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Gandra e Funchal: utentes diferentes mas utentes iguais?

Autora: Petra Quintal Santos, Médica Interna do 4º ano de Medicina Geral e Familiar na USF Tempo de Cuidar (ACeS Tâmega II e Vale de Sousa Sul)

 

Ao artigo já lá vamos, mas antes, deixem que me apresente: o meu nome é Petra Quintal Santos, sou conterrânea do Cristiano Ronaldo e sou, como dizem alguns utentes, “estagiária para ser ‘Médica da Caixa’”, ou seja, Médica Interna de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar em Gandra, concelho de Paredes, desde 2017.

Apesar de ser natural da “Pérola do Atlântico”, nunca lá exerci a minha profissão. Quase chegada ao final da minha formação pós-graduada, a hipótese de regressar às origens pode ser colocada em cima da mesa e, nesse sentido, tenho-me questionado sobre as diferenças com que me depararia caso o fizesse. Foi precisamente por isso que, em outubro de 2019, de forma a saciar esta curiosidade e com o objetivo de conhecer a realidade dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) na Madeira, propus-me a ir até ao Centro de Saúde de Santo António (CSSA) do Funchal, onde fui gentilmente acolhida para um curto estágio de 2 semanas.

Quando iniciei este estágio, sabia que existiriam diferenças comparativamente à minha Unidade Funcional de formação. De facto, mesmo em Portugal Continental, verifica-se que existem diferenças, por exemplo, entre Unidades de Saúde de um mesmo concelho, o que vejo como normal, tendo em conta que os CSP vivem dessa aproximação à sua população e às suas particularidades. Cada equipa de saúde é uma espécie de “floco de neve”, que tem a sua forma e dinâmica próprias, traduzindo-se em formas de organização e funcionamento diferentes, bem como em procedimentos de prestação de cuidados também distintos, mas adequados a cada realidade local – no fundo, há sempre neve, mas não cai igual em todo o lado. Contudo, e apesar desta consciência, consegui ser surpreendida!

Comecemos pela diferença que, no meu entendimento, tem maior destaque: a isenção de taxas moderadoras nas consultas dos CSP. Há já muito tempo que, na Região Autónoma da Madeira (RAM), os utentes não pagavam pelas consultas com o seu Médico de Família (MF). Já em Portugal Continental, esta política foi adotada apenas em abril de 2020.

Este é um tema controverso, não só na Assembleia da República, como também na opinião pública porque, para muitos, esta é uma medida que se apresenta como pouco razoável. Na minha opinião, a isenção das taxas moderadoras nos CSP tem lógica, não só pela igualdade que institui, mas também porque os CSP são uma fundamental porta de acesso à saúde em Portugal, pelo que faz sentido que o acesso a um bem essencial como este seja gratuito.

Outra diferença que gostaria de abordar é relativa aos meios complementares de diagnóstico. No Serviço de Saúde da RAM (SESARAM), o estudo analítico e radiografias podem ser realizados no Centro de Saúde do Bom Jesus, sediado no centro da cidade do Funchal, ou no Hospital Dr. Nélio Mendonça. A grande vantagem deste sistema organizativo é o facto de estes exames serem automaticamente integrados no sistema informático, o que poupa algum tempo de consulta aos MF. Durante esse tempo, ganham-se minutos que podem (e devem, diria) ser usados para fortalecer a relação médico-utente, ao existir uma maior disponibilidade para ouvir as preocupações dos utentes. Mas nem tudo são rosas! A maioria dos exames é realizada, inevitavelmente, em clínicas convencionadas, dada a incapacidade de resposta por parte da primeira entidade. Nestes casos, o utente tem de pagar para realizá-los. Um caso particular onde se verifica esta situação e que captou a minha atenção são as ecografias de vigilância do segundo e terceiro trimestres da gravidez. Todas as grávidas que acompanhei e acompanho no meu local de trabalho não necessitam de pagar nenhum dos exames por mim solicitados e que estão recomendados pelo Programa Nacional para a Vigilância da Gravidez de Baixo Risco. Por outro lado, as grávidas que realizam ecografias pedidas pelo SESARAM realizam estes exames nas clínicas convencionadas, tendo que pagar uma parcela do valor total do exame, apenas parcialmente comparticipado.

Acresce o facto de o pedido de ressonâncias magnéticas à população geral de utentes com dificuldades económicas poder ser comparticipada parcialmente em certas clínicas mediante apresentação do comprovativo de inscrição nos CSP. Quando olhando para estas questões em termos de equidade, qual destes exames terá maior utilidade para um médico de família? Para mim, como futura MF, a isenção da taxa moderadora sobre as ecografias de segundo e terceiro trimestres da gravidez tem mais sentido, uma vez que as informações dadas por estes exames podem implicar ajustes importantes na vigilância/terapêutica da futura mãe e do bebé. Já a ressonância magnética, apesar de ser também um exame com muita importância, é mais usado no âmbito dos Cuidados de Saúde Secundários, onde o mesmo é comparticipado, pelo que não é uma arma tão útil em primeira linha para os CSP.

Algo de muito positivo com que me deparei foi o rácio de profissionais de saúde por utente, incluindo psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais. Estes profissionais, muitas vezes esquecidos, fazem uma grande diferença na abordagem de patologias muito frequentes na prática diária dos CSP. Por exemplo, segundo dados dos Censos de 2011, o CSSA serve uma população de 27.383 utentes e, no próprio edifício, dispõe de dois nutricionistas, quatro psicólogas e um assistente social que observam os utentes após referenciação médica.[1] O ACeS Tâmega II – Vale de Sousa Sul, no qual se insere a minha Unidade Funcional, serve 172.846 utentes e integra, para prestação de cuidados a essa população, dois nutricionistas, três psicólogos e quatro assistentes sociais[2]. Perante estes números, torna-se evidente que a resposta aos utentes neste caso é, apesar de muitas tentativas, subótima, sobretudo quando comparada com a do CSSA.

Adicionalmente, na RAM, penso haver uma melhor gestão/rentabilização das capacidades e especializações dos profissionais de saúde, nomeadamente dos enfermeiros dos CSP madeirenses, em favor da prestação de cuidados de maior qualidade à comunidade. Por exemplo, duas enfermeiras especialistas em Saúde Infantil e Pediátrica eram as responsáveis pela avaliação do desenvolvimento global das crianças com 8 meses, 1 ano, 3 anos e 5 anos de idade. Também é de salientar a presença de uma enfermeira especialista em Saúde Mental, o que permitia uma melhor orientação/gestão destes casos ao nível dos CSP.

Por último, quero realçar a maior dificuldade que existe na RAM em obter indicadores de desempenho (como facilmente fazemos nas várias Administrações Regionais de Saúde de Portugal Continental). Apesar de estes serem apontados como os “vilões” dos CSP, penso que são uma forma simples e objetiva de avaliar a nossa prestação profissional, a qualidade dos cuidados que prestamos, e de percebermos o que podemos melhorar, não só como médicos, mas como equipa, tendo sempre como objetivo ir ao encontro das necessidades em saúde da comunidade com a qual trabalhamos.

Assim, em jeito de resposta à complexa pergunta que coloquei no início deste texto, NÃO, os cuidados de saúde prestados não são iguais para um utente em Gandra e para um utente na Madeira, tal como não são iguais se compararmos diferentes regiões do continente. Mas terá esta diferença um impacto negativo na saúde dos nossos utentes? Talvez! No entanto, está nas nossas mãos, enquanto profissionais articuladores dos cuidados de saúde, adaptar o que aprendermos à nossa comunidade e ao nosso dia-a-dia. Contactar com diferentes realidades permite-nos, assim, alargar os nossos horizontes e, dessa forma, fazer mais e melhor.

 

Notas:

[1] Direção dos Centros de Saúde do Funchal – Zona II, Relatório de Atividades de Centros de Saúde do Concelho do Funchal Zona II, 2017, Funchal.

[2] Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados do ACeS Tâmega II e Vale de Sousa Sul, Manual de Articulação URAP, 2017