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Cuidados Paliativos – inevitavelmente enfrentaremos o fim de vida

Autora: Luciana Frade, 5º ano de formação específica em Medicina Interna – Hospital São Francisco Xavier, CHLO E.P.E.;Mestranda de Cuidados Paliativos 2018-2020 – Universidade Católica Portuguesa – Lisboa

A formação em Cuidados Paliativos (CP) (pré e pós-graduada) não é ainda obrigatória em todas as instituições de ensino médico. Tal facto constitui o aceitar e assumir que todo aquele/a que não optar por essa via terá inevitavelmente uma lacuna de conhecimentos, muito importante em todas as especialidades médicas e vital naquelas que lidam diretamente com doenças crónicas e o fim de vida. Este artigo, traduz a angústia gerada pela realidade, aos olhos de uma interna e Mestranda de CP (sensibilizada e dedicada ao doente paliativo e terminal) face à realidade observada em matéria de ensino sobre cuidados paliativos.

 

O ciclo normal da vida Humana flui inevitavelmente por uma sequência que se inicia à data do nascimento, prossegue com o crescimento e culmina novamente numa fase de maior fragilidade/debilidade, como é o caso da doença avançada ou do envelhecimento que antecede a morte. A formação médica nos nossos dias inclui e engloba o estudo aprofundado de todos os órgãos e sistemas atribuindo-lhes igual importância, engloba a aprendizagem exaustiva do nascer e das fases inicias da vida, da evolução e abordagem da fase adulta, do doente agudo. Inexplicavelmente a reta final (quer pela idade, quer por causa evolutiva e incurável) que integra o mesmo percurso biológico, não tem idêntico peso na hora de formar e preparar clínicos jovens e maioritariamente inexperientes para a abordar. Sinto-o quase como uma estrada que termina num abismo, desde onde vemos que ainda existe outra margem para percorrer, mas não temos como lá chegar. Não obstante de ser bem conhecido o sofrimento que o fim de vida e o período que antecede a terminalidade pode acarretar se não for devidamente acompanhado, não apenas para o doente mas também para a família, a abordagem a esta fase inelutável continua a ser um input de conhecimentos opcional num conjunto de informação científica que se impõe obrigatória para obtenção do grau académico em causa.

A população mundial está a envelhecer, sendo previsível que aumente a prevalência de doenças crónicas e não transmissíveis segundo o Atlas of Palliative Care da European Association of Palliative Care.1 Nestas populações é estimado que incremente o número de pessoas com necessidades paliativas. Os cuidados paliativos abordam toda a condição que se preveja grave, ameaçadora da vida e/ou crónica, degenerativa, irreversível, incurável. Isso não implica necessariamente que ocorra falência de um órgão ou sistema específico para justificar a sua intervenção.  A fragilidade inerente ao envelhecimento, por si só retrato de vulnerabilidade acrescida em vida, requer conhecimento técnico diferenciado desta fase do ciclo vital. No ano de 2017, a Organização Mundial de Saúde modificou a definição de Cobertura Universal de Saúde (CUS) com objetivo de incluir paliação em paralelo com promoção, prevenção, tratamento e reabilitação.2  Ou seja, como parte integrante de um vasto continuo de cuidados já bem estabelecido no programa de formação médica. Também a assembleia parlamentar do concelho da Europa, na resolução 2249, reconhece os Cuidados Paliativos (CP) como Direito Humano respeitante à Saúde, lastimando a extensão de cidadãos europeus sem acesso aos mesmos.3  Porque nos mantemos à margem deste Direito? Ignoramos que o fim de vida e a morte são um facto com 100% de prevalência? Não seremos nós médicos obrigados pelo nosso Juramento em “Cuidar da minha saúde, bem-estar e capacidade para prestar cuidados de maior qualidade”? A capacidade para prestar esses cuidados de maior qualidade acarreta inerentemente a diferenciação de conhecimentos, competencias e cuidados adequados a cada fase da vida humana. Não serão os mesmos que estudamos para primeira infância ou para a idade adulta num organismo em evolução para a fragilidade final.

Um estudo alemão de 20194, resultante de um questionário 222 alunos do último ano do curso de Medicina onde a pergunta do estudo se foca na perspetiva do estudante perante a sua formação pré-graduada bem como os seus conhecimentos em CP, revelou que 59.6% não se sentem confiantes em prestar cuidados paliativos, especialmente em assuntos relacionados com espiritualidade (77%), e no teste de conhecimentos menos de metade respondeu a metade das perguntas corretamente, perguntas de prática clínica (nomeadamente de controlo sintomático). Acredito que este obstáculo na formação pré-graduada constitua uma causa de stress para os clínicos em formação (como constituiu para mim, quando desprovida de ferramentas) e sofrimento adicional para o doente. Esta linha prolonga-se para a não formação obrigatória no internato médico (nomeadamente, no de Medicina Interna). Isso, em conjunto com a escassez de tempo específico alocado aos cuidados paliativos, nomeadamente para formação dos pares (tempo médico alocado a prestação específica de cuidados paliativos apenas sobre 13.3% das necessidades,  por outras palavras, faltam cerca de 17,080 horas médicas para responder de forma adequada às necessidades estimadas – segundo relatório de Outono do Observatório Português de Cuidados Paliativos5) leva a um circuito que fomenta a continuidade da não aquisição dos conhecimentos técnicos imperativos para cuidados de excelência nas situações de doença grave e avançada. Inevitavelmente urge tomar consciência de que em determinado ponto da evolução clínica dos nossos doentes, nomeadamente para os médicos em formação pré e pós graduada, não sabemos, por desconhecimento, o que fazer para melhor tratar e acompanhar aquele Ser Humano.

Enquanto médicos, estamos comprometidos com a cura e também, cada vez mais, com os cuidados clínicos aqueles que não curamos. É hora do ensino médico refletir isso mesmo.

  1. Arias-casais N, Garralda E, Rhee JY, Lima L de, Pons JJ. EAPC Atlas of Palliative Care EAPC Atlas of Palliative Care. 2019.
  2. Munday D, Boyd K, Jeba J, Kimani K, Moine S, Grant L, et al. Defining primary palliative care for universal health coverage. Lancet 2019;394(10199):621–2.
  3. Council of Europe-Parliamentary Assembly. The provision of palliative care in Europe. 2018;2249(October):1–14.
  4. Pieters J, Dolmans DHJM, Verstegen DML, Warmenhoven FC, Courtens AM, van den Beuken-van Everdingen MHJ. Palliative care education in the undergraduate medical curricula: students’ views on the importance of, their confidence in, and knowledge of palliative care. BMC Palliat Care. 2019 Aug 28;18(1):72. doi: 10.1186/s12904-019-0458-x. PMID: 31455326; PMCID: PMC6712798.
  5. https://www.apcp.com.pt/uploads/opcp_relatorio_2019_equipas_e_profissionais_caracterizacao_e_cobertura_vf.pdf.