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Esclarecimentos ao parecer jurídico a propósito da problemática da dita “violência obstétrica” e da publicação da Resolução da AR

Esclarecimentos ao parecer jurídico emitido pela Ordem dos Médicos por solicitação do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia a propósito de questões decorrentes da problemática da dita “violência obstétrica” e da publicação da Resolução da Assembleia da República 181/2021, de 28/06.

 

Introdução

Cumpre prestar esclarecimentos clínicos sobre matérias referidas no extrato do parecer jurídico, referido em epígrafe, a seguir transcrito.

Em nossa opinião e independentemente da publicação da Resolução importa que a Ordem dos Médicos com o apoio técnico do Colégio da Especialidade adopte uma posição que contenha a motivação técnica aprofundada da realização dos actos que podem ser colocados em crise, como parece ser o caso, entre outros, do toque vaginal, da cesariana, da aplicação de ventosas e fórceps, da episiotomia, da manobra de Kristeller1 e da administração de determinada medicação.

1 Ou outras manobras que com ela se possam confundir.

Por esta via a Ordem dos Médicos definiria o “estado da arte médica” no que atine àquelas matérias criando assim o que podemos chamar de “soft law” que servirá como base para a informação e esclarecimentos a fornecer às grávidas previamente à prática de actos médicos que possam motivar os ditos procedimentos.

Releva, no entanto, que a posição do Colégio sobre a necessidade de prática de cada um dos actos seja clara e compreensível para não médicos e que explicite as circunstâncias e finalidades que determinam a sua realização e as possíveis consequências da sua omissão.

É sobre essa informação, a fornecer à grávida em momento oportuno do processo de gravidez – que deve ser prévio ao trabalho de parto – que aquela poderá ponderar a realização do parto com determinados prestadores de cuidados de saúde.

A informação que preconizamos deve ser simples, objectiva, clara, suficiente e razoável quanto ao objetivo dos actos, consequências da sua concretização e da sua omissão, riscos e alternativas no caso concreto de cada um dos procedimentos para que possa ser utilizada pelos médicos obstetras nos seus serviços.

Esclarecimentos

Toque vaginal durante o trabalho de parto

O toque vaginal ou palpação digital da vagina, do colo do útero, da bacia, da bolsa de águas e da apresentação fetal, é um procedimento que faz parte das boas práticas durante o trabalho de parto para se avaliar a progressão do mesmo e a possibilidade de se realizarem intervenções obstétricas, quando necessárias, como a aplicação de uma ventosa ou fórceps, tendo em vista a deteção, a prevenção e o tratamento de anomalias que podem comprometer o parto. A frequência de realização de toques recomendada durante o trabalho de

parto é variável, dependendo da fase em que este se encontra e da sua dinâmica, em termos de queixas maternas, bem-estar fetal, contrações uterinas e progressão da dilatação do colo uterino e da apresentação. No início do trabalho de parto, na chamada fase latente do período de dilatação do colo uterino, podem passar-se várias horas sem necessidade de toque, enquanto que na fase final do período expulsivo poderá ser necessário tocar, no limite, a cada dois ou três puxos maternos. A realização do toque vaginal por mais de um profissional poderá ser necessária para aferir avaliações que possam ter deixado dúvidas ou para fins de ensino-aprendizagem, com a devida explicação e consentimento.

Cesariana

A cesariana é uma intervenção que permite salvar muitas vidas e evitar muitas sequelas maternas e fetais, em que se realiza a extração do feto por via abdominal, sob anestesia geral ou epidural. Tem como principal indicação a distocia, isto é, as situações de dificuldade na progressão do feto através do canal de parto, que previsivelmente não se consigam resolver por esta via, com segurança para o feto e para a mãe. As distocias associam-se normalmente a problemas com a dimensão da bacia materna, com as contrações uterinas, com a dimensão e a apresentação do feto ou com situações de sofrimento do feto ou da mãe que são incompatíveis com um parto seguro por via vaginal. A taxa de cesarianas varia muito nas diversas partes do mundo, estimando-se que em Portugal o seu valor médio se deverá situar entre os 20 e os 30%.

Manobra de Kristeller

A manobra de Kristeller, tal como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras organizações científicas e profissionais mundiais descrevem atualmente, é uma manobra em que se empurra de forma forçada a região superior (fundo) do útero em direção à pelve e à vagina materna na tentativa de ajudar o feto a exteriorizar-se, sem limite ou controlo da força exercida, por vezes de forma muito violenta, com projeção do corpo do interveniente sobre o abdómen da grávida. Esta manobra é perigosa para a mãe e para o feto e é considerada má prática. A manobra descrita de Kristeller não deve ser confundida com outras manobras de manipulação abdominal controlada, que constituem boa prática durante o trabalho de parto, como a realização da terceira manobra de Leopold, para avaliação da descida da apresentação fetal, a manobra de Hillis-Mueller para avaliação da compatibilidade feto-pélvica, a manobra de pressão do fundo uterino, para ajuda da extração fetal na cesariana, de pressão supra-púbica para ajuda na resolução de dificuldades de libertação dos ombros do feto, de massagem uterina para exteriorização da placenta, e após esta para controlo de hemorragias, de versão, ou seja tentativa de modificação da posição fetal, ou de outras manobras, realizadas por profissionais especializados e devidamente registadas no processo clínico.

Episiotomia

A episiotomia é um corte que se realiza no períneo da mulher, isto é, na região situada entre a vulva e o ânus, normalmente realizado sob anestesia local ou epidural, para ampliar a abertura vulvo-vaginal. É uma intervenção que não deve ser usada por rotina, isto é, em todos os partos, sendo boa prática em situações em que não é seguro, de outra forma, exteriorizar-se o feto, por via vaginal, nomeadamente durante a aplicação de uma ventosa ou de um fórceps, perante situações de sofrimento fetal ou de risco de lesões maternas, particularmente do esfíncter anal. Em Portugal, estima-se que em média possa ser necessária em 20 a 30% dos partos vaginais não instrumentados, isto é, sem aplicação de ventosa ou fórceps, podendo a taxa duplicar quando se realizam as intervenções referidas.

Ventosa e fórceps

A ventosa obstétrica e o fórceps são instrumentos que se utilizam quando o feto está prestes a nascer (encravado ou junto à histerotomia, em caso de cesariana) para o exteriorizar ou o ajudar a nascer com segurança, nomeadamente quando há sinais de sofrimento fetal ou materno. Normalmente realizam-se com analgesia epidural, mas poderão realizar-se sem anestesia, quando a exteriorização é fácil, rápida e não traumática. É frequente a necessidade de recurso à episiotomia.

Medicação durante o parto

A necessidade de medicação durante o trabalho de parto (incluindo o período após o nascimento, de exteriorização da placenta e de contração uterina – formação do globo de segurança) é relativamente frequente, nomeadamente no que respeita a analgesia, realizando-se analgesia epidural a pedido da grávida em mais de 70 a 80% dos partos onde tal é possível. Outro tipo de medicação inclui a administração de fluídos, para hidratação e controlo da pressão arterial, antibióticos, para prevenção e tratamento de infeções, ocitocina, para desencadeamento de contrações uterinas/correção de distocias, ou de tocolíticos, para as abolir, quando necessário.

Pela direção do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, da Ordem dos Médicos

Prof. Doutor João Bernardes