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Distância focal em Medicina

Autora: Teresa Maria Sousa, Médica interna de Medicina Geral e Familiar, USF Santa Clara

Resumo

A comunicação entre o médico e o doente é facilmente perturbada na prática clínica. Através da gravação e consulta de registos médicos, o computador permite-nos exercer Medicina de uma forma mais segura e eficiente. Todavia, a sua utilização excessiva prejudica a atenção dedicada ao comportamento do doente, sobretudo no que diz respeito aos aspetos psicossociais e emocionais da doença. É importante repensar a distribuição da atenção na consulta sob pena de desvalorizar os receios, crenças e expectativas do doente.

Sou médica interna de Medicina Geral e Familiar e no final de fevereiro iniciei uma atividade complementar. No dia anterior, enquanto preparava a mala, verifiquei que tinha na pen drive os conteúdos necessários a qualquer pesquisa rápida durante a consulta – slides de cursos frequentados, algoritmos de diagnóstico e formulários terapêuticos. De igual forma, confirmei que estavam na carteira o meu cartão da ordem e cartão de cidadão para efetuar as prescrições.

Quando cheguei ao consultório, olhei para a secretária com espanto. Numa área ampla de madeira, contavam-se apenas o bloco de receitas manuais, modelos de registo em papel, uma caneta e o esfigmomanómetro. Apressadamente, procurei disfarçar o meu embaraço e chamei o primeiro doente. Enquanto convidava o utente a entrar, apercebi-me de que, em 4 anos de atividade clínica, esta seria a minha primeira consulta sem a presença de um computador para consultar dados, informação clínica, ou mesmo efetuar registos.

À medida que prosseguia nas entrevistas clínicas, o receio cedia espaço à curiosidade e à descoberta das expressões corporais que acompanhavam o discurso de cada doente – a postura introvertida, quase culpabilizante, quando referiam ter apenas o 1º ciclo de escolaridade; a felicidade com que descreviam as atividades quotidianas do emprego; a tristeza e o medo no olhar que acompanhava o relato da causa de morte dos familiares mais próximos, entre tantas outras que vivenciei nas consultas dessa tarde. De igual modo, senti a minha atenção inteiramente centrada nos doentes – naquilo que me contavam, descreviam e demonstravam à medida que realizava o exame físico, colaborando reciprocamente na construção de um diálogo singelo.

Finda essa tarde de trabalho, refleti na quantidade de informação verbal, mas sobretudo não verbal, que a ausência de um computador me permitiu recolher. Efetivamente, são sobretudo os aspetos psicossociais e emocionais relacionados com a doença que são prejudicados pela sua utilização durante a consulta. A quebra do contacto visual traduz-se numa perturbação da comunicação que condiciona não apenas a perceção destes aspetos pelo médico, como também contribui para que o doente não se sinta ouvido.

Ainda que a utilidade do computador na prática clínica não seja sequer questionável, é inegável que o seu uso compete pela atenção dirigida ao doente, prejudicando a relação construída com o próprio e, consequentemente, a satisfação de ambos.

Existem orientações no sentido de minimizar o impacto deste obstáculo na comunicação. Assim, para desimpedir o campo de comunicação, devem estar em cima da secretária apenas o material de registo essencial e lenços de papel, reservando para fora deste espaço todos os outros objetos. Por sua vez, o corpo do médico deve estar orientado na direção do doente e o computador cuidadosamente alocado num ângulo de 45 graus relativamente ao eixo formado entre os dois intervenientes.

Numa época em que a comunicação entre médico e doente é confrontada com novos desafios – a realização de teleconsulta e a utilização de mecanismos de proteção adicionais, como películas de acrílico, máscaras e viseiras, espero manter a minha atenção plenamente direcionada à informação veiculada por cada doente, verbal e não verbal. Assim, procurarei descobrir nas entrelinhas do discurso, dos olhares e gestos, quais os receios, crenças e expectativas que levaram o doente à consulta, tal como naquela tarde de trabalho em que na secretária se encontravam apenas o bloco de receitas manuais, modelos de registo em papel, uma caneta e o esfigmomanómetro.

 

Referência bibliográfica

Correia LM, Cardoso RM. Preparar o contexto e receber o doente, In: Cardoso RM (ed.) Competências Clínicas de Comunicação. Porto. Unidade de Psicologia Médica. Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; 2012. p26-33.