Autora: Marta Rainho, Médica Interna de Medicina Geral e Familiar na USF Luísa Todi (ACES Arrábida)
Decorria o início de janeiro de 2020 quando nos chegaram as primeiras notícias relativas ao surgimento de um novo coronavírus, na cidade chinesa de Wuhan. Nessa altura, a propagação em massa e consequente chegada do vírus a Portugal não eram ainda hipóteses equacionadas pelas autoridades de saúde. Assistíamos vigilantes à multiplicação de casos, construção de hospitais na China em tempo recorde e isolamento de cidades inteiras numa tentativa de controlar os surtos.
Foi uma questão de tempo até se registarem os primeiros casos na Europa. A 11 de março de 2020 a COVID-19 é então declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde e a 18 de março é decretado o estado de emergência em Portugal, já com medidas excecionais decretadas nos dias anteriores: readaptação total dos serviços de saúde, suspensão de atividades presenciais em todos os graus de ensino, imposição de teletrabalho, etc.
Ao nível dos Cuidados de Saúde Primários, realidade em que me insiro e que venho a acompanhar de perto, fomos confrontados com atualizações, por vezes diárias, da melhor evidência científica disponível e de normas/orientações que pretendiam uniformizar não só a resposta à COVID-19, mas também a atividade assistencial que era fundamental manter. Não seria admissível o adiamento de consultas de vigilância e vacinação, mantendo-se como prioritárias as consultas do 1º ano de vida, 1 consulta entre os 18 e os 24 meses e a consulta dos 5 anos de idade. Programávamos a deslocação de cada família à USF de forma a evitar atrasos ou aglomerações na sala de espera e a criança deveria ser acompanhada por um só cuidador. As dúvidas, preocupações e desabafos repetiam-se a cada consulta: incerteza quanto ao contágio e letalidade do novo vírus, partos que aconteciam sem direito a acompanhante, completo isolamento dos recém-nascidos do mundo exterior e dos restantes familiares mais próximos, readaptação das crianças/jovens à nova realidade em casa, maior tensão na vida familiar, apreensão dos pais (e filhos!) quanto ao futuro… Desde cedo se adivinhava que a pandemia de COVID-19 iria muito além da doença, física, sobre a qual recaíam todos os alertas.
Numa fase inicial da pandemia, os partos estavam a acontecer sem a presença do pai e, no caso de mães infetadas com COVID-19, não era recomendado o contacto com o recém-nascido nem o aleitamento materno. A evolução do conhecimento acerca do vírus SARS-CoV-2 permitiu a posterior atualização das orientações, dado o benefício amplamente reconhecido do contacto pele a pele. Atualmente, a decisão de contacto e de aleitamento materno passa também pela mãe (com medidas estritas de controlo de infeção). O acompanhante volta a poder estar presente no momento do parto, permitindo ao pai testemunhar de perto o nascimento.
Com o encerrar de creches, infantários, parques infantis e escolas em todo o país, as crianças e jovens foram também forçados ao isolamento. Foi realizado um esforço extraordinário para que a aprendizagem continuasse, mas pela situação de exceção que vivíamos, deixaram de ser possíveis as brincadeiras entre pares, as partilhas, as relações sociais com contacto físico. Mais ainda, muitas destas crianças viram-se privadas da relação com outros familiares, nomeadamente com os avós, até então peças fundamentais e presença assídua no dia-a-dia e educação dos netos. De repente, o medo de transmissão aos familiares que se incluem nos grupos de maior risco ditava o afastamento. Mesmo aqueles que mantiveram relações de maior proximidade, por opção ou mesmo necessidade, questionavam-se, e questionavam-nos, se seria a decisão correta!
A precaução perante um vírus tão recente e pouco estudado justificaram estas medidas de exceção, mas não podemos deixar de nos questionar acerca do impacto que certamente terão no desenvolvimento físico e psíquico das crianças e jovens, principalmente a longo prazo.
A condição de vulnerabilidade da criança justifica a necessidade de proteção e atenção especiais. A família constitui o meio natural para o seu crescimento e bem-estar, num ambiente favorável, de afetos e compreensão. De igual forma, o âmbito escolar desempenha um papel fundamental na aprendizagem e crescimento – é nas interações que as crianças aprendem e que descobrem mais sobre si e sobre o mundo. Crianças e jovens que não se confrontam com situações adversas, não sentem necessidade de procurar soluções e de desenvolver capacidades adaptativas e de regulação emocional. Para além de mentes activas, é necessário continuar a fomentar “corpos activos”, num equilíbrio mente-corpo. O regresso à atividade física é essencial, também pelo importante papel na prevenção do excesso de peso e obesidade entre os mais jovens. Com o aproximar do novo ano lectivo é fundamental criar as condições necessárias de segurança e higiene para o regresso presencial às escolas. O uso generalizado de máscaras, a promoção da higiene de mãos e da limpeza dos espaços usados ou a deteção precoce de casos suspeitos devem ser medidas bem recebidas.
A verdade é que o contacto físico e a proximidade são um pilar essencial no desenvolvimento social, cognitivo e estabilidade emocional de todos. Se inicialmente estávamos preparados para alguns (poucos) meses de sacrifícios e cedências, à medida que o tempo vai passando é preciso retomar de forma gradual e segura as relações interpessoais que temos vindo a adiar e, no limite, a abdicar. Devemos acima de tudo evitar deixar às nossas crianças e jovens uma herança de medo, fobia social, obsessão pela desinfeção ou vivência à distância como nova realidade.
Devido à sua posição privilegiada de proximidade e abrangência da família e da comunidade, o médico de família continuará (cada vez mais) a desempenhar um papel de elevada importância na promoção ativa do desenvolvimento físico, mas também, mental e relacional da população mais jovem.
Referências bibliográficas:
- Convenção sobre os Direitos da Criança, Assembleia Geral da ONU, 1989
- Direção Geral de Saúde – Informação nº 008/2020 de 26/03/2020: “Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil e epidemia de COVID-19”
- Direção Geral de Saúde – Orientação nº 018/2020 de 30/03/2020, atualizada a 05/06/2020: COVID-19: “Gravidez e Parto”
- Direção Geral de Saúde – Orientação nº 026/2020 de 19/05/2020: “COVID-19: Cuidados ao Recém-nascido na Maternidade”
- Direção Geral de Saúde – Orientação nº 025/2020 de 13/05/2020, atualizada a 20/07/2020: “COVID-19: Medidas de Prevenção e Controlo em Creches, Creches familiares e Amas”