Autores: Filipe Neves (USF de Ronfe), Cláudia Teixeira (USF S. Nicolau) e Ana Filipa Abreu (USF Physis)
Resumo: Com este artigo os autores pretendem partilhar as vivências de um mês de estágio em Cuidados de Saúde Primários em São Tomé e Príncipe e ainda dar a conhecer uma realidade distinta da realidade portuguesa. Pretendem, ainda, dar a conhecer a obra das Irmãs Franciscanas na cidade de Neves, projeto com o qual tiveram o prazer de colaborar paralelamente ao estágio.
São Tomé e Príncipe (STP) é um estado insular localizado no Golfo da Guiné com cerca de 196000 habitantes. Foi colónia portuguesa a partir do século XV sendo declarada a sua independência a 12 de julho de 1975.
Após a declaração da independência, o sistema de saúde de STP sofreu profundas alterações. Por um lado, preservou a estrutura sanitária do período colonial, continuando os hospitais a funcionar no interior das roças; por outro lado, o Estado criou os Serviços de Saúde Pública, responsáveis pela intervenção de natureza preventiva e edificados a nível distrital. Nova reorganização ocorreu após a publicação da Carta Sanitária em 2000, passando os diferentes distritos a assegurar a prestação de serviços ao nível dos cuidados de saúde primários, sendo que os cuidados mais diferenciados ficaram centralizados no Hospital Dr. Ayres de Menezes, na cidade de São Tomé.
Nos diferentes distritos, o sistema de saúde desdobra-se em três tipos de unidade: Centros de Saúde (CS), Postos de Saúde e Postos de Saúde Comunitária. Existem, adicionalmente, pequenas unidades de Serviço de Urgência e de Internamento nos centros de saúde de Caué, Lembá e na ilha do Príncipe.
Os CS são uma estrutura fundamental deste sistema e estão localizados nas capitais de distrito – São João dos Angolares, Neves e Santo António. Estão vocacionados para prestar cuidados integrados de nível primário e dispõem de equipas de saúde constituídas por médicos de clínica geral, enfermeiros, técnicos de farmácia, de epidemiologia, de ação social e pessoal auxiliar.
Os Postos de Saúde são considerados extensões dos CS, dotados de uma equipa residente que inclui um enfermeiro que presta cuidados de saúde diários à população, e um médico e um técnico de farmácia que se deslocam conforme as necessidades.
Os Postos de Saúde Comunitária prestam cuidados de saúde a populações de aproximadamente 1000 habitantes. Para além da avaliação e orientação de quadros agudos, são prestados cuidados de penso, realizam-se ações de aconselhamento e de prevenção, nomeadamente, no que diz respeito aos doentes crónicos, às políticas de vacinação, à nutrição e à saúde reprodutiva. Estes cuidados são prestados, quase exclusivamente, por enfermeiros. Pela limitação profunda de recursos humanos, as consultas de avaliação médica a decorrer nestes postos são residuais.
O sistema de saúde em STP enfrenta sérios problemas de natureza estrutural, agravados pelo contexto de pobreza generalizada, desnutrição, iliteracia e analfabetismo, carência de estruturas básicas de saneamento e de abastecimento de água potável. A carência de recursos humanos, a ausência ou a má qualidade das instalações, a escassez de medicamentos e equipamento considerado essencial, condiciona profundamente a prestação adequada de cuidados de saúde. Se necessários cuidados mais complexos e diferenciados existe a possibilidade de deslocar doentes para o Gabão ou Portugal, num processo pouco célere. Tudo isto leva a que os indicadores de saúde em STP sejam muito precários, com taxas de natalidade elevadíssimas, sendo a desnutrição e as doenças infeciosas importantes causas de morte.
O estágio em Cuidados de Saúde Primários, realizado pelo grupo de três internos do 4º ano de Medicina Geral e Familiar, teve um mês de duração e decorreu no distrito de Lembá, com a atividade clínica a distribuir-se entre o CS de Neves e os Postos de Saúde da referida área.
As atividades decorriam sob a orientação da Dr.ª Maida Ramos, delegada de saúde de Lembá, e tinham como base a realização de “consultas abertas”. Estas eram agendadas na manhã de cada dia, pela equipa de enfermagem, que definia a ordem de atendimento de acordo com o tipo e gravidade dos quadros clínicos e posteriormente de acordo com a ordem de chegada. A referida consulta inclui todas as faixas etárias e motivos de consulta, desde as situações agudas até às consultas de reavaliação de problemas crónicos. Estas não têm definida qualquer estrutura ou calendarização, sendo a introdução e o cumprimento dos planos terapêuticos muito condicionados. A equipa de internos realizou várias referenciações para os serviços de urgência do CS e serviço hospitalar da capital. Ocuparam-se, também, da vigilância dos casos por eles observados e que resultaram em internamento, acompanhando a sua evolução até ao momento da alta, numa troca de impressões constante com as equipas médica e de enfermagem; a unidade de Internamento do CS de Neves inclui três enfermarias – Adultos Homens; Adultos Mulheres e Pediatria.
As consultas de Planeamento Familiar e de Saúde Infantil e Juvenil eram realizadas, quase exclusivamente, pela equipa de enfermagem, sendo que os médicos assumiam um papel de consultoria; a equipa fez o seguimento das mulheres em idade fértil (grupo este muito resistente à introdução dos métodos contracetivos) e das grávidas. A consulta de Saúde Infantil e Juvenil resumiu-se, fundamentalmente, à vigilância da implementação adequada do Plano Nacional de Vacinação.
A “Consulta Aberta” que foi realizada fora do CS de Neves constituiu o aspeto mais desafiante de todo o estágio. Semanalmente, os internos, integrando a equipa de saúde constituída por médico, enfermeiro, técnico de farmácia e técnico laboratorial, deslocaram-se a áreas mais remotas do distrito de Lembá, como por exemplo as comunidades de Santa Catarina e de Diogo Vaz. As consultas tiveram lugar nos Postos de Saúde e Postos Sanitários das referidas áreas, mas também em locais absolutamente improvisados – como uma varanda ou um pequeno armazém – na ausência de infraestruturas ligadas ao CS. Foi durante estas deslocações que a equipa encontrou as situações mais graves e urgentes, no que diz respeito à pobreza extrema, à desnutrição infantil, ao descontrolo da natalidade, à ausência de estruturas bem organizadas para os cuidados de saúde – com grandes dificuldades no acesso a medicação e meios complementares de diagnóstico básicos, e à falta de abastecimento de água potável e de saneamento básico.
Durante o mês de estágio, o grupo experimentou um profundo crescimento, a nível pessoal e profissional, dialogando e estabelecendo, frequentemente, os inevitáveis paralelismos entre a realidade são tomense e a realidade nacional, não só no que diz respeito ao sistema de saúde, mas também sobre aquilo que Portugal conseguiu conquistar e definir como algo adquirido e global – um sistema de saúde organizado, proteção social, educação, acessos, tratamento dos resíduos; são realidades difíceis de conquistar, e em relação às quais STP ainda tem um longo e sinuoso caminho a percorrer.
Por fim, importa falar da obra das Irmãs Franciscanas na cidade de Neves, projeto com o qual os internos tiveram o prazer de colaborar paralelamente ao estágio. O contacto com este extraordinário projeto renova-nos a humildade, obriga-nos a colocar a nossa própria realidade em perspetiva e a perceber que não existem limites no espetro da bondade entre seres humanos.