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EUTANÁSIA. Quo Vadis? – Uma sumária análise objectiva

Autor: Henrique Bicha Castelo, Professor Catedrático Jubilado, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

 

Depois da paragem imposta pela permanente preocupação com a COVID-19, é tempo de relembrar a Eutanásia, um dos temas de maior relevância para a essência da Condição Humana que ocupou os órgãos de comunicação social e inquietou o País nas últimas semanas anteriores à pandemia.

Preocupação justificada pela delicada complexidade do tema que, com maior profundidade imbrica no âmbito mais profundo do “eu”, individual e colectivo, suscitando controvérsia fracturante das Sociedades em todos os pontos do Planeta onde tem sido discutido.

O melindre da situação prende-se com facto de se tratar do “tempo de morrer” que, depois de o “de nascer”, é o mais delicado da existência humana.

A grande diferença é que, completamente alheios ao “nascer”, pretende-se que possamos ser, licitamente, responsáveis pelo momento e pela forma de “morrer”.

O “princípio” da despenalização da Eutanásia é invocado à luz da “ambição humana” de mourir vivant e exaltado pelo “Direito a Morrer com Dignidade”.

É verdade que o sofrimento é um mostrengo cobarde, imoral e indigno do “ser” e, quando extremo, impróprio, intolerável e destructivo do “eu”.

O respeito devido à dignidade humana preconiza que “morrer lúcido”, com o menor sofrimento possível, com tranquilidade e conforto, num ambiente de íntima harmonia familiar, social e espiritual, é um elementar dever civilizacional de respeito pela essência do Homem.

O mesmo princípio admitirá como legítimo que, a doentes com “lesão definitiva, incurável e fatal à luz dos actuais conhecimentos médicos”, seja legitimada a não continuação desse blasfemo infortúnio através de uma decisão do foro mais íntimo da consciência individual.

Contudo, este princípio só poderá ser moralmente aceitável depois de obtido o pleno cumprimento do anterior.

Face à forma como o poder político tem vindo a dar a conhecer o problema, é meu dever de consciência expressar o entendimento, objectivamente, assente em três dos seus pontos nucleares do modo como, nos domínios “dos princípios”, julgo estar a ser distorcido o projecto de concretização legislativa.

Sendo que em todos a minha preocupação não é outra que a análise de “princípios” de índole conceptual, o segundo foca-se com a metodologia processual que a Assembleia da República se prepara para aprovar, estabelecendo um óbvio e, em meu entender, ilegítimo conflito com os Médicos ao impor, como é público e notório, a deliberada intenção de ignorar que “a eutanásia não é um acto médico”.

O primeiro ponto advém do facto de “os doentes não serem números”, fundamentando que decisões individuais desta magnitude, só poderão ser assumidas por pessoas lúcidas, conscientes, plenamente informadas e solidamente esclarecidas acerca de meios e condições que lhes permitam exercer, responsavelmente, a opção dos direitos de autonomia e escolha.

Neste sentido, ter-se-ia justificado uma ampla campanha pedagógica, motivadora de larga mobilização informativa dos cidadãos, para esclarecimento dos “tempos e modos” do dossier Eutanásia que tivesse permitido à generalidade dos Portugueses claro e preciso conhecimento sobre significados conceptuais e princípios vigentes de regulação, das tão referenciadas situações de Distanásia, Do Not Resuscitate (DNR), Testamento Vital, Recusa de Tratamento (RDT), Suicídio Assistido e Eutanásia, bem como da importante relevância das Redes de Cuidados Continuados e Paliativos.

Só o pleno conhecimento destes instrumentos legais, poderia conduzir à formação de sustentada e esclarecida opinião individual cuidado que, anteposto à Legislação, reforçaria a dimensão ética da legitimidade política.

Dir-se-á despiciendo este reparo, face aos múltiplos debates que foram ocorrendo ao longo do País e que tornaram os deputados “cientes de que ter havido um debate alargado e profundo sobre a despenalização da eutanásia”.

É verdade que foram muitas as assembleias agendadas em todo o País com esse objectivo, mas se em alguns fora médicos não era clara a distinção entre Suicídio Assistido e Eutanásia, permito-me imaginar o grau de (des)conhecimento que, em geral, os Portugueses terão sobre a matéria.

Mais que em qualquer outra situação, aqui não basta “pensar que se tem razão” e nunca será exagerado recordar o Presidente Jorge Sampaio quando a este propósito dizia, a 26 de Maio de 2018, “ser indispensável mais debate e mais discussão”.

Acontece que, factualmente, não houve mais debates nem tentativas de mais esclarecedoras discussões e, em minha opinião, em todas as chamadas da comunicação social, mais que um esforço de clarificação da essência do problema, foi preferido reforçar a controvérsia instalada sobre estéreis e polémicas considerações políticas.

Por ser do Homem que se trata, de “como morrer” e como decidir o seu “fim-de-vida”, cada “Pessoa”, agindo de acordo com a sua própria consciência formulará uma opinião que, emergindo da “individualidade do eu”, será “individual”, “específica” e “única” impedindo que, à luz do mais elementar exercício de cidadania, o “pensar de um” possa, moral, social, ética e politicamente impor-se ao “diferente do outro”.

Se dúvidas houvesse sobre a sua qualidade de questão do foro mais íntimo da consciência individual basta atentar para a, agora, reconhecida necessidade de alguns líderes políticos entenderem dever dar “liberdade de voto” aos seus deputados.

No referente à agendada discussão sobre o referendo, importa que diga que é minha convicção que decisões que envolvam “princípios” do foro mais íntimo da consciência regulados pela “individualidade do eu e em favor do próprio”, não deverão ser referendáveis.

É o caso da Eutanásia.                                            

Exigir-se-á, todavia, a dignidade de não dizer que a decisão “de cada um” é fruto de dogmas, religiosos ou deontológicos, ou de pressões culturais, sociais, educacionais ou ideológicas. E muito menos que sejam directas “forças de bloqueio” para o problema.

Claro que todas estas razões importam, mas apenas, e só, na justa medida em que, enquanto alicerces ancestrais da fundação do “eu”, são contribuintes nucleares para a construção da personalidade e carácter da Pessoa, enquanto “Ser”, e naturais reguladores das “decisões de consciência”.

Sendo individual, não será menor a responsabilidade colectiva porque, a despenalização da Eutanásia imporá ao Estado um conjunto de deveres de salvaguarda moral, ética e jurídica da sua regulamentação.

Duas circunstâncias levaram a Assembleia da República a voltar a colocar o tema na agenda Parlamentar: a criação de um “grupo de trabalho” com o objectivo de elaborar “a primeira versão de um texto comum” que regulamente a despenalização da Eutanásia aprovada na generalidade no passado dia 20 de Fevereiro de 2020 e a petição apresentada por “iniciativa popular”, subscrita por cerca de 100.000 mil assinaturas, para realização de um referendo sobre a “despenalização da morte a pedido”.

Reconhecendo plena legitimidade política da Assembleia da República para legislar sobre a despenalização da Eutanásia, atendendo a que o tema não constava na maioria dos Programas sancionados nas urnas, interrogo-me sobre a legitimidade moral que, à luz da ética republicana, se arrogam os Senhores Deputados.

Aqui chegados, o agora criado “grupo de trabalho” tem a responsabilidade de elaborar a referida “primeira versão de um texto comum” que mereça aprovação na especialidade.

Penso que estamos a tempo para definir um enquadramento claro e sólido que, sempre no “domínio dos princípios”, seja respeitador de códigos profissionais e mitigador de facilitismos que, à luz da tão invocada legitimação – comodidade? – política, possam culminar em conflituais, se não pérfidas, concretizações.

Ambas as frentes envolvidas na discussão, foram citando repetidamente alguns dos mais respeitados pensadores e cientistas portugueses que, em síntese, dizem “concordar com a Eutanásia, não sabendo como é que isso pode ser feito”.

Também “não sei como fazer”, mas julgo saber como “não deverão ser impostos” alguns “tempos” previstos.

Fundamento a minha posição, como mero exemplo entre os aprovados, no texto do PROJETO DE LEI N.º 832/XIII/3 e em juízos que alguns dos mais interventivos agentes políticos têm expressado.

Dando por bem conhecido o conteúdo do referido projecto-lei direi, numa brevíssima síntese que, além do Doente e do Médico Assistente, estarão envolvidos no processo as, agora “criadas para o efeito”, Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte -CVA-, “uma nova Equipa” da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde -IGAS- e ao “novo instrumento” de Registo Clínico Especial -RCE-.

Modelos, composição, funcionalidades e competências propostas para estas entidades e instrumentos serão definidas por posterior regulamentação a aprovar pelo Governo.

Atendendo a que a aprovação, na generalidade, de todos os Projectos-Lei apreciados no Parlamento foi obtida à revelia dos “pareceres negativos” das Ordens Profissionais, dos Médicos, dos Enfermeiros e dos Advogados, faz, no meu modo de ver, com que a Despenalização da Eutanásia tenha saído dos âmbitos alargados do direito, da moral e da ética devidos à dignidade da Condição Humana para se reduzir à esfera, pura e exclusiva, da dimensão política.

No domínio dos princípios importa não esquecer o enorme distanciamento entre “DNR” e “aprovação da eutanásia”, definida por Daniel Callahan como “stop treatment will cause the patient´s death, as opposed to a lethal drug will give death no matter who”, categorizado a diferença entre “deixar morrer e fazer morrer”.

É minha convicção que deveria ser de elementar cuidado que a solução passasse por deixar aos “Médicos o que é da Saúde” e aos “Decisores Políticos o que é da Política e da Administração Pública.

Nesta linha de pensamento, é meu entendimento que uma cuidada ponderação sobre questões inerentes à “essência de princípios” e do modelo regulatório poderá minorar alguns dos problemas que, nomeadamente a nível médico, tem suscitado maior controvérsia.

           O segundo ponto assenta na pretensa desatenção com que o poder político pretende, deliberadamente, ignorar o “princípio essencial” esquecendo que “a Eutanásia não é um Acto Médico”.

Este “esquecimento” vicia todos os princípios e metodologias organizacionais e de intervenção do modo como se está a pretender decretar a, a meu ver, ilegítima pretensão de fazer com que o Médico Assistente do doente, passe de “Orientador” a “Executor” da “morte a pedido”, violando todos os “princípios e pilares” fundacionais do Código de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos.

Só assim não será para os que julgam que Ética, com particular enfâse na Bioética e Ética Médica, não é mais que o somatório de meras opiniões, fazedoras de dogmas ou “escritos na lei”, passíveis de alterar ao sabor de ventos e marés mais adequados às conveniências de momento.

E não são!

É o ethos onde habitam “princípios e conhecimentos”, complexos, delicados e profundos, capazes de definirem intervenções técnicas e científicos que modulam o comportamento humano e regulam culturas e civilizações.

É nesta base que alguns juízos políticos me merecem especial atenção e judiciosa crítica analítica.

Não esquecendo a minha posição a este propósito, admitia que os Parlamentares fossem os primeiros a diligenciar mecanismos tendentes à obtenção do conhecimento que, através da “audição directa”, lhe permitisse informação concreta do pensamento dos cidadãos, a quem dão voz na Casa da Democracia, sobre como gostariam de ver gerido o seu fim-de-vida.

A este propósito, um dos mais ilustres e interventivos deputados nesta matéria afirmou, e cito, que “invocar o referendo à Eutanásia é uma mera manobra política, uma golpada”.

Porque se opõem agora os Deputados a essa consulta popular?

Não será que, face às circunstâncias, a “golpada” não residirá no aproveitamento da “oportunidade conjuntural” existente no Parlamento que aconselha a pressa em legislar?

Tão, ou mais, relevante é o segundo ponto que elaboro em função da posição de um Colega, destacado responsável por um dos textos políticos já aprovados que, num Colóquio sobre a Eutanásia realizado na Ordem dos Médicos em Lisboa, em Fevereiro de 2020, dizia “não perceber a posição dos Médicos porque, sendo a atitude médica na eutanásia idêntica à da Baixa por Doença, porquê a oposição?”, fim de citação.

Por se tratar de uma questão nuclear e concordar, em absoluto, com a analogia, admito que “o texto único definitivo” contemple, sem margem para dúvidas, que o “tempo médico” do processo da Eutanásia corresponda à “atestação clínica” da situação do doente e a não mais que isso!

Direi que, também aqui, cumprirá ao Médico Assistente, na sequência do diagnóstico, avaliar a situação clínica e o estado da condição humana fazendo enfática referência ao “destruidor estado de sofrimento” do doente, elaborar o requerido Atestado Médico.

Em comparação com “o processo de baixa por doença”, a intervenção clínica dar-se-ia aqui por terminada.

Todavia, o respeito devido à Relação Médico-Doente neste tão específico e delicado contexto aconselhará que o Médico Assistente possa assumir uma posição mais interventiva, eventualmente à semelhança da Justiça, de “Provedor do Doente”.

Nesta condição, o Médico Assistente, chamado de Orientador, deverá continuar a acompanhar “o cumprimento dos garantísticos critérios de rigor e segurança do procedimento”, agilizando o processo e confirmando que todos “os tempos e modos” de “antecipação da morte assistida” são concordantes com a vontade expressa do doente, até mesmo no referente ao dia, hora, local e metodologia a utilizar.

Perspectivando-se como pivot, a posição do Médico Orientador ultrapassa a que considero ser a inqualificável “posição de mensageiro” entre a CVA e a IGAS, com múltiplas imersões no RCE, e a de “agente de execução” em que politicamente, infringindo todas as normas e princípios éticos, o querem colocar.

Dir-se-á não fazer sentido esta preocupação porque, respeitado o princípio de objecção de consciência, haverá sempre um médico disponível para a cumprir.

Não contesto, mas reiterando que a razão que me move é, apenas, uma questão de “princípios”,  não reconheço qualquer tipo de legitimidade ao poder político para impor que profissionais de saúde, enfermeiros e médicos em concreto, “cumpram um gesto” que viola claramente as normas de boas práticas reguladas pelo seu Código de Ética e Deontologia.

Penso que esta gravíssima situação conflitual poderá, facilmente, ser solucionada por um simples procedimento administrativo.

Atrevo-me a sugerir que:

i – A Equipa da IGAS, constituída com o objectivo específico de prestação deste “serviço do bem comum”, seja composta “apenas” por “funcionários públicos” que, independentemente da sua individual diferenciação profissional, cumprirão nessa condição o exercício das suas atribuições.

ii – Enquanto servidores da res publica, ao comprometerem-se cumprir “com honra e lealdade as funções que lhes são confiadas”, estarão regulados pelo Código de Honra da Administração Pública que os retirará, de imediato, da jurisdição dos seus próprios Códigos de Ética e Deontologia Profissionais.

iii – A IGAS, “estando presente até ao ato de concretização da decisão do doente”, simplificando o procedimento, autorizará que, sob superior supervisão dos restantes, “um dos seus membros cumpra a missão” entregando, ou administrando, ao doente a previamente aprovada, como melhor e mais eficiente, solução medicamentosa.

iv – Esta via, independentemente da “forma jurídica” mais apropriada, contornará a inaceitável e ilegítima posição que “se quer” atribuir ao Médico Orientador impondo-lhe a obrigação do cumprimento de uma tarefa que, objectiva e legalmente, “não é um acto médico”

v -A IGAS procederá à “verificação da morte, diligenciando a certificação do óbito que, de acordo com a legislação em vigor”, decidindo oficial, jurídica e administrativamente, o encerramento do dossier.

         Dirão alguns que não sugiro mais que uma “habilidade” política.

Poderá ser, mas, além de obstar à violação do Código de Ética e Deontologia dos Médicos, não é nada que não seja de há muito conhecida e bem ilustrada pela clássica e sempre actual, it´politics stupid!

Por fim, no terceiro ponto, invoco o “considerável avanço civilizacional” atribuído à despenalização da eutanásia, em respeito pela liberdade de autonomia e escolha.

Sabemos que Portugal não dispõe, ainda, de uma sólida e suficiente Rede que permita o acesso universal a Cuidados Continuados e Paliativos e, sem não menor importância, que a escolha só é legítima quando feita entre eficientes opções concretas.

Sendo objectivo supremo dos Cuidados Paliativos o alívio do sofrimento e o controlo da dor, favorecendo o conforto e melhor “Qualidade de Vida aos dias” que restem a cada um desses doentes, que poderemos ser todos nós, será legítimo perguntar o que de facto se estará a pretender oferecer?

Direi que a despenalização da eutanásia que está, factualmente, a ser oferecida aos portugueses não é mais que a opção entre o “devastador sofrimento intolerável” e a “antecipação da morte” que, em respeito à verdade devida à dignidade da Condição Humana, não é mais que a “livre escolha” entre duas “opções do nada”.

Têm razão os que dizem que não nos devemos preocupar com “rampas deslizantes e mortandade de velhos” porque, à afirmação de que “os pássaros não são estúpidos”, direi que os portugueses são inteligentes e, apesar do displicente abandono a que tem sido votado o SNS e às gritantes insuficiências das Redes de Cuidados Paliativos e Continuados saberão encontrar, com lúcido, responsável e superior discernimento, soluções responsáveis e coerentes.

Por ser “da morte que se trata” e o problema da maior magnitude, tendo a compreender a “interrogação popular” sobre se o Estado estará genuinamente preocupado com a defesa coerente dos Direitos, Liberdades e Garantias dos seus Cidadãos ou, apenas e perfidamente, a favorecer o caminho mais simples, fácil e barato para o problema do “fim-de-vida”?

Não posso deixar de considerar que o ziguezaguear de posições que, nestes últimos dias, alguns partidos têm vindo a exibir na Assembleia da República não farão mais que reforçar a razão desta “interrogação popular”.

          Esta é uma das mais pertinentes questões em que “mais que ter, importa conhecer” a razão exigida à “mulher de César”.