Autoras:
Sílvia Alexandra Duarte, Interna de Formação Específica do 2ºano de Oncologia Médica do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Marta Guedes, Médica Assistente de Medicina Geral e Familiar da USF Paiva Douro
Marcela Miranda, Enfermeira Especialista em Enfermagem de Reabilitação da UCC Boticas ACeS Alto Trás-os-Montes – Alto Tâmega e Barroso
Ana Sofia Fonseca, Assistente Social do ACeS Alto Trás-os-Montes – Alto Tâmega e Barroso
Alunas da Pós-Graduação de Cuidados Paliativos da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – Vila Real
Em Portugal, perante a alteração do paradigma demográfico e do aumento exponencial da doença crónica e incurável foi necessária uma remodelação legislativa no que concerne aos direitos dos doentes, nomeadamente daqueles com necessidades paliativas.
Os cuidados paliativos (CP) são uma atividade relativamente recente, tendo as primeiras iniciativas surgido apenas no início dos anos 901. A partir de 2004, foram criados vários Programas Nacionais de CP. Em 2006, foi criada a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (Decreto-Lei nº 101/2006 de 6 de junho de 2006) com o objetivo da prestação de cuidados de saúde de forma continuada e integrada, nos quais se inseriram os CP, reconhecido desta forma o direito inalienável a estes cuidados de saúde. Em 2010, é aprovada a revisão do Plano Nacional de CP, sendo estratificados, como proposto pela Associação Europeia de CP, quatro níveis de cuidados: 1º Ações paliativas; 2º CP generalistas; 3º CP especializados; 4º Centros de excelência em Cuidados Paliativos.
Em 2012, foi aprovada a Lei de Bases dos CP2 que deu origem à Rede Nacional de CP. Em 2015 foi publicado o Decreto-Lei nº 136 julho/2015, que define a Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP) como uma rede própria, independente da RNCCI, assegurando a necessária articulação entre as duas redes. Em 2016, constituiu-se a 1ª Comissão Nacional de CP (Despacho nº 7824/2016 de 15 de junho), iniciando-se assim a regulamentação desta Rede e a implementação de um plano estratégico para a organização dos serviços e formação dos recursos humanos (Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos CP no biénio 2017-2018, aprovado pelo Despacho nº 14311-A/2016 de 28 de novembro). Em 2018, foi publicada a Lei n.º 31/2018 de 18 de julho3, que regula os direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida.
Na Lei de Bases dos CP2, foram consagrados os direitos dos cidadãos aos cuidados paliativos, bem como definida a responsabilidade do Estado na matéria. Segundo esta, o doente tem direito a: a) receber cuidados paliativos adequados à complexidade da situação (…); b) escolher o local de prestação de cuidados paliativos e os profissionais, exceto em casos urgentes (…); c) fazer-se acompanhar, nos termos da lei; d) ser informado sobre o seu estado clínico, se for essa a sua vontade; e) participar nas decisões sobre cuidados paliativos que lhe são prestados (…); f) ver garantidas a sua privacidade e a confidencialidade (…); g) receber informação objetiva e rigorosa sobre condições de internamento. Nenhum cidadão pode ser prejudicado ou discriminado em função da sua situação económica, área de residência ou patologia. (…).
Na Lei nº 31/2018 de 18 de julho3, foram introduzidos direitos ausentes ou deficitariamente explanados na Lei de Bases de CP. De notar: a) o direito em participar ativamente no plano terapêutico, podendo recusar tratamentos, sem prejuízo das competências dos profissionais de saúde; b) o direito a não ser alvo de distanásia, através de obstinação terapêutica e diagnóstica; c) o direito ao consentimento informado, tendo o direito a recusar (…) o suporte artificial das funções vitais e a prestação de tratamentos não proporcionais nem adequados ao seu estado clínico ou que prolonguem ou agravem a sua condição de sofrimento; d) o direito a receber sedação paliativa (…) em situações de prognóstico vital breve e que apresentem sintomas de sofrimento não controlável; e) o direito a recusar alimentação ou cuidados de higiene em situação de últimos dias de vida (…); f) direito a realizar testamento vital e nomear procurador de cuidados de saúde; g) o direito de ser o único titular do direito à informação clínica e decidir com quem partilhar essa informação; h) o direito de dispor sobre o destino do seu corpo e órgãos, após a morte; i) o direito de designar familiar ou cuidador de referência que o assistam ou, designar procurador ou representante legal; j) o direito de receber os apoios e prestações sociais que mais se adequem à sua situação.
Também o Decreto-Lei n.º 253/2009 de 23 de Setembro4 reconhece ao doente, o direito a aceder, em tempo útil, ao serviço de assistência espiritual e religiosa, independentemente da religião professada, assim como a rejeitar a assistência não solicitada, e, portanto, a ver respeitada a sua convicção religiosa ou a ausência dela.
Em termos legislativos, muito se conseguiu em defesa dos doentes com necessidades paliativas. Contudo, a implementação prática destes direitos nem sempre se revela exequível, surgindo dificuldades na sua operacionalização.
A escassez de recursos humanos com formação e competências adequadas à prestação destes cuidados especializados compromete a eficiente constituição das equipas. Grandes assimetrias na distribuição geográfica das equipas, quer em regime de internamento, mas sobretudo a nível domiciliário, com o incumprimento frequente da dotação mínima das equipas interdisciplinares, comprometem o acesso equitativo da população a estes cuidados. A incapacidade de disponibilização de apoio 24 horas por dia, 7 dias por semana a nível nacional, cria constrangimentos de segurança destes doentes e cuidadores, que, pela sua complexidade, se encontram particularmente vulneráveis e fragilizados. Estas limitações têm consequências nefastas no bom funcionamento dos sistemas de saúde, como a recorrência frequente e, por vezes, inadequada aos serviços de urgência.
O cuidador informal surge como aliado fundamental na prestação de cuidados. Um estudo realizado pelo Observatório Português dos Cuidados Paliativos (OPCP) de 20185 revela que os cuidadores portugueses são sobretudo género feminino, cônjuge, em média com 60 anos de idade, a cuidar sete dias por semana, durante uma média de quase dois anos e em que 54% se encontram numa situação de inatividade profissional. Perante este panorama urge o reconhecimento e a aprovação do estatuto de cuidador informal e o fortalecimento de uma rede social para apoiar os doentes e suas famílias.
De acordo com o OPCP em 20186 a formação pré-graduada mantém-se parca ou inexistente, pois apenas dois cursos (medicina e enfermagem) incluem unidades curriculares (UC) especificamente dedicadas aos CP. Em 148 planos de estudos, apenas 20 (2 de medicina e 18 de enfermagem) contemplam uma UC de CP, sendo estas maioritariamente optativas nos cursos de medicina e maioritariamente obrigatória nos cursos de enfermagem. Ao nível pós-graduado observou-se um crescimento, sobretudo pela disponibilização de cursos de formação básica/ intermédia por parte das administrações regionais de saúde, e avançada por parte das instituições universitárias (6 mestrados, sendo que 5 estão em funcionamento e 12 pós-graduações). Alerta-se para o facto de que nem todas as pós-graduações estarem acreditadas. Esta carência de formação, nomeadamente das equipas médicas, poderá influenciar o não reconhecimento e referenciação precoce do doente paliativo, em detrimento da otimização dos cuidados prestados e do seu bem-estar global.
Existe um hiato entre o que está legislado e o que acontece no terreno, que tarda em ser colmatado. A carência de recursos humanos deve-se, não só à escassez de formação específica, mas também à falta de condições para a prestação de cuidados nesta área e à interposição de barreiras económicas para que as equipas funcionem em pleno.
Enquanto profissionais de saúde, a medida da nossa humanidade traduz-se na forma como refletimos, aperfeiçoamos a nossa prática e em como advogamos em prol dos doentes para garantir os seus direitos.
Referências bibliográficas
- Marques AL, Goncalves E et al. O desenvolvimento dos cuidados paliativos em Portugal. Patient Care, Outubro 2009.
- Lei n.º 52/2012 de 5 de setembro. Diário da República n.º 172/2012 – Série I. Assembleia da República. Lisboa.
- Lei n.º 31/2018 de 18 de julho. Diário da República n.º 138/2018 – Série I. Assembleia da República. Lisboa
- Decreto-Lei n.º 253/2009 de 23 de Setembro. Diário da República n.º 185/2009 – Série I. Assembleia da República. Lisboa
- Relatório de Outono do Observatório Português de Cuidados Paliativos – Secção Caracterização e Satisfação dos Cuidadores Informais. Novembro 2018. Coordenação Manuel Luís Capelas. Instituto de Ciências da Saúde – Universidade Católica Portuguesa.
- Relatório de Outono do Observatório Português de Cuidados Paliativos – Secção Formação em Cuidados Paliativos. Novembro 2018. Coordenação Sandra Martins Pereira. Instituto de Ciências da Saúde – Universidade Católica Portuguesa.