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Despedidas que jamais esquecerei, de José Poças

Autor: José M D Poças

Discurso proferido pelo autor no final da apresentação do livro “Despedidas que jamais esquecerei” em duas cerimónias, uma em Gaia e outra em Palmela em dezembro de 2023.

 

Neste livro que está hoje a ser aqui apresentado, escrevi num dos textos introdutórios:

Se, para os filhos, quase sempre, e, como me aconteceu, é verdadeiramente impossível dizer se gostam mais de qualquer um dos seus progenitores, tal como o inverso deve ser verdadeiro, logicamente quando existe mais do que um filho, e isso senti desde sempre, quer nessa qualidade, quer como irmão, pai ou avô, a ligação à mãe, tem algo de muito próprio que nenhum pai deve deixar de reconhecer intuitivamente sem ponta de ciúme, mas antes com a maior naturalidade possível.

Essa particularidade, advém do facto de ser sempre no interior do corpo das mães que os Seres Humanos são gerados, é do seu corpo que nascem, é do seu leite que brota do mesmo que são primeiramente alimentados, é das suas mãos que recebem os primeiros carinhos, é da sua voz embebecida que ouvem as primeiras palavras e é o seu odor que permanecerá na sua memória para sempre. Não ficando isso alguma vez registado conscientemente na memória de algum Ser Humano que tenha existido até hoje, estes factos interiorizam-se no inconsciente de todos, e, por isso, tais marcantes acontecimentos são decisivos para moldar esta relação de uma forma indelevelmente única para todo o sempre. Inúmeras vezes assisti a doentes, mesmo quando de provecta idade, por vezes obnubilados, a gritarem pela sua mãe em certos episódios de grande sofrimento e dor, não raramente numa repetição incessante. Jamais pelo seu pai”.

Da minha Mãe, herdei alguns traços de caracter, tais como a sensibilidade para com a criação artística, o gosto pela escrita, a queda para o improviso comunicacional, a generosidade para com o nosso semelhante. Do meu Pai, o sentido de família, o culto da amizade verdadeira, a coerência no raciocínio e a importância suprema dos valores civilizacionais. Não sei, sinceramente, qual deles terá sido mais importante. Possivelmente, todos em simultâneo, e, sobretudo, a sua mistura em proporções que desconheço e dependente das circunstâncias”.

Os meus livros são essencialmente a transcrição de um sentido acervo de emoções baseado em histórias verdadeiras e nas reflexões que estas me suscitam, embora, por vezes, apenas quando as recordo a propósito de algo que me interpela emotivamente a consciência. Confesso que tenho muito mais queda para contar as histórias reais, do que propriamente para criar cenários e enredos fictícios, na senda do que lapidarmente deixou dito o grande escritor lusófono, Mia Couto, que afirmou “a realidade é a mais ousada das ficções”. Por isso, como disse quando apresentei o último livro de um colega de profissão, Jorge Paulino Pereira, amigo de adolescência e escritor, que convidei para estar presente, texto que é o primeiro deste livro, jamais me verei a escrever romances como ele o faz, pois, considero-me, acima de tudo, como aí afirmo, “um simples pensador e um dedicado repórter do drama humano que rodeia a saúde e a doença”. ~

Por tal, ir-me-ei servir de mais umas quantas histórias para contextualizar adequadamente o futuro leitor e os presentes nesta cerimónia, permitindo que entendam melhor o autor, a sua criação literária e as respetivas motivações.

Começaria por dizer que este é, na sua génese, á semelhança dos dois livros que anteriormente escrevi, uma verdadeira improbabilidade, pois, nenhum deles foi preconcebido, mas antes fruto de circunstâncias furtuitas acerca das quais uma torrente incontrolada de energia anímica emergiu das minhas profundezas. O primeiro, seguiu-se a umas férias de sonho que passei com a Ana no paraíso idílico da Ilha de Príncipe no arquipélago de S. Tomé. O segundo, foi como que uma tábua de salvação para não sucumbir ao avassalador impacto da pandemia. Este, resultou de uma série de coincidências que tiveram como pano de fundo os últimos seis meses de vida da minha Mãe, onde a sua escrita me impediu de ter sido trucidado pela incerteza do momento em que iria efetivamente falecer, bem como pelo sofrimento que testemunhei que a acompanhou nesse longo calvário, onde, para além dos opiáceos, só a minha assídua presença, a intermitente visita de alguns familiares e amigos chegados, e, decisivamente importante, a competência e o humanismo de quem dela tratou e cuidou, impediu que isto se tivesse tornado em algo completamente insuportável. Para ambos. Pessoas que também convidei para estarem presentes, que ao verem-me a escrever dia atrás de dia e ao som de música, me perguntaram se não seria um livro sobre a minha Mãe, a que respondi, nessa altura, que não, pois tal consciência, só depois adquiriu forma.

Todos estes acontecimentos, a par do facto de ter generosamente oferecido o seu corpo ao teatro anatómico da Faculdade de Medicina onde eu e Ana estudámos e nos licenciámos, bem como de ter deixado escrito que não pretendia nenhuma cerimónia fúnebre presidida por alguma autoridade eclesiástica, fez com que organizasse a primeira cerimónia de apresentação em Gaia, de onde é a origem de ambos os ramos da minha família e onde se situam as caves de Vinho do Porto de uns primos direitos do meu pai. Também fiz com que coincidisse com a iniciativa de poder levá-la comigo, no intuito de ficar junto do meu pai, naquilo que vulgarmente é conhecido como “a nossa última morada”. No fundo, é uma forma algo alegoricamente inédita de fazer as suas exéquias. Na lápide que mandei fazer, coloquei a capa deste livro, tal como a do primeiro, pois a história do meu pai aí aparece, dado isso simbolizar que pretendo deixar gravada para memória futura este conjunto doloroso de recordações.

Passando agora às histórias, começaria por lembrar o meu avô Severo Martins, pai da minha mãe. Faleceu em sua casa com grande sofrimento, vítima de uma neoplasia da próstata, agonia que acompanhei à distância e com a consciência própria de um adolescente no final da primeira década da sua vida. Antes da doença que o vitimou, lembro-me de ter vindo ficar uns dias na casa dos meus pais, em Coina, para ir consultar um neurologista a Lisboa, no intuito de tentar aliviar a sua neuralgia pós-herpética consequente a um zóster do nervo trigémeo, dado que não encontrava alívio com o tratamento que recebera dos médicos que consultara no Porto.

Soube, recentemente, pelo meu primo / irmão João Nuno, que convidei, que depois disso, como a situação clínica não tivesse ficado resolvida, certamente na esperança de buscar algum alívio algures, foi ainda consultar um médico a Londres, embora nem assim se conseguisse ver livre daquele terrível mal. Lembro-me perfeitamente que exibia um fácies deformado como consequência das sequelas dessa infeção que tivera alguns anos antes. Bem como de ter sempre um semblante carregado, certamente revelador da dor permanente e muito incomodativa de que nunca mais se veria livre. Recordo-me, ainda, que não tinha dois dedos da mão esquerda, dado que tivera um acidente com uma arma de caça uns quantos anos antes de ter tido a zona, o que era sempre uma coisa que impressionava muito uma criança, ao ponto de ser a sua característica física de que me lembro desde que tenho consciência de existir.

Uma certa altura, penso que numa das festas de Natal na casa da Margarida, a sua filha mais velha, onde toda a família tinha o hábito de ir festejar esta quadra, virou-se para mim e surpreendeu-me de uma forma que jamais esquecerei, ao perguntar-me, não sei com que intuito ou por quê motivado, qual a razão de eu ter, segundo a sua avaliação, uma cara sempre tão triste. Não me recordo se lhe respondi, nem o quê, sendo possível que apenas o entreolhasse com um ar surpreendido, mas, dou comigo, volta e meia, a pensar neste episódio, concluindo, como muitas vezes me voltou a acontecer depois, que não raramente sou mal interpretado, pois a minha natural postura de relativa reserva ao primeiro contacto com alguém, leva os outros a tomarem-me pelo que vêm posteriormente a verificar que não sou na realidade.

Sem nunca o ter consciencializado, a não ser quando estava a começar de escrever este texto há uma quantas semanas atrás, talvez que, ter tido este contacto com o sofrimento do meu avô, tenha contribuído, de uma forma indireta, para ser a pessoa e o médico que sou, nunca indiferente a quem necessita de ajuda e de solidariedade, buscando incessantemente meios de o minorar, bem como em refletir acerca da capacidade de resposta dos serviços de saúde, tal como do próprio Sistema em si mesmo.

Foi certamente imbuído desse espírito, que decidi organizar há dois anos, uma Vigília Ecuménica a favor das vítimas da guerra da Ucrânia, tal o impacto que este acontecimento teve em mim, bem como de me ter espontaneamente disposto a receber uma família na minha casa durante quase meio ano, e, ainda, de doar cento e cinquenta livros, cuja venda reverteria integralmente para ajudar os refugiados, como contei no Discurso que aí proferi e que integra este livro. Postura que mereceu todo o apoio incondicional da Ana. A família Rodzeri, que convidei a aqui vir e de quem me tornei amigo para o resto da minha vida, faz parte do conjunto de pessoas a quem o dedico.

Mais recentemente, aquando de um encontro propiciado pela iniciativa de um amigo / irmão, o Artur Esteves, que também foi convidado, voltei ao contacto telefónico com um amigo comum, o João, ao fim de quase quatro décadas de interregno, e, de ter ficado a saber, no dia seguinte, que passara parte dessa madrugada num bunker, dado o soez ataque de que alguns compatriotas da sua esposa e filhas, coincidentemente de passagem por Portugal nesse dia, foram vítimas em Israel, onde vivem nas imediações da cidade capital, há alguns anos. Comecei imediatamente a escrever um texto na minha cabeça, passado ao papel alguns dias depois e transformado numa carta aberta ao Primeiro-Ministro do meu País, que publiquei, pois, foi a forma que encontrei de expelir a minha revolta pelo facto de ter assistido, à distância, a mais um ato inqualificavelmente bárbaro entre povos vizinhos e irmãos, tal como da reação a que todo o Mundo passou a assistir depois, atónito, penso eu. Como disse nesse texto, escrito enraivecido de rajada, embora me considere ateu, mas nunca negando, porém, a minha matriz educacional cristã, considerei, e, considero ainda, que um dos dois contentores, para sair vitorioso deste interminável conflito, perante a Humanidade, terá que abdicar de responder, oferecendo a outra face, como na lenda bíblica se diz que Jesus Cristo terá feito perante os seus algozes.

É que, enquanto à violência se responder com violência, ou se pensar que é possível exterminar por completo uma etnia, um povo, uma religião, ou um grupo político, usando essa mesma tática, nunca mais será possível implementar a PAZ em qualquer País.

Para quem pensa que isto é uma mera e inconsequente tontaria lírica apenas, aconselho que a que leiam as declarações de um jovem israelita que perdeu os seus pais nesse ataque, onde o mesmo declarou, em entrevista recente ao jornal O Público, que a melhor forma de se homenagear a memória desses seus entes queridos, seria suspenderem o processo de invasão a Gaza. Vem, a propósito, neste momento, evocar a escritora norte-americana e Prémio Nobel da Literatura, Toni Morrison, que um dia deixou escrito “nós morremos. Esse pode ser o sentido da vida. Mas nós fazemos a linguagem. Essa pode ser a medida das nossas vidas” (sic).

Só alguns anos depois do falecimento desse meu avô fiquei a saber, sobretudo pela minha mãe, que afinal o seu pai fazia jus ao nome Severo. Se, na aparência era uma pessoa reservada e meio austera, até tendo sido capaz, contudo, de deixar um livro de poemas a todos os seus netos, onde se perscruta ser possuidor de alguma sensibilidade humana, antes de ser acometido pelas doenças que o afetaram na segunda metade da sua vida, tinha uma outra faceta da sua personalidade que não tinha qualquer relação com as causas do grande sofrimento que o acompanhou, sobretudo na última década, e que ficou conhecida entre a família como o “mau génio dos Quinteiros”, como tive a oportunidade de esclarecer o meu saudoso primo Fernando Martins, minha alma gémea neste mundo, quando tal me perguntou, estava eu a chegar pela primeira vez a Terras de Vera Cruz havia escassos instantes apenas. Razão invocada pelo meu pai para me ter registado com o nome de família da sua mãe, Poças, como se isso fosse um obstáculo intransponível a tal “pérfida” herança.

Quando ouço outras pessoas dizerem-me, com alguma frequência, para não me enervar tanto, explico sempre que isso é uma mera questão de linguística apenas. A realidade, esclareço de imediato, é que há que saber distinguir entre nervosismo e exaltação ou revolta. A que acrescento de imediato: nervoso, nunca; exaltado e revoltado, infelizmente, muitas vezes.

Contra as injustiças. Contra as meias verdades. Contra a inoperabilidade dos obsoletos meios informáticos que nos impingem no local de trabalho e sem os quais até parece que já não somos médicos, nem estamos autorizados a exercer clínica. Contra as dificuldades quase inultrapassáveis para nos disponibilizarem os meios necessários para o melhor tratamento dos nossos doentes. Contra a obscena burocracia supérflua que nos faz perder diariamente muito tempo e imensa paciência. Contra as hierarquias que não respeitam os profissionais e os doentes. Contra a destruição inapelável, mas nunca explicitamente assumida, do SNS, levada a cabo por sucessivos governos ao longo de várias décadas.

Daí que, espontaneamente, eleve de imediato uns bons decibéis no meu discurso. Por isso tenho escrito tantas cartas abertas aos Ministros e às Administrações, tal como penso publicar um novo livro para o próximo ano, alusivo a esta temática, e, exibo, nessas alturas, um semblante bem carregado, talvez como o desse meu avô. Concluindo: até prece que, afinal, algo do alegado “mau génio dos Quinteiros” me foi transmitido, embora, certamente, não pelo nome ou pelo escasso convívio que tive, como o meu pai temera…!!!

A minha Mãe sempre teve uma veia artística muito marcada. Cantava fado de uma forma que a confundiam frequentemente com a sua diva Amália Rodrigues dos tempos áureos, representava num grupo de teatro amador com invulgar desenvoltura, desempenhando sempre os papéis principais, e, recitava ainda poemas com uma entoação invejável, ao ponto de um empresário da capital do reino ter-se dirigido propositadamente ao seu pai, para que este autorizasse a sua ida para os palcos dos teatros de Lisboa. Também tentou aprender piano, seu instrumento favorito, mas, de tudo foi proibida pelo seu progenitor. O mesmo que, apreciando música, pedia aos outros para lhe irem dizer para cantar no andar de cima da sua grande casa de lavoura, contudo, sem estarem autorizados a revelarem que fora sua a iniciativa, no intuito de ele ficar a deliciar-se no seu escritório situado no r/c. Ao passo que, se ela o fizesse distraidamente de moto próprio à sua frente e sem ser a seu pedido, imediatamente era reprimida, quando não esbofeteada.

Não assistiu à cerimónia do seu casamento, porque o pai do meu pai era seu sobrinho e ele tinha a mania que alguns dos seus filhos, que não a minha Mãe, não eram seus, sendo um deles do meu avô José Martins com a minha avó Lucinda Guerra, sua esposa, o que estava longe de ser verdade, pois que, quem deixou, ao que se saiba, alguns filhos de várias empregadas domésticas da sua irmã mais velha, Ana Martins de seu nome, uma das minhas bisavós paternas, e mãe do meu outro avô, que ainda conheci, foi ele. Era possuidor, pois, de um ciúme doentio e muito castrador, que felizmente não herdei.

Por tudo isto, concebi as duas cerimónias desta forma, uma vez que os seus filhos e netos, de alguma forma, vingaram essa enorme frustração, só atenuada, não só pela harmonia da família e dos amigos, mas também pela sua grande capacidade de abnegação. O meu irmão Jorge, seguiu a via do ensino musical, sendo diplomado no conservatório em guitarra clássica, tendo-nos brindado na primeira com sentido concerto. E, eu, virei tardiamente um escritor e um catalisador cultural. Isto, para além de ambos também termos participado, na adolescência, numa “tosca” companhia familiar de teatro que representava na época estival peças sem qualquer guião escrito e de temática revolucionária, sendo nosso ensaiador o nosso primo-irmão João Nuno.

Este, estava nessa época a frequentar a Universidade de Coimbra em plena crise estudantil dos finais dos anos 60 e início da década de 70, cidade onde integrava uma companhia universitária de teatro amador, o CITAC, e habitava numa República de estudantes gerida pela minha tia Maria Lucinda, sua mãe. Casa que visitávamos sempre à ida e à vinda das diversas viagens que anualmente fazíamos de Coina para o Porto, e vice-versa, e que era, nessa época de intolerância, malvista pela polícia política do regime ditatorial, ao ponto de o meu primo, tal como o nosso avô Severo e a sua filha Olívia Guerra, minha tia, terem tido curtas passagens pelos seus calabouços.

Sei o quanto a minha mãe apreciava com incontido orgulho as peças de teatro em que os meus filhos Joana e João, participaram na sua adolescência, uma delas que resultou de uma adaptação de um texto escrito por um doente meu já falecido, ou, mais recentemente, nas que a Joana ensaia com os seus filhos, Simão e Alice, meus netos, na noite de Natal, a que sempre assistiu com incontida, mas discreta felicidade estampada no seu rosto, até há dois anos atrás. Certamente que conjeturaria, no seu íntimo, como teria sido a sua vida se, acaso, tivesse vindo para a ribalta artística da capital…!!!???

Mais alguns esclarecimentos se impõem que sejam dados a esta plateia de ouvintes, tal como aos leitores, no sentido de melhor entenderem o título do livro. Qualquer despedida implica um sentimento de perda, de onde frequentemente emerge uma nostálgica saudade. Intuo que não serei exceção a esta regra. Não obstante, as que farei proximamente foram conscientemente assumidas, não tendo retrocesso algum possível. Depois da despedida da minha mãe, que culmina com as duas cerimónias de apresentação deste livro, farei proximamente a despedida definitiva dos meus doentes do CHS, hospital onde trabalho há mais de 40 anos, com exceção do triénio em que frequentei estágios do internato complementar de especialidade em diversos hospitais de Lisboa. Mesmo que estivesse muito realizado e satisfeito, seria algo que me sentia impelido a fazer, pois pretendo dedicar-me a outros projetos e a ter uma vida que não me obrigue a ter de trabalhar muito mais do que 12h por dia, incluindo fins-de-semana, como a Ana é disso soberana testemunha.

Em parte, para satisfazer uma espartana rotina implementada pelas sucessivas hierarquias desprovidas de sentido humanístico algum, segundo as quais só conta o que fazemos pontualmente a menos, mas quase nunca o que fazemos tantas e tantas vezes a mais.

Como escrevi num artigo que publiquei e que integra este livro “… pretendo ainda dedicar-me a outros projetos … onde destaco a vontade de escrever alguns livros que vou acumulando na minha cabeça sem os poder passar ao papel, porque outras tarefas supostamente mais “urgentes” se vão incessantemente sobrepondo; aprofundar alguma investigação em aspetos da História, da Medicina e não só, que me interpelam desde há muito e ainda não devidamente explorados por outrem; ousar pretender erigir dois Museus a eles alusivos; exercer a minha atividade privada numa pequena clínica da cidade sem ter de ser ao final de um dia de trabalho extenuante; ter mais tempo para dormir, para descansar, para desfrutar da companhia dos amigos e dos familiares, para viajar, para ler, para ir mais vezes ao cinema, ao teatro, a concertos e a exposições; para retomar a prática de algum exercício físico que não o de estar amarrado imensas horas a fio à secretária, um dia atrás de outro; tal como a acompanhar mais de perto o crescimento dos meus netos e a vida dos meus filhos, que já estiveram ambos a viver no estrangeiro, é algo que sinto que, ou o faço agora e na companhia da Ana, também médica e em idênticas circunstâncias às minhas, ou isso jamais se tonará possível”.

Daí, interrogar-me cada vez com maior frequência: será que ainda haverá quem tenha a coragem de condenar, por analogia, um comandante de um navio que, após ter salvado todos os membros da sua embarcação e a respetiva carga que lhe foi possível, no último momento, não o possa fazer à sua própria pessoa também, pergunto? É por isso que muitas vezes acrescento, com um sentimento misto de perplexidade e de revolta: o suor, deixo todos os dias no meu local de trabalho; o sangue, até já deixei, pois, numa certa madrugada em que chefiava o SUG no HSB, há cerca de 30 anos, eu e toda a equipa médica demos sangue para permitir que um doente fosse operado na manhã seguinte e se salvasse, como veio, de facto, a acontecer. Mas, os meus ossos, eu vou deixá-los onde muito bem me apetecer… Será isto fruto de um condenável egoísmo, ou, antes, algo que deve ser entendido como perfeitamente natural pelos outros, pergunto de novo?”.

Como escrevi recentemente em duas cartas dirigidas, primeiramente, ao Ministros da Saúde (que lhe entreguei em mão pouco tempo depois), e, a outra, ao Primeiro-Ministro, a que já aludi, e tal como disse na Conferência acerca da “Viabilidade do SNS” que fui proibido de fazer no Hospital onde trabalho, mas que a acabei fazendo antes na Faculdade de Economia, a convite do Professor Pita Barros, existem dois pilares de relacionamento humano transversais a todos os tipos de atividade que foram sendo postos em causa de forma cinicamente irreversível, sem os quais não haverá médicos suficientes (e outros profissionais) que aí queiram trabalhar com gosto: o respeito e a confiança.

A consequência daquilo que se vai constatando, é a de que os doentes serão cada vez mais encarados como uma fonte de subsistência dos médicos e a transmissão dos saberes e da experiência às novas gerações, secundarizada perante outras supostas prioridades da vida de cada um, ou seja, não como uma das maiores e intemporais missões do Médico, mas antes como uma ajuda à formação dos nossos hipotéticos “concorrentes” de amanhã!!!

Por este facto apresentei o meu pedido de demissão das funções da Direção do Serviço que dirigi até há dias no CHS. Não só para salvaguardar a minha dignidade, mas também a da Ana, a segunda pessoa a quem dedico este livro, por partilhar comigo a mesma ética na praxis clínica, por respeitar os mesmos ditames da deontologia profissional que nos foram incrustados pela educação que ambos tivemos, tal como durante os estudos universitários, onde isso era uma prioridade assumida que descobrimos em conjunto. E, finalmente, ainda, por ter sido antes também desconsiderada ao limite do absurdo pelo mesmo Presidente do CA que me provocou esta tomada de posição.

Devido a tudo isto se poderá depreender que, se não está em causa o timing desta despedida, a forma como ela foi levada a cabo, tal como o enorme sentimento de frustração que se apoderou de mim, é que é completamente diferente, não tendo sequer sido imaginado, e, muito menos, desejado. É que quem assim age, revela desconhecer a verdadeira essência do denominado “Poder Médico”, uma vez que este não deriva de qualquer status social exorbitado e desconforme, mas antes do reconhecimento espontâneo e genuíno dos doentes por aquilo que lhes fazemos quando lhes minoramos o sofrimento, lhes atenuamos a dependência, lhes ouvimos os desabafos e lhes fazemos sentir a nossa compaixão, tal como da cumplicidade dos colaboradores que connosco formam a denominada “equipa terapêutica”.

As outras “despedidas”, aqui definidas de forma alegórica, não posso garantir de todo que o sejam ou antecipar como e quando eventualmente ocorrerão, como explico em diversos textos. Como será feita, futuramente, a candente simbiose entre a tecnologia e o humanismo? Como irá ser a prática da Medicina Clínica na era da Inteligência Artificial? Irão continuar a ser respeitados os valores fundacionais da nossa civilização e da profissão médica? A quantas guerras fratricidas ainda iremos assistir e com que consequências? Estas e outras angustiantes dúvidas são objeto de reflexão, na convicção de que este livro é um contributo que espero seja reconhecido como genuíno, oportuno e frontal, feito por alguém que se preocupa, não só em criticar, mas também em dar o exemplo de entrega incondicional às boas causas, cultivando desinteressadamente um notável acervo intemporal de valores que lhe foram sendo transmitidos e que se preocupa também em transmitir, o que jamais deveria ser questionado por alguém ou por qualquer governo ou organização.

Chegou a altura de deixar umas quantas mensagens genéricas de agradecimento, tal como digo no livro, em especial a quem colaborou na organização das duas cerimónias de apresentação e a quem foi determinante na concretização deste projeto editorial. Correndo o risco de ser eventualmente injusto por não referir explicitamente algumas das muitas pessoas disso merecedoras, como realço ao longo do livro, não poderia deixar de referir algumas de uma forma personalizada.

Primeiramente, os meus doentes, alguns deles aqui presentes. Reafirmar-lhes que o que estou a fazer não foi para os prejudicar, pois estou certo que continuarão a ser muito bem seguidos pela minha colega Evelise Ramos, que também convidei a aqui estar presente. Espero que compreendam que, depois do que aqui expliquei e do que ficou escrito no livro, seria fundamental sair agora para me salvar enquanto pessoa. Levo-vos no coração a todos e espero que continuem a viver, por muitos anos, o melhor possível, para o que, como vos dizia em cada consulta, será fundamental saberem ser vocês mesmos, os primeiros a cuidarem da vossa própria saúde.

Aos meus colaboradores do Serviço de Infeciologia, desejar que a liderança recentemente designada, que recaiu sobre o colega Nuno Luís, que igualmente convidei, saiba congregar de forma consensual e determinada todas as vontades, necessariamente através de uma voz própria, de forma a conseguir dar seguimento ao que eu iniciei e protagonizei até agora, possibilitando a continuação de padrões de qualidade no desempenho das obrigações assistenciais, na formação de novas gerações de especialistas e no desenvolvimento de novos projetos de diferenciação que, estando pensados há muito, nunca tiveram condições para serem iniciados.

A todos os que se ocuparam em cuidar da minha mãe durante os mais de cinco anos que viveu na delegação de Setúbal da Casa dos Professores, sobretudo nos últimos 6 meses e, em especial, à Leonor Machado, que também convidei expressamente, pessoa que a minha mãe adotou como uma verdadeira filha, tal a mútua cumplicidade afetiva que souberam edificar.

Aos membros das Mesas de ambas as cerimónias, Castro Ribeiro, Carlos Cortes, Mário Moura, Kamal Mansinho, Susana Magalhães, Ramalho de Almeida, Eugénio Fonseca e António Domingos, tal como aos músicos Jorge Poças, meu querido irmão, e Helena Madeira, pela importância decisiva da vossa presença.

À ByTheBook, na pessoa da Ana Albuquerque, pela competência e cumplicidade neste projeto editorial, bem como no que se perspetiva em termos de colaboração futura daqui em diante.

Às firmas Poças Júnior e Ermelinda de Freitas por terem sido uns anfitriões sem par. Em especial, ao meu querido primo Manuel Pintão, pela sua adesão fraterna a esta iniciativa, e, à Leonor Campos (e restante família), por ser(em) de uma simpatia única e por ter(em) aderido quase sem reservas a uma proposta que fiz de passar(em) a ter uma atividade regular de mecenato cultural que auguro poder ter, se vier a ser concretizada, como espero, um impacto muito positivo, não só na Sociedade em geral e na Região, mas igualmente para a firma que dirige(em) com invulgar capacidade de iniciativa.

Finalmente, à Ana, minha esposa e colega, por Tudo. Sem a sua companhia e compreensão de quase meio século, eu não seria o que sou, não faria o que tenho feito, e não teria força anímica para as iniciativas que pretendo ainda vir a desenvolver. Aos meus filhos e netos, porque estou certo que saberão transportar estes valores aqui expressos aos vindouros, dado serem a melhor herança que nós lhes deixamos.

 

Post Scriptum: Este discurso era suposto acabar aqui, mas não… É o risco de o ter escrito com muita antecedência e da minha vida estar sempre eivada de peripécias imprevistas e de coincidências inexplicáveis. Creiam que quando escrevi o que acima vos li e falei do meu avô Severo, não sabia o que me viria a acontecer. Sempre pensei, disse e escrevi, que, a dúvida, por vezes, é mais angustiante do que uma (má) certeza. Não é pelo que vos irei contar de seguida que mudei de opinião.

O meu avô José Martins teve uma neoplasia do colon. A minha mãe, uma da mama. O meu pai, uma do pulmão. Curiosamente, ou talvez não, quando, como internista, me comecei a diferenciar nalguma das suas subespecialidades, a primeira foi a Oncologia, onde trabalhei dois anos e frequentei um Curso avançado de formação pós-graduada que me poderia ter dado acesso, nessa altura, a ter ficado com o título de oncologista. Depois, o mesmo aconteceu com os Cuidados intensivos, onde trabalhei três anos. Por fim, acabei dedicando-me à Infeciologia, arrebatado por uma nova doença, a infeção VIH, que partilhava com a oncologia o facto de ser de natureza crónica e de propiciar ter de lutar contra o seu caracter estigmatizante. Tal como com o intensivismo, onde muitos doentes iam parar às UCIs, quando a sensibilidade do residente o permitia, por representar a possibilidade de interferir positivamente perante uma ameaça séria à vida. Todas as três, tal como a Medicina Interna, ela própria, necessitam de ter os seus quadros médicos sensíveis a todos os aspetos que concernem à decisiva importância do relacionamento humano.

Tenho tido, ao longo da minha vida, a oportunidade de tratar muitos colegas, sem nunca abdicar de respeitar estes intemporais ditames. Quando com eles converso, digo sempre que, tendo sido sempre saudável, é natural que um dia me aconteça ter de estar do outro lado. Noção de elementar bom senso e realismo que é bom que ninguém a perca.

Quis, assim, o acaso, que tenha tido necessidade de recorrer recentemente, aos cuidados clínicos de um colega, perante quem me coloquei na posição de doente e que me aconselhou fazer uma RMN, para esclarecer umas dúvidas relativas aos resultados analíticos e à ecografia que realizara, efetuada pelo meu colega e amigo Daniel Batista, aqui presente, e que, por coincidência, passara por idêntica situação há escassos meses apenas.

Fi-los nas vésperas de ir de férias em novembro último, tendo os resultados aconselhado a realização de uma biópsia dirigida, que ficou aprazada para quando voltasse ao serviço, ou seja, há pouco mais de duas semanas atrás, conforme tive a oportunidade de antecipar que me iria ser proposto, perante um colega e doente, Nelson Duarte, também aqui presente, quando o consultava poucos instantes depois de ter acabado de ler o relatório da RMN que me tinha sido remetido por mail. Colega que também passou, mas há uns quantos anos, pela mesma experiência.

Tentei encarar a situação com a maior tranquilidade possível, sem nunca ceder à ameaçadora e destrutiva desesperança, lembrando-me sempre daquilo que tenho dito aos imensos doentes que tenho tido por incumbência tratar ao logo das mais de quatro décadas.

Quis de novo o acaso, quero crer, que tenha recebido o resultado através de contacto telefónico de um colega de curso, que me havia efetuado a dita biópsia, no primeiro dia em que não teria de ir ao Hospital, após ter sido oficialmente aposentado uma semana antes, estava eu a escrever a informação curricular do meu sucessor a seu pedido e com todos os elementos da Unidade de Ambulatório à minha espera para celebrar antecipadamente a ceia de Natal, o que para todos simbolizava a minha despedida efetiva do Serviço.

No improviso que fiz, no final, disse que tinha de me ausentar por motivos pessoais urgentes, pois antes de ir para o consultório, sem adiantar mais pormenores, tinha ficado de acompanhar a minha grande amiga, Helena Costa, na cerimónia de entrega das cinzas do seu esposo, Jacinto Costa, ao mar, falecido exatamente um ano antes. Casal que faz parte do rol daqueles a quem faço sentida dedicatória neste livro. Terminei, depois de ter comido algo apressadamente, explicando que esse era um dos dias mais importantes da minha vida, mas que só aquando desta cerimónia revelaria a verdadeira razão. Apenas esclareci que não tinha nada a ver com o que ali celebrávamos em são convívio, que fiz questão de desejar que se mantivesse sempre com idêntica alegria.

Para minha sorte e tranquilidade, extensiva a quem aqui me está a ouvir, o resultado não revelou nenhuma doença da mesma natureza que vitimou quatro dos meus familiares já referidos, ao contrário do que tinha acontecido como meu primo / irmão e colega, António Guerra, há alguns anos atrás.

Confesso que sou hoje uma pessoa ainda mais consciente da importância do valor da Humanização dos cuidados médicos. Não soçobrei, como poderia ter acontecido, porque tenho estes valores bem interiorizados, como atrás destaquei, mas igualmente, porque nunca estive sozinho, pois sempre tive por perto e no pensamento a solidariedade e o amor da Ana e dos meus filhos, tal como o dos meus amigos / irmãos, Fátima Bacellar e Artur Esteves, com quem celebrei a boa nova nesse mesmo dia ao jantar, sem esquecer, como é óbvio, os meus colegas Amaral Canelas e José Venâncio.

As dúvidas que me assaltam, são estas: Como seria se não o resultado fosse outro ou os não tivesse ao meu lado? Como será da próxima vez, se tal vier a acontecer?

A terminar, dizer-vos que há uma última coincidência que não poderia, jamais, omitir. É que hoje é o dia do aniversário de um amigo e doente, Jorge Santana da Silva, que teve a última consulta comigo há uma semana, e que é o protagonista deste livro, tal como o seu irmão o foi do anterior. Com eles aprendi o que é resistir a algo que nos ameaça de morte. Terei dado, contudo, come é suposto acontecer sempre, algum contributo para isso. Um, não resistiu, o Fernando. O outro, o Jorge, continua a viver a vida com a intensidade de um adolescente. O que ajuda, e muito, ao prognóstico de qualquer doença, como deveria ser mais interiorizado, quer por médicos, quer pelos doentes.

O impacto destas duas cerimónias são, assim, como se pode constatar, proporcionais, tando ao meu empenhamento na Medicina Clínica e na Ética, como à retribuição que recebi de TODOS VÓS. Por tal, brindemos dqui a pouco todos à Vida e à Fraternidade, tal como a minha filha Joana nos motivou a celebrar os meus 65 anos de idade, uma semana depois do falecimento da minha mãe, na qual homenageou comoventemente a sua avó, porque essa foi a melhor forma de nos despedirmos dela. A mim, coube-me, aqui e agora, resgatar a sua memória.

Obrigado por me escutarem. Abraço-vos a TODOS com as minhas reflexões, as minhas memórias e as minhas palavras. Bem-hajam.

 

Gaia, 2023/12/15 e Palmela, 2023/12/22

José MD Poças