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Ecos do congresso | Adalberto Campos Fernandes (ex-ministro da Saúde)

 

Desafiou o bastonário da Ordem dos Médicos a criar um Gabinete de Recuperação. Numa altura em que se fala tanto do papel das Ordens, porquê este desafio?

Estamos num momento de dar um sinal ao país de que o contributo das Ordens Profissionais, e nomeadamente da Ordem dos Médicos, pode fazer-se no sentido da recuperação, porque acredito que estamos a iniciar o momento da recuperação e que o papel da Ordem dos Médicos é incontornável enquanto parceiro para ajudar a resolver os problemas. Essa contribuição pode ser feita através da identificação dos problemas e da aproximação dos médicos aos doentes, porque os melhores advogados dos doentes são os médicos. Os maiores defensores dos interesses dos doentes são os médicos, que conhecem realidades concretas, e que podem trazer do terreno contributos muito importantes para que os próprios decisores políticos tomem medidas mais resolutivas e efetivas neste período do pós-pandemia.

Considera que há essa abertura para o diálogo da parte do Governo e do Ministério da Saúde?

Não estou em condições de dizer se sim, se não. Eu tenho um princípio que é um princípio teórico, e que é independente dos protagonistas, de que a sociedade se constrói através do diálogo, do convívio normal, equilibrado, com a diferença, com a crítica e até com contestação, desde que seja feita com limites e os limites são os que a democracia prevê. Se não existe é pena, se existe ainda bem e se existe deve ser reforçado, não apenas com a Ordem dos Médicos, mas também com outras Ordens Profissionais. É difícil pensar que se resolvem os problemas do país na área da saúde à margem dos médicos. É uma ideia no mínimo absurda.

Uma recuperação envolve fazer mais do que já fazíamos em 2019. Com a falta de médicos de família para todos os portugueses e tantos outros problemas, que políticas têm de ser seguidas para que a recuperação possa ser otimizada?

Temos 93% dos portugueses cobertos com médico de família, e temos um conjunto largo de médicos especialistas formados fora do sistema público. Temos de conversar com eles, nomeadamente com o apoio da Ordem dos Médicos para encontrar uma solução que os faça mobilizar e atrair para dentro do SNS. Se 70% dos médicos formados entrassem no sistema de saúde os problemas de cobertura ficavam resolvidos. Nunca teremos um sistema que responda de uma forma completa e por 100%, haverá sempre dificuldades. É preciso defender o interesse das pessoas e promover a interajuda com o setor social e o setor privado. O cidadão português cumpre a sua obrigação que é pagar impostos, e se paga impostos tem de ter direito aos serviços que paga. Se o serviço público não é capaz de responder, é preciso estabelecer um acordo, uma parceria temporária até que o SNS consiga responder. É um caminho que se pode fazer com mais energia e com mais empenho.

Falou dos indicadores de Portugal nos últimos 40 anos, que são muito bons em várias áreas. Daqui a 40 anos, para não termos um caminho tão ziguezagueante, acha que Portugal beneficiaria de uma linha europeia da saúde ou o nosso caminho será mais solitário?

Beneficiaria. Eu sou há muito tempo defensor do aprofundamento dos compromissos e dos mecanismos para ter uma plataforma comum, um conjunto mínimo de critérios, em que a circulação das pessoas nos países seja facilitada, e em que os direitos de proteção da saúde dos diferentes países sejam equivalentes, sem encargos e sem responsabilidades para os próprios cidadãos. Tenho esperança de que a crise possa ter servido para isso.

Uma última mensagem aos médicos neste Congresso, que é também no fundo o seu Congresso.

Que os médicos continuem a ser aquilo que é a essência da sua missão, da sua condição, que sejam os principais defensores daqueles quer precisam, daqueles que sofrem, daqueles que são afetados pela doença. Que nunca deixem de exercer esse seu mandato que é um mandato cívico, é um mandato ético e que remete para a história da própria profissão. Um país que tenha uma Ordem dos Médicos que é sensível aos problemas das pessoas é um país que dá mais confiança aos cidadãos e que torna mais exigente a realização das políticas.