Homenagem
O grande paladino da luta contra o cancro em Portugal
Segundo ele “o Doente era o Rei”
Francisco Soares Branco Gentil nasceu em Alcácer do Sal, a 27 de Fevereiro de 1878, filho de António Faria Gentil e Maria Augusta Soares Gentil. Descendente de Pedro Nunes e de Francisco Soares Franco, fundador da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa.
Casou com Alice Mascarenhas Gentil, de quem teve cinco filhos. Após a morte desta, no último parto, casou de novo com Alda Gonçalves, tendo tido então mais dois filhos.
Currículo académico
Terminados os estudos secundários matriculou-se na Escola Médico Cirúrgica de Lisboa. Foi preparador de Anatomia e defende Tese em 1900, sendo então nomeado Chefe de Clínica Cirúrgica. Entretanto, em 1901, executa no Banco de S. José a primeira sutura de uma ferida cardíaca. Passa depois a dirigir o Teatro Anatómico e, no ano seguinte, apenas com 26 anos, é elevado ao cargo de Professor substituto da Secção Cirúrgica e passa depois a reger Patologia Cirúrgica, Clínica Cirúrgica e Obstetrícia. Em 1911 é promovido a Lente proprietário de Medicina Operatória da Universidade de Lisboa. A sua acção foi fundamental para a Reforma do Ensino Médico, sobretudo na diferenciação das Especialidades Médicas, conforme refere Luís Botelho.
Em 1912 inicia no H. de Santa Marta uma Consulta para doentes cancerosos, seguindo-se a criação de uma Secção de Estudos Cancerológicos e depois de um Serviço de Radiações. Em 1915 é-lhe atribuída a Cátedra de Patologia Cirúrgica, cargo que desempenhará até à sua jubilação em 1948, ano em que inaugura, a 28 de Maio, o novo Pavilhão Hospitalar do Instituto, em Lisboa, assim concretizando um grande sonho. Englobado na Universidade de Lisboa, o Instituto gozava de plena autonomia, administrativa e científica.
Embora jubilado, e dada a sua obra, o Governo concedeu-lhe uma autorização especial para que permanecesse à frente do instituto até ao seu falecimento, em 13 de Outubro de 1964.
Enfermeiro Mor dos HCL
Entretanto, em 1913 e 1914, é Enfermeiro-Mor dos Hospitais Civis de Lisboa e por decisão sua, separa as Enfermarias de Pediatria Médica e Cirúrgica no Hospital de D. Estefânia, o que só veio a concretizar-se por legislação de 1918, sob a responsabilidade de Jaime Augusto Salazar de Sousa. Como recordação deve referir-se uma “Acta da Assembleia Geral dos trabalhadores dos Hospitais Civis de Lisboa, em que estes reconhecem e agradecem ao Prof. Francisco Gentil ter sido o primeiro Enfermeiro-Mor que tomou a defesa dos seus interesses e regalias”.
A luta contra o cancro
É finalmente, em 29 de Dezembro de 1923, que o então Ministro da Instrução Pública António Sérgio cria o Instituto Português para o Estudo do Cancro, e nomeia uma Comissão Directora presidida por Francisco Gentil, ficando o Instituto ligado à Universidade, e tendo como objectivos a investigação, o ensino e a assistência a doentes cancerosos. Desde então, a luta contra o cancro em Portugal fica indissociável da vida e obra do Prof. Francisco Soares Branco Gentil.
Por constrangimentos financeiros o 1º pavilhão só foi inaugurado em 29 de Dezembro de 1927, data hoje considerada dia do “Aniversário” do Instituto. Em 1929 é inaugurado o 2º pavilhão e em 1933 é inaugurado o 3º, denominado Pavilhão do Rádio”, o primeiro a ser construído a nível mundial segundo as normas adoptadas no II Congresso Internacional de Radiologia para protecção dos doentes e dos técnicos, contra as radiações (mas usando uma parede mais espessa, por ser de “barita, que era barata, em vez de ‘chumbo’, que era mais fino, mas bem mais caro…).
Em Janeiro de 1960 implementa a proposta da criação uma Unidade Multidisciplinar (Médica e Cirúrgica) de Oncologia Pediátrica (a primeira a nível mundial).
Ensino e investigação
Em 1925 inicia-se a publicação do “Arquivo de Patologia”, depois a do “Boletim” do Instituto e finalmente a publicação da Revista Clínica Contemporânea de Medicina e Cirurgia (todas terminadas após a Revolução de Abril de 1974). Em 1933 surgem as Lições” sobre Cancro e em 1944 é instituído o Prémio Silva Pereira, destinado a estimular os estudos sobre o cancro.
Deve realçar-se um Arquivo Clínico com a documentação integral de todos os doentes assistidos no Instituto desde a sua fundação, a criação Serviço de Estatística precursor do futuro Registo Oncológico e que culminou no actual ROR.
Francisco Gentil considerava igualmente necessária a fundação de uma Sociedade Portuguesa de Oncologia, o que, no entanto, só veio a concretizar-se em 1982.
Em 1952 inaugura o Laboratório de Física, em 1953 o Laboratório de Isótopos, em 1954 um Serviço de Hemoterapia, em 1964 um laboratório de Cirurgia Experimental, em 1956 inicia (com a colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian), um serviço de visitação domiciliária (médico e enfermeira) e igualmente uma consulta de profilaxia, dirigida sobretudo aos Rastreios do cancro da mama e do útero.
Liga Portuguesa Contra o Cancro
Defendia igualmente a necessidade de mobilizar a sociedade civil, consciente de que o Estado nunca poderia resolver todos os problemas, surgindo assim a denominada Comissão Particular de Luta Contra o Cancro, em 1931, e à qual se seguiu em 1941 a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Com o patrocínio da Liga veio a surgir o 1º lar para doentes.
Concepção e administração
Durante a década de 40 viajou por toda a Europa procurando estudar alternativas para a construção dos grande edifícios que pretendia concretizar: E assim nasceram os Hospitais Universitários, de Santa Maria em Lisboa e de S. João no Porto, para além do grande pavilhão Hospitalar do IPO.
Ao Director, Médico e Cirurgião, bastava-lhe apenas um excelente administrador: inicialmente Mário Neves e depois Joaquim Silveira Botelho. Após a Revolução de Abril tudo mudou, e hoje o Instituto já não é dirigido por um médico, tem cerca de uma duzia de administradores e saiu da tutela do Ministério da Educação (uma das mais importantes lutas do seu fundador),passando a ficar sob a tutela do Ministério da Saúde. Felizmente, o Instituto tem preservado o espírito do fundador e tem acompanhado o progresso da Ciência Médica, podendo assim considerar-se um indiscutível Centro de Excelência no âmbito da Oncologia. Francisco Gentil, independentemente de ser um óptimo cirurgião, professor e organizador, era acima de tudo um Médico cuidadoso e solicito. Lembro-me de um doente dizer que vinha ao IPO porque vinha “a fonte limpa”, forte argumento para a liberdade de escolha que todo o Doente deve ter, pois isso lhe assegura a fundamental confiança em quem dele irá cuidar.
Enfermagem
Reconheceu que o papel essencial, e mesmo insubstituível, do médico, deve ser complementado por pessoal de Enfermagem bem treinado e qualificado. Assim, em 1940, inaugura a Escola Técnica de Enfermeiras (a ETE), um dos marcos históricos mais importantes para a enfermagem em Portugal, e que se instala em 1944 em edifício próprio. O curso durava três anos (e não dois) e exigia o 7º ano do liceu (quando em geral apenas se exigia a denominada instrução primária).
Em 1957 é iniciado um Curso para Auxiliares de Enfermagem, mas extinto após a revolução de Abril, em que todas as “auxiliares” de enfermagem passaram à categoria de Enfermeiras…
Personalidade
Dele dizia Fernando Namora “E Mestre Gentil permanece porque foi arquitecto, obreiro e dinamizador de uma Empresa que desafia um gigante: a luta contra o cancro em Portugal. Partindo do nada, e num meio que se apavora das iniciativas, ele, de tenacidade em tenacidade, usando da sagacidade e altivez, armas do seu prestígio, ergue um Instituto de Oncologia. Tinha um agudo instinto da oportunidade e um apuradíssimo conhecimento dos homens: Para os converter nunca, porém, se dobrou, nunca lhes serviu a bandeja da humilhação ou da lisonja: impunha-se como soberano que concede mercês em vez de as aceitar”.
Francisco Gentil tinha uma visão pioneira e muitas das suas ideias, só se tornaram realidade cerca de meio século mais tarde! Algumas das sua ideias devem ser meditadas: os nossos hospitais não são suficientemente ricos para comprar coisas baratas: o que custa caro não é fazer mas é manter. Os doentes são como o dinheiro vão onde se sentem seguros. Já em 1937, dizia ser “fundamental que os direitos não abafem os deveres” e dizia também da necessidade de que o estado da arte se estendesse a todo o país e não apenas às grandes cidades de Lisboa, Coimbra e Porto, onde no entanto deveriam situar-se os Centros de Referência. Em 1957 cria um Serviço de Saúde para o Pessoal, o primeiro Serviço de Saúde Hospitalar criado no país.
Como afirmou o Prof Jorge Soares, “com Francisco Gentil aprendemos que é importante ter um projecto – ver mais além, ver mais longe! E ter argúcia e perseverança para o concretizar. E também aprendemos o sentido da independência, o sentido do serviço público, e, acima de tudo, o sentido da soberania do doente, sempre e acima de todas as circunstâncias. Ai de quem não respeitasse isso: não mais voltaria ao Instituto. Era rigoroso e exigente e até mesmo severo, ainda que habitualmente justo e amigo. Mas se o interesse dos doentes estivesse em causa ninguém nem nenhuma burocracia o fazia parar.
O primado do doente
Em 1948 é formado o Serviço Social numa Instituição em que o doente era alteza, nada parecendo demais em seu proveito.
Republicano, não hesitou em dizer que, quando tratou António Oliveira Salazar, não pôde deixar de o admirar. Ele desmentiu a afirmação corrente de que na doença não há grandes homens, pois, na intimidade, ele impõe-se. “Passámos muitas horas em conversas que incidiam sobretudo a respeito de hospitais e assim foi ultimada a Maternidade Dr. Alfredo da Costa, surgiram os Hospitais Escolares e se lhe deve o que existe da obra de luta contra o cancro, que sempre apoiou”.
Por outro lado Francisco Gentil não hesitou em contestar a demissão compulsiva, por motivações políticas, da Universidade de valores como Pulido Valente ou Fernando da Fonseca, tendo oferecido a este último um local de trabalho no Instituto para que ele pudesse continuar a dar sua notável colaboração académica e científica. Aliás o mesmo acontecera com Fernando Namora, a quem entregou a Redacção do Boletim. Após a revolução de Abril desapareceram infelizmente os chamados “quartos do repouso”, independentes das enfermarias, e onde os doentes em estádio terminalpodiam ser acompanhados em permanência pelos seus familiares, embrião dos futuros Cuidados Paliativos.
Homenagens
Foi Fundador da União Internacional Contra o Cancro (UICC), e seu Membro de Honra. Em 1953 recebeu a Grande Cruz da Ordem Militar de Santiago da Espada, e em 1958 é-lhe concedido o Grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra.
Foi Director da Faculdade de Medicina, Membro do Conselho Superior de Instrução Pública e ainda Presidente da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa.
António Gentil Martins
3 de Outubro de 2017
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