Esta reflexão surge a propósito de um estágio curto numa Unidade de Cuidados Paliativos (UCP).
Os Cuidados Paliativos (CP) são cuidados especializados, capazes de proporcionar qualidade de vida, controlar os sintomas, fornecer autonomia ao doente, comunicação e continuidade de cuidados multidisciplinares integrados. As acções paliativas devem integrar a prática profissional, qualquer que seja a doença ou a fase da sua evolução. Podem ser prestadas tanto no âmbito da Rede Hospitalar, como ao nível dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), na Rede de Cuidados Continuados (RCC), sendo desejável que os doentes possam beneficiar de todas as vertentes, mediante a sua situação.
Atualmente o nosso país é constituído por uma população extremamente envelhecida, o que se traduz no aumento da prevalência de doenças crónicas e progressivas, como as neoplasias, as insuficiências orgânicas e as doenças neurológicas progressivas, associadas a um elevado grau de dependência e de sofrimento. No próximo biénio, é expectável que 75.614 a 89.861 portugueses apresentem necessidades paliativas[1].
O Plano Estratégico para o desenvolvimento dos CP, foi implementado no sentido de promover o acesso a cuidados de qualidade a todas as pessoas portadoras de doença grave ou incurável, em fase avançada ou progressiva. Apesar de ser internacionalmente reconhecido que, quando aplicados precocemente, os CP trazem benefícios para os doentes e suas famílias, diminuindo a carga sintomática e a sobrecarga dos familiares/cuidadores, há ainda uma grande percentagem de doentes que não beneficia destes cuidados. E são várias as razões pelas quais isto ocorre.
No âmbito dos CP, o número de serviços disponíveis é deveras insuficiente, nomeadamente a quantidade de vagas existentes em unidades de internamento e as valências de proximidade, como as Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos (ECSCP). Agravando este facto, assiste-se a discrepâncias geográficas na acessibilidade. O centro de acolhimento “O Poverello” é a única unidade destinada à prestação de CP no distrito de Braga e dispõe de apenas 10 vagas para tratamento de doentes em regime de internamento. Surpreendentemente, apesar da elevada necessidade, da escassez de vagas e da inexistência de ECSCP, constatámos com frequência, a presença de camas livres para internamento. Este facto foi alvo de reflexão e de várias discussões com a equipa prestadora de CP em que estávamos incluídas, permitindo chegar a algumas conclusões.
Por um lado, existe ainda um profundo desconhecimento da população em relação a esta tipologia de cuidados, sobretudo demonstrando alguma confusão terminológica no sentido de serem considerados cuidados puramente terminais. E por outro porque é ainda notória a tradição portuguesa de apoio familiar nas doenças avançadas e fim de vida.
Constata-se também a ausência de formação específica nesta área por parte dos profissionais de saúde. Os serviços de saúde permanecem demasiado focados na vertente curativa, priorizando a vida, em detrimento da necessidade de paliação[2]. Por tudo isto, as referenciações são frequentemente tardias e provenientes maioritariamente dos Cuidados de Saúde Secundários (CSS), numa fase avançada de doença e próximo dos últimos dias de vida, impossibilitando muitas vezes que a equipa conheça o doente e a família, faça a gestão das expectativas e prepare o processo de luto. Lamentavelmente, não raros são os casos em que os doentes aguardam integração num serviço de CP, acabando por falecer no domicílio ou numa cama hospitalar, sem qualquer dignidade.
A somar a tudo isto, existe um excesso de burocracia no processo de referenciação, sendo os tempos de referenciação frequentemente morosos e incompatíveis com as necessidades dos doentes. Este último aspeto reforça novamente a necessidade de introduzir esta tipologia de cuidados em todos os níveis de cuidados de saúde, incluindo os serviços de urgência e os CSP.
Existe um benefício notável na proximidade entre os CP e os CSP. Neste sentido, entendemos que é da maior importância a promoção da formação pós-graduada dos médicos de família para que identifiquem precocemente os doentes com necessidades paliativas, apliquem uma abordagem paliativa adequada às necessidades dos doentes e famílias e referenciem para as equipas especializadas os casos de maior complexidade clínica. Existem instrumentos muito úteis para identificação precoce de doentes com necessidades paliativas (ex.: Gold Standards Framework, NECPAL, SPICT ou outros) e com versões validadas para a população portuguesa, que nos podem auxiliar neste sentido.
O médico de família poderá também exercer um papel importante na desmistificação da conotação negativa frequentemente associada a este tipo de cuidados pelos doentes, reforçando que o tratamento dirigido à doença e os CP não são mutuamente exclusivos, mas antes cooperantes, beneficiando o doente da experiência compartilhada durante o curso da doença.
Sendo os CP um direito de todos os cidadãos, é da maior importância que se planifiquem estratégias e se ajustem os recursos para responder de forma mais integrada e célere às necessidades holísticas dos doentes e suas famílias, numa visão descentralizada dos hospitais, e mais próxima, como o são os CSP.
[1] Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos para o biénio 2019-2020
[2] Gonçalves J. Controlo de sintomas no cancro avançado. 2ª ed. Lisboa: Coisas de Ler; 2011.