A Saúde deve ser para todos, de forma equitativa, sem discriminações. Já em 1979, aquando da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), assim se consagrou: acesso “garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social”. Infelizmente, cada vez mais, este direito constitucional tem vindo a sofrer ameaças.
É, por isso, com apreensão que encaro a recente proposta das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto de passarem a ter a gestão dos cuidados de saúde primários (CSP) sob a sua responsabilidade, no âmbito de um pacote alargado de descentralização a apresentar ao Governo.
Em tese, a descentralização é essencial para o desenvolvimento do país. Mas não podemos esquecer que nem todas as autarquias têm a mesma capacidade de intervenção nem o mesmo poder de influência junto do Governo. Um concelho com 100 mil pessoas dificilmente exercerá a mesma ascendência do que outro com um milhão de habitantes (e potenciais eleitores).
Hoje em dia, é também indiscutível que um cidadão residente em Lisboa ou no Porto tem acesso a um maior número de unidades de saúde e especialidades médicas do que outro cidadão residente em Bragança ou Beja.
Por ser um pilar fundamental da nossa democracia, o SNS deve estar sob responsabilidade direta do Governo e não das autarquias. A saúde das pessoas não pode depender do código postal. Será que se pretende que a gestão e responsabilidade de uma saúde de proximidade seja usada como arma política em eleições autárquicas ou legislativas?
Será que não se consegue entender que a descentralização nesta área pode afetar irremediavelmente a equidade no acesso aos cuidados de saúde, agravando as desigualdades sociais já existentes?
Mas a proposta tem aspetos positivos. Alguns pontos vão mesmo ao encontro daquilo que tem sido defendido pela Ordem dos Médicos (OM). É o caso da proposta de que cada Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) deveria ter uma unidade de saúde (ou mais, dependendo da dimensão do ACeS) aberta diariamente até à meia-noite e, ao fim de semana, até às 20 horas.
De resto, esta alteração seria até pedagógica na promoção do acesso aos CSP nos casos de situações agudas não urgentes, em detrimento do usual recurso às urgências hospitalares, com o impacto e sobrelotação que todos conhecemos, sobretudo no inverno. Os hábitos constroem-se com alternativas e condições de trabalho.
A OM tem defendido que os CSP tenham a possibilidade de ter disponíveis, de forma regular, consultas de especialidades hospitalares para os seus utentes. Uma medida de fácil
implementação se bem articulada e integrada entre os cuidados de saúde primários e os hospitalares. Com a presença cíclica de especialistas hospitalares em áreas específicas, reduzia-se a necessidade de os utentes se deslocarem aos hospitais e até seria de esperar uma redução significativa nos tempos de espera para as primeiras consultas hospitalares.
A estas medidas junte-se a promoção da reforma continuada dos cuidados de saúde primários, dando melhores condições de trabalho globais aos profissionais de saúde, independentemente do modelo organizacional em que trabalham.
Atendendo aos sucessivos congelamentos e cativações ocorridos no SNS nos últimos anos, esperemos que o ministro da Saúde não aproveite esta proposta para, mais uma vez, condicionar a saúde dos portugueses ao código postal, transferindo a gestão, a responsabilidade e a despesa dos CSP para as autarquias e o Ministério da Administração Interna.
Miguel Guimarães
Bastonário da Ordem dos Médicos