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Cuidados de Saúde Primários em São Tomé – Relato de Prática

Autoras: Margarida Domingos e Inês Miranda Reis (médicas internas de Medicina Geral e Familiar – USF Quinta da Prata)

O presente trabalho pretende descrever a experiência de 2 internas de medicina geral e familiar (MGF) durante 1 mês de estágio em São Tomé.

Em Outubro 2022, no âmbito do internato médico de formação específica de MGF, rumámos a S. Tomé e Príncipe, para realizar um mês de trabalho na Delegação de Saúde de Água Grande, na cidade capital de S. Tomé. O objetivo deste estágio internacional foi conhecer a organização dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em S. Tomé, os recursos que lhe estão alocados e as características demográficas da população que servem.

A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um país insular situado no golfo da Guiné, a 350 km da costa ocidental de África, dividido em seis distritos (Água Grande, Lobata, Mé Zóchi, Cantagalo, Lembá e Caué) e a Região Autónoma do Príncipe. Com uma superfície de 1.001 km2, este país de língua oficial portuguesa, tem uma população de cerca de 215.000 habitantes, 70% da qual se concentra num raio de aproximadamente 10 km em torno da cidade capital.1 O mês de Outubro de 2022 correspondeu a um período de transição governamental no país.

Os CSP na capital de São Tomé são liderados pela Delegada de Saúde local e incluem a atividade médica e de enfermagem prestada no Centro Policlínico de Água Grande e nos postos de saúde comunitários, bem como os programas de prevenção da doença com os Pontos focais e o gabinete de epidemiologia e estatística.

No Centro Policlínico de Água Grande existem várias tipologias de consulta: urgência, saúde infantil, saúde materna, planeamento familiar e saúde de adultos. As consultas de vigilância de saúde infantil, saúde materna e planeamento familiar são maioritariamente realizadas pela equipa de enfermagem, sendo esta a principal diferença em relação à realidade portuguesa.

A consulta de urgência é semelhante à nossa consulta aberta, podendo aceder a ela qualquer utente que precise de observação médica, sem necessidade de marcação prévia. O Policlínico dispõe de uma sala de observação com cuidados de enfermagem e acesso a medicação básica, de uma farmácia, de um laboratório de análises clínicas básicas e de um serviço de imagiologia que faz radiografias simples.

A consulta de saúde infantil, segue o Programa de Saúde Infantil e Juvenil, é realizada quase exclusivamente pela equipa de enfermagem, que assegura a avaliação do estado geral da criança, biometria, progressão estaturoponderal/estado nutricional, plano de vacinação e desparasitação. A consulta médica está reservada, por defeito, à observação de crianças doentes ou que suscitem preocupação à equipa de enfermagem.

A consulta médica de saúde materna, não é uma verdadeira consulta médica, é um momento de realização de ecografias obstétricas (para confirmação ecográfica da gestação/1º trimestre, 2º e 3º trimestre) e ginecológicas (queixas pélvicas, controlo de colocação de dispositivo intra-uterino (DIU)). O plano de vigilância da gravidez de baixo risco é assegurado pela equipa de enfermagem. Para iniciar o programa de acompanhamento da gestação é necessário um teste de gravidez positivo em amostra de urina e uma ecografia que demonstre embrião no útero, tendo em atenção que a gravidez psicológica é relativamente frequente. São também muito comuns as gestações gemelares. A idade materna é habitualmente baixa e a multiparidade é frequente. O relatório manuscrito da ecografia é entregue à utente e os exames são pagos, fator que limita o acesso.

A consulta de planeamento familiar também é assegurada pela equipa de enfermagem, que tem à sua disponibilidade como métodos contracetivos o preservativo masculino, as pílulas orais combinadas e o DIU de cobre. As mulheres com preferência pelo DIU são enviadas para uma consulta médica para a sua colocação.

A consulta de saúde de adultos está disponível para qualquer utente através de marcação para qualquer médico. A patologia que surge na consulta é muita e muito variada, sendo as consultas maioritariamente procuradas para tratamento. Estas consultas permitem um acompanhamento seriado, com vista à implementação futura de programas organizados de saúde e estimulação de consultas de promoção de saúde e prevenção da doença.

Na área de saúde de Água Grande existem ainda múltiplos postos de saúde comunitários, que funcionam como extensões de cuidados primários. Nós tivemos oportunidade de acompanhar uma das médicas que realizava consultas no Posto de Saúde de Água Arroz. Além da consulta médica programada e de urgência, há consultas de enfermagem, realização de pensos e seguimento de enfermagem na saúde infantil, saúde materna e planeamento familiar.

Adicionalmente tivemos oportunidade de assistir às consultas de dermatologia da Missão Portuguesa de Dermatologia realizadas no Policlínico de Água Grande. A Missão funciona com base numa parceria com a Organização não-governamental (ONG) Instituto Marquês de Valle Flôr, através do programa “Saúde Para Todos” que proporciona cuidados especializados de variadas especialidades médicas e cirúrgicas.2

No Centro Policlínico de Água Grande existem também os Pontos Focais, que são programas de intervenção comunitária em saúde e contam com a parceria de entidades internacionais como o Fundo Global, a Organização Mundial de Saúde, a Equipa chinesa de Luta Contra o Paludismo, a Cruz Vermelha de S. Tomé e ONG ‘s como a Zatona Adil (pulverização inseticida de espaços públicos e domicílios). Os pontos focais agregam recursos internacionais, financeiros e humanos, com vista à execução de programas de controlo/erradicação do Paludismo, vírus da imunodeficiência humana (VIH) e Tuberculose. Foi-nos explicado como é realizado o diagnóstico, a notificação e o seguimento dos casos positivos, a distribuição da medicação e o rastreio dos contactos, bem como as estratégias de sensibilização, combate e erradicação destas doenças. Neste sentido, tivemos oportunidade de acompanhar as equipas de saúde comunitária numa saída ao bairro de Atrás da Cadeia. A equipa (médicos, enfermeiros e agentes comunitários) deslocou-se a um espaço cedido por um membro da comunidade, preparou postos de triagem para realização de testes rápidos de paludismo, VIH e colheita de amostras de expetoração para pesquisa de tuberculose. Oportunisticamente fez-se medição de tensão arterial (TA), determinação de glicémia capilar e verificação de cumprimento do calendário vacinal e foram distribuídos preservativos. Foram também realizadas consultas médicas aos utentes com valores de TA e glicemia elevados e com queixas identificadas com necessidade de observação/encaminhamento mais prioritário.

Em São Tomé, o processo clínico e os registos clínicos são ainda feitos em papel. As requisições de meios complementares de diagnóstico e as receitas, são passadas em folhas brancas com o carimbo da Delegacia de Saúde ou dos Postos Médicos (que identifica o local correspondente) e o carimbo do médico (que identifica o prescritor com nome e número de cédula profissional). No final do mês de Outubro de 2022 estava a começar a implementação do programa informático de registo médico.

Os recursos farmacológicos são bem mais limitados do que aqueles a que temos acesso em Portugal, quer em termos de disponibilidade de princípios ativos quer no tipo de formulações (os xaropes são muito caros e os fármacos inalatórios são menos usados). No tratamento da hipertensão usa-se principalmente nifedipina, hidroclorotiazida, furosemida e captopril, em esquemas terapêuticos de duas a três tomas diárias, ao invés de toma única. No tratamento da diabetes os medicamentos orais disponíveis são a metformina e a glibenclamida e não é usual o controlo glicémico com o doseamento analítico seriado de hemoglobina glicada.

A carência económica é um fator limitante da adesão terapêutica. A fraca literacia em saúde também condiciona uma utilização dos serviços de saúde essencialmente perante uma situação de doença e menos na perspetiva da prevenção e promoção da saúde. Durante as consultas tentámos sempre reforçar a importância fundamental das medidas sanitárias, higiénicas e dietéticas na manutenção e preservação da saúde.

Por fim, em regime de voluntariado e juntamente com os outros colegas de MGF e Pediatria, realizámos uma apresentação na Igreja Metodista Livre da Trindade sobre cancro da mama e cancro do colo do útero, no âmbito do movimento “Outubro Rosa”. Participaram mulheres de todas as idades, mostrando grande interesse pelo tema, aproveitando a ocasião para esclarecer dúvidas e aprender sobre temas relacionados com a saúde da mulher, sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis e a importância da vacinação e prevenção. Este trabalho foi muito gratificante porque a presença da igreja (de qualquer confissão) no seio das comunidades, como agente social e comunitário é muito forte e benévolo, havendo por isso uma excelente resposta da comunidade.

A nível profissional, este estágio representou um imenso ganho formativo. As condições de trabalho e a escassez de recursos obrigam a que a história clínica e a semiologia médica assumam um papel preponderante, assim como o contexto epidemiológico local exige uma adaptação do raciocínio clínico. As condições sociogeográficas não são facilitadoras do acesso a cuidados médicos, quer pelo custo da deslocação, quer pela distância. As más condições sanitárias também comprometem o processo de evolução dos cuidados de saúde (recolha de lixo, saneamento básico, tratamento de águas residuais e saneamento animal).

Embora as ações de Saúde Pública em São Tomé tenham um longo caminho a percorrer na melhoria das condições de vida da população, foi muito enriquecedor e gratificante, para nós, trabalhar com uma população com diferenças socioculturais, crenças e condições económicas tão diferentes da população com que habitualmente trabalhamos.

Foi um enorme privilégio privar com todos os profissionais de saúde, bem como com os são-tomenses com quem tivemos oportunidade de conviver e que nos deram a conhecer a leveza e beleza da ilha de São Tomé. O vosso lema “leve-leve” estará sempre connosco.

 

Bibliografia:

  1. Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. São Tomé e Príncipe. [Internet] [cited 2023 Nov 5]. Available from: https://www.instituto-camoes.pt/activity/o-que-fazemos/cooperacao/cooperacao-na-pratica/todos-os-paises/sao-tome-e-principe
  2. Instituto Marquês de Valle Flor. Saúde para Todos. [Internet] [cited 2023 Oct 28]. Available from: https://www.imvf.org/project/saude-para-todos-consolidacao-do-sistema-nacional-de-saude-de-sao-tome-e-principe/