se pode preocupar com esse tipo de problema “social”.

E também é difícil porque a promoção da competitividade como critério gerador de bem-estar é mais um agente que favorece e protege o individualismo e, por enquanto, ainda consideramos a sexualidade como um acordo de parceiros. E a prática sexual reprodutiva, para ter produção saudável, até exige que a parceria tenha um tempo de durabilidade de alguns anos o que é incompatível com as tais necessidades do mercado. A sexualidade, qualquer que ela seja, quer os parceiros próximos. Mas o mercado quere-os onde são considerados necessários ainda que separados por milhares de quilómetros e diz-lhes que se não aceitarem esta regra não lhes garante a subsistência. E parece-me óbvio que, sem esta estar garantida, é improvável que a função reprodutiva seja uma prioridade para os parceiros.

Mas ainda pior é sentirmos, sabermos, que como o mercado prevalece sobre o interesse afectivo da parceria então nem este suporte da liberdade tem garantia de continuidade.

Porque antes de procriar é necessário comer. Tal como é necessário ter comida certa para dar sentido útil à procriação. Esta contradição deixa à parceria “apenas” o sexo lúdico como fruição natural da natural sexualidade. É a única alternativa de vida sexual possível para se poderem satisfazer essas exigências do mercado. Mas é uma alternativa desadequada aos interesses dos promotores da natalidade que também são defensores do mercado porque, para seu mal, o sexo lúdico não é reprodutor.

E assim vamos envelhecendo a discutir, sem confiança nem coragem, um problema cuja solução só se encontra na vida da gente jovem que não ajudamos a viver. O que é bizarro porquanto, em abstracto e de forma geral, hoje vive-se muito melhor do que em qualquer outro tempo da nossa existência como animal racional.

 

Imortalidade

Vamos envelhecendo, sim, mas querendo fazê-lo sem morrer. Porque o conceito actual de imortalidade já não se orienta para a organização da vida no éter com os bens que juntámos na Terra preferindo antes que a tecnologia nos ofereça uma qualquer maneira de não morrermos de facto, de nos mantermos permanentemente vivos ainda que velhos e sem espaço para colocar a bengala porque ao nosso lado, bem juntinho a nós, está outro imortal centenário. Talvez a babar-se porque de vez em quando consegue recordar-se do tempo distante em que era jovem. E a lamentar-se porque as próteses e os mecanismos que o fazem deslocar-se não impedem o cérebro de lhe recordar que houve um tempo em que era um animal sexuado.

Isso mesmo, sexuado. Com uma actividade diversificada mas onde o prazer da sexualidade era “o” momento em que a vida mostrava valer a pena apesar dos tantos engulhos que comporta.

Vivemos hoje com a convicção de que os enormes desenvolvimentos científicos que se desenrolam diante dos nossos olhos nos vão livrar das doenças, anular a regular perda funcional que o tempo de vida sempre tem acarretado e que nos irão manter com 20 anos, ou talvez com 40 dirão os pessimistas, até à eternidade.

Poucos pensarão como será um mundo onde coabitem alguns jovens de 20 anos com milhares ou milhões de velhos com a mesma idade aparente. Em como serão as relações entre estes dois tipos de juventude. Em como se definirá o poder político relativo de cada grupo, o dos 20 anos reais, os dos 20 anos com 200 ou os dos 20 anos com 400. Terão os mesmos interesses, as mesmas preocupações e os mesmos objectivos em termos de futuro?

E a sexualidade? Partilharão a vida sem constrangimentos porque a jovem de 20 anos pode ter uma vida sexual com um “jovem” de 400 igual à que teria com um jovem realmente jovem? E o jovem de 20 anos com uma “jovem” de 380? E será que esta “jovem” mantém capacidade reprodutiva ou é apenas uma praticante de sexo lúdico tão experiente que compensa o parceiro oferecendo essa experiência como forma de o impedir de pensar na infertilidade? Ou será que a tecnologia e a ciência permitirão que esta “jovem” seja não só sexualmente activa como infinitamente fértil? E será que esta fertilidade suportada em próteses e afins dará um fruto igual ao produzido por uma jovem. As que o são porque têm idade jovem?

O acreditar-se numa ciência com capacidade sem limites é uma ideologia. Ideologia negativa porque na procura incessante do melhor da imortalidade há demasiada gente a não fruir do que a mortalidade lhe pode oferece apesar da idade o afastar, de facto e inexoravelmente, da juventude. “Estar vivo antes de morrer” é uma parte do longo caminhar da existência onde se perdem vantagens, que se tem pena de perder, mas onde também a finitude, porque ainda não chegou, não tem que ser antecipada nem simbólica nem realmente.

Quando chegar chegou. Mas antes de chegar estamos vivos e se nos soubermos livrar do perigo das máquinas que nos inventam vida, todo esse tempo vívido vale a pena mesmo que a todo o momento nos confrontemos com uma nova perda, com uma nova mudança no “sermos”.

E uma das grandes perdas poderá ser uma vida sexual similar à de um passado próximo. Esquecendo que o envelhecer tem de ser compensado pela aceitação de novas formulações de tudo que tenha que ver com o existir. Por isso também na sexualidade, que será diferente de pessoa para pessoa, mas será sempre vida sexual.

Decerto muito mais compensadora emocionalmente que uma sexualidade mecanizada, de envolvimento afectivo duvidoso, assente numa imortalidade que apenas existirá na imaginação doentia de quem a pretende como vantagem absoluta sobre muitas outras vantagens que temos disponíveis.

Temos de defender a nossa racionalidade. E temos de a relativizar à medida que sabemos mais e mais a nosso respeito. Mas não temos de construir imaginários de futuro onde estaremos condicionados pelo número e pelo artificial que fingirá ser a nossa vida. Nem sequer é claro que sejamos opinião ou vontade nesse contexto.

Sejamos pois animais racionais, sexuados, diferentes e vivendo o bom do presente, deixando que o futuro seja dos jovens de verdade que o são hoje e que o hão-de fazer amanhã adequado aos seus gostos, desejos e vontades, tal como os velhos de hoje o fizeram ontem.