Autor: Ana Cláudia Paiva, médica interna de Medicina Geral e Familiar na USF São João de Sobrado (ACeS Maia/Valongo)
De repente o mundo parou. A população fechou-se em casa (uma grande parte, felizmente!) e foi recomendado que as saídas desnecessárias diminuíssem. Diminuíram as saídas para ir ao quiosque e também as idas ao Serviço de Urgência, assim como a procura pela tão requerida consulta aberta dos Centros de Saúde (apesar do viés, conclua-se o que é sugerido!). É a partir deste decréscimo da procura de assistência médica que se desenrolam as ideias seguintes.
Até então, o recurso ao apoio médico de urgência, quer em meio hospitalar, quer nos Cuidados de Saúde Primários, era frequentemente designado como “demasiado”, “absurdo”, que “excede a capacidade de resposta”, e, numa grande percentagem de casos, sem motivo que o justificasse. Contrariamente a esses tempos, hoje vive-se algo diferente: diminuiu a procura.
Claro está, e desde cedo se percebe, que o medo tem impedido muitas vezes os doentes e familiares de recorrerem aos serviços quando necessário, com receio de contraírem a temida infeção por COVID-19. Este é um problema grave que merece preocupação de todos.
No entanto, deve ser avaliado o reverso da medalha: as dezenas (para não dizer centenas, quando referentes a hospitais centrais) de pessoas que procuram apoio médico urgente, sem indicação para tal, por vezes por comodidade, outras por ausência de educação para a saúde, também participaram ativamente (maioritariamente, queremos acreditar!) na descida da taxa de procura por cuidados urgentes. Esta relação de causa-efeito leva, obrigatoriamente, à questão: os nossos serviços de urgência estão sobrecarregados devido à falta de capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde ou devido à falta de capacidade da população em reconhecer os motivos urgentes dos não urgentes? Nenhum dos sujeitos da pergunta é completamente inocente. Contudo, o tempo público despendido na sua análise não pode ser equiparado. Enquanto o primeiro tem vindo a ser alvo de discussões, propostas de melhoria e alterações organizacionais, o segundo mantém-se ileso, sem ser referido mesmo quando a comunicação social divulga o tempo de espera por serviço de urgência e a vergonha que isso traz ao país.
Estamos perante uma janela de oportunidade, incomparável a qualquer momento vivido na história, para alterar hábitos e enraizar comportamentos. Tal se comprova se se der a devida atenção ao que está a acontecer: neste momento, o recurso à linha SNS 24 como primeira atitude é algo adquirido, aumentou exponencialmente e até fez com que fosse necessário aumentar a sua capacidade de resposta. Porém, em tempos não pandémicos, esta ferramenta já existia e a luta para que fosse realizado um contacto telefónico como primeira atitude era uma realidade.
Em relação à diminuição da procura dos serviços urgentes, devem ser tomadas medidas, passando pela promoção da educação para a saúde junto da população, trabalho esse destinado sobretudo à nossa especialidade, Medicina Geral e Familiar, com reforço dos sinais de alarme que devem motivar avaliação urgente hospitalar e os meios de apoio disponíveis para esclarecimento de dúvidas como a já referida linha SNS24 ou ainda o recurso ao Serviço de Atendimento a Situações de Urgência (SASU), como primeira atitude. Concomitantemente, torna-se importante o desenvolvimento de medidas governamentais tais como o ajuste do valor a cobrar das taxas moderadoras, idealmente adaptado aos rendimentos individuais de cada família, salvaguardando a acessibilidade mas aumentando, simultaneamente, a capacidade de ponderação dos utentes na hora de recorrer a cuidados urgentes hospitalares.
Há que aproveitar o aspeto mais positivo (talvez o único) que esta crise trouxe à saúde nacional, que atravessa a maior jornada da sua existência, promovendo a continuidade destes comportamentos e a introdução de novos hábitos.