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Detectar a mentira em peritagem médica: simulação e dissimulação

Autor: David Fernandes Luís, Competente em peritagem médica da segurança social; Competente em avaliação do dano corporal pós-traumático; Especialista em medicina do trabalho; Pós-graduado em medicina legal; Pós-graduado em avaliação do dano corporal; Pós-graduado em medicina legal social e do trabalho; Perito médico contratado do INMLCF; Membro da APADAC e da SPOT

 

 

Mentir, dissimular, ocultar, esconder ou sonegar sentimentos, pensamentos ou informação fazem parte do comportamento normal do ser humano. De facto, é do conhecimento geral que mentir é o óleo que lubrifica as nossas interações com os outros e nos permite manter relacionamentos sociais amigáveis. Quem é que, até para agradar ou sossegar alguém, porventura um amigo íntimo, não disse uma mentira piedosa? Nas nossas relações sociais, com os nossos familiares, amigos, colegas de trabalho e vizinhos, se contássemos toda a verdade do nosso pensamento ou sentimento, o mais provável é que acabaríamos por ficar sós e abandonados. Em geral, dizemos que apreciamos a frontalidade dos outros mas quando ela é expressa de forma excessiva (e nos dizem toda a verdade na cara!) ninguém gosta. Nestes contextos de relação social seríamos eventualmente agredidos ou condenados, podendo mesmo acabar na prisão (PEASE, 2004). Por exemplo, imaginem o que nos aconteceria se disséssemos abertamente à bela mulher do nosso diretor, na presença dele: «Maria você é muito linda e formosa. Eu gostava de ter relações sexuais consigo». De acordo com Patterson (PATTERSON, 1992), num estudo em que entrevistou mais de 2000 americanos, 91 % destes mentiam de forma habitual, tanto em casa como no trabalho. Feldman (FELDMAN, 1959), num estudo com 121 casais em conversação com uma terceira pessoa, concluiu que 62% dos participantes diziam uma média de duas a três mentiras a cada dez minutos de conversação. Na prática, se cada um de nós olhar para si próprio, sem qualquer tipo de preconceito, pode confirmar estas estatísticas…

Mentir no dia-a-dia é um comportamento habitual e frequente da  espécie humana e serve os propósitos gregários de socialização que são característicos da nossa espécie. Se dizer mentiras num contexto de interação social banal é normal, como vimos já, o que dizer quando essas pessoas foram vítimas de algum acidente de trabalho, de lazer ou de

viação e estão em litígio com seguradores, na expectativa de receberem algum tipo de compensação pelos danos sofridos? E ainda mais quando sabem por terceira pessoa − habitualmente um advogado que os representa −  que essa compensação é em dinheiro?  Bem!.. Neste caso é de esperar que estas pessoas mintam mais, exagerando as suas queixas, sofrimentos e mazelas, algumas até inventadas de forma consciente ou sub-consciente (simulação), dependendo do seu quadro de valores morais, dos contextos sócio-económicos, fragilidades emocionais, pessoais, suas taras e personalidade. Também têm tendência em ocultar ou disfarçar informação médica sobre o seu estado de saúde prévio. Estão mais inclinadas em esconder as suas reais intenções (ter uma compensação financeira o mais alta possível porque precisam do dinheiro ou por mera vingança porque se encontram ressabiadas…). Num tempo em que vivemos, dominados pelo poder e valor do dinheiro, em detrimento de outros valores e referências éticas humanas mais dignificantes, como pode um simples operário, pai de família com elevados encargos, quiçá explorado no seu posto de trabalho, mal pago e desvalorizado, não ser tentado a mentir em seu próprio benefício? Quando ainda é conhecido que as elites sociais que poderiam e deveriam dar outro exemplo de comportamento moral, como políticos, banqueiros, quadros de topo de grandes empresas, representantes da igreja, etc., são corruptos; quando o próprio estado que nos governa é, de todos, o mais desonesto, sobrecarregando o cidadão com elevadas cargas fiscais e mentiras constantes; quando as seguradoras não se interessam pelos seus próprios clientes, movendo-se apenas pelo lucro com o único objetivo de lhes sacar o prémio mensal dos seguros que aqueles são obrigados a pagar por força das leis vigentes; quando os bancos ficam com o dinheiro dos seus depositantes, roubando-lhes uma vida de poupança, como podem as pessoas lesadas por aqueles infortúnios da vida não serem tentadas a mentir, a dissimular e simular, às vezes, por apenas umas poucas migalhas que poderão vir a receber?

Na qualidade de perito médico avaliador das consequências médico-legais dos acidentes na integridade psico-física das vítimas daquelas infelizes ocorrências temos exatamente constatado esta tendência da hipervalorização das queixas e das mazelas, com simulação, bem como a ocultação de eventuais estados de saúde anteriores que desqualifiquem e lhes retirem o potencial de virem a receber uma indemnização a título de reparação dos danos sofridos. Mas não podemos generalizar esta problemática a todas as vítimas. A grande maioria são pessoas honestas, algumas são completamente desconhecedoras dos seus direitos ou até completamente desinteressadas do que poderão vir a ganhar, a título de reparação. Mas algumas existem, realmente,  determinadas de forma deliberada em enganar-nos em seu benefício pessoal, lançando-nos aos ouvidos mentiras maliciosas. Imbuídos daquela magister missão, na qualidade de médico avaliador, compete-nos o dever de isenção, rigor e imparcialidade. Estes são os princípios éticos em que qualquer perito médico se apoia para avaliar de forma justa as sequelas sofridas, sem ser tendencioso a favor ou em desfavor das partes contrárias em litígio (na prática, um lesado ou vítima e um segurador).

Importa por isso a todo o perito médico estar sensibilizado para esta problemática, no sentido de ser isento e rigoroso na sua difícil missão pericial. Este artigo de opinião procura analisar e discutir alguns aspectos da linguagem corporal do sinistrado que de forma deliberada está determinado em enganar- nos (simulando ou dissimulando), em seu benefício pessoal.

 

OS TRÊS MACACOS SÁBIOS

Fonte: Pease, A. & Pease, B. Linguagem Corporal. O Guia Definitivo para a Comunicação Não Verbal. Pergaminho, Março 2017. P 155

Esta gravura (PEASE, 2004) simboliza aqueles que não ouvem nada de mal, não vêm nada de mal e não dizem nada de mal. Olhando para ela todos reconhecemos gestos da linguagem não verbal e, para os mais perspicazes e intuitivos, é fácil de verificar  que estes gestos simples de mão−ao−rosto constituem a base do comportamento humano enganoso. Todos já tivemos a oportunidade de observar as crianças mentindo e como usam de forma clara e evidente o gesto de mão−ao−rosto quando o fazem. Quando tal acontece, ela cobre a boca com uma ou ambas as mãos numa tentativa de impedir a palavras enganosas de sair. Se ela não quiser ouvir uma reprimenda dos pais cobre os ouvidos com as mãos para bloquear o som e quando vê algo que não quer ver cobre os olhos com as mãos ou com os braços. À medida que a criança cresce estes gestos mão−ao−rosto tornam-se menos óbvios e são mais rápidos pois ocorre uma tentativa para disfarçá-los mas continuam a ocorrer pois são gestos automáticos, sub-conscientes, não dependentes da vontade daquele que mente. Deve ser salientado, no entanto, que estes gestos mão−ao−rosto não significam sempre que a pessoa que o faz está a mentir. Pode estar apenas a ocultar informação. Estes gestos encontram-se igualmente associados à dúvida, à incerteza ou ao exagero. Por outro lado, o perito médico virtuoso tomará atenção aos agrupamentos de gestos mais alargados, procurando encontrar alguma incoerência de gestos, desadequação com a informação clínica disponível nos autos do processo em estudo, divergência com o que é dito na linguagem verbal no contexto do binómio médico avaliador/sinistrado.  O perito médico deve ler as peças pertinentes do processo, a começar pela participação da ocorrência (quando, como, porquê aconteceu), prosseguir para a leitura da informação clínica do segurador e apreciar criteriosamente os resultados dos exames complementares de diagnóstico disponíveis. O avaliador procura correlacionar toda a informação médica e processual disponível. Quando vai à sala de espera chamar o sinistrado para o exame médico deve observá-lo com olhar de ver. O sinistrado veio só ou veio acompanhado? Como reage corporalmente à chamada do seu nome? Como se levanta da cadeira? Como deambula? Usa canadianas? Há incoerência ou exagero nos seus gestos e movimentos? O perito médico deve cumprimentá-lo com um aperto de mãos, ao mesmo tempo que lhe examina a face e os olhos em particular!  Notou-se dilatação ou constrição das pupilas? Houve um aumento do número de piscadelas? Desvia/desviou o olhar? O sujeito ri de forma aberta e franca?  Mostra as mãos? As mãos estão suadas?  Como foi o aperto de mão? Ruborizou? Durante a avaliação médica,  o avaliador deve indicar ao sinistrado uma cadeira para se sentar, relativamente afastada da sua secretária de trabalho de modo que o possa examinar visualmente como um todo, de cima a abaixo, focando-se na face e nos gestos mão−ao−rosto, se cruza os braços ou as pernas, ou se os tem livres e descontraídos. Deve estar atento ao tom da sua voz e às suas inflexões. O médico não deve interromper o que o outro diz – deve dar-lhe tempo para se exprimir e deixar a linguagem corporal «falar» já que de acordo com Birdwishtell (BIRDWSHISTELL, 1971) ela representa mais de 60 % do que é comunicado. Simplesmente deve observar e confiar mais no que vê do que no que ouve. O sinistrado, enquanto fala, fez algum trejeito da face? (Contração involuntária dos músculos da face). Este é um microgesto e não acontece por acaso (representa um conflito de emoções). Deve ser valorizado, principalmente se o perito já reconheceu que há uma possibilidade de estar a ouvir uma mentira.

 

SEIS GESTOS MENTIROSOS MAIS COMUNS

1. Cobrir a boca

A mão cobre a boca enquanto o cérebro a instrui, de forma subconsciente, a tentar suprimir as palavras enganosas de sair. Este gesto pode consistir apenas em vários dedos sobre a boca ou mesmo um punho fechado. Este gesto pode ser disfarçado pelo mentiroso simulando tosse, o que deve ser notado pelo perito.

2. Tocar no nariz – «Efeito Pinóquio»

Este gesto pode consistir em várias esfregadelas rápidas abaixo do nariz ou apenas num toque rápido, quase imperceptível no nariz. O perito médico deve excluir alguma irritação do nariz por rinite infecciosa ou alérgica ou outra doença que justifiquem o gesto. Trata-se do chamado «Efeito Pinóquio» – quando a pessoa mente liberta catecolaminas na corrente sanguínea que levam à vasodilatação dos pequenos vasos do nariz, orelha (mais o lobo da orelha, que fica vermelho) e da pele da face e pescoço. A ingurgitação dos vasos sanguíneos daquelas regiões é involuntária e dá comichão. A pessoa que mente sente isso e coça… O perito médico experimentado observa e fica esclarecido.

3. Esfregar o olho

Quando um adulto não quer olhar para algo que lhe desagrada é provável que ocorra este gesto. Este representa a tentativa do cérebro bloquear a dissimulação, a dúvida ou a situação desagradável que observa. Ou, o que é muito relevante, o seu esforço para evitar olhar no rosto a pessoa a quem está a mentir;

4. Agarrar a orelha

Estamos em presença de uma tentativa simbólica do mentiroso de «não ouvir nada de mal» das palavras enganosas que está a tentar fazer passar. Trata-se ainda do «Efeito Pinóquio» acima descrito. Ou ainda, a pessoa que o faz está a experimentar sentimentos de ansiedade. Mais. Uma pessoa excitada fica com o lóbulo da orelha vermelho e não é raro os amantes, pelo calor da paixão, acariciarem com a língua esta prega cutânea. Quando alguém mente fica também excitado pelo peso subconsciente do que diz ou tentar fazer passar…

5. Coçar o pescoço

A pessoa coça o pescoço porque sente comichão devido ao «Efeito Pinóquio» acima descrito. Se tiver colarinho, vai levar a mão ao colarinho a desapertar, pois a vasodilatação, como sabem, eleva a temperatura e o calor local… Pease (PEASE, 2004), num estudo que fez, constatou que a pessoa coça uma média de cinco vezes;

6. Dedos à boca

Este gesto representa uma regressão inconsciente  a um estádio psicológico de segurança em que chucha no seio da mãe. Pode também ser: introduzir os dedos ou objetos na boca, como cigarros, doces ou pastilhas elásticas, canetas ou hastes de óculos… A pessoa que mente sente-se inconscientemente insegura, por isso faz o gesto que podemos observar.

De realçar que podem ainda ser observados outros sinais, variantes dos aqui descritos, como por exemplo, rir menos do que é habitual, engolir em seco repetidas vezes, pigarrear, etc..

Muito importante neste contexto, é que as mulheres mentem, dissimulam e simulam melhor do que os homens, podendo fazer todos os gestos mão−ao−rosto com mais subtileza e com mais rapidez, pois a mulheres são melhores que os homens a ler a linguagem corporal. Ora, se a sabem «ler», sabem-na utilizar melhor como forma de comunicação interpares na mentira, na simulação, na dissimulação… E a razão é que elas, pela via da maternidade, são muito experimentadas em observar corporalmente as necessidades dos seus filhos em tenra idade. Como é sabido, um marido que traí a sua mulher é rapidamente apanhado por ela (pois o macho não sabe mentir e ela é «expert» a ler a linguagem corporal do marido) mas no caso contrário «o corno é sempre o último a saber»… pelas razões já apontadas.

Neste contexto de que falamos, o melhor mesmo é dizer sempre toda a verdade, a não ser que se seja um mentiroso profissional, o que acontece a políticos, a advogados, a atores de cinema, a publicitários e a vendedores.

 

Referências Bibliográficas

Birdwishtell, R. L. Kinetics and Context. Londres: Allen Lan, 1971

Feldman, S. Manneirisms of Speech and Gesture in Everyday  Life. International University Press, 1959

Patterson, J. The Day America Told the Thrued. Plume, 1992

Pease, A. e Pease, B. Linguagem Corporal. O Guia Definitivo para a Comunicação Não Verbal. Pergaminho, Março 2017. P 155