Contexto
A pandemia COVID-19 está a determinar um aumento significativo da procura da Medicina Intensiva, induzindo sobrecarga na Rede de Serviços de Medicina Intensiva Portuguesa. A sobrecarga decorre da elevada incidência da infecção, que se soma à procura decorrente das formas críticas de todas as outras patologias, mas também do facto de Portugal ter crónica escassez de camas de medicina intensiva. Esta potencial desproporção aconselha à consolidação da matriz ética no processo de decisão, admissão e manutenção de doentes críticos nos Serviços de Medicina Intensiva (SMI), de forma a garantir a inexistência de disparidade entre cuidados necessários e cuidados fornecidos.
Apesar da recente reactivação de medidas de contenção e mitigação, absolutamente necessárias, a procura da Medicina Intensiva continua a acontecer e caminhamos para um cenário em que haverá necessidade de, durante muitos meses, compatibilizar a admissão de doentes com as patologias “tradicionais” (não-COVID) e de doentes com COVID-19. Isto sem excluir a possibilidade de activação de novos ciclos de contingência, face a ondas adicionais de COVID-19.
É admissível que este aumento de procura possa condicionar dificuldades de disponibilidade de recursos, colocando os Intensivistas em cenários de grande complexidade ética. Esta possibilidade aconselha uma ponderação colectiva, que apoie as decisões e proteja os cidadãos. O essencial do processo de decisão em Medicina Intensiva assenta em expectativas de benefício individual (vital e funcional), revisitados em continuo, que procuram evitar exercícios fúteis e, por isso, ofensivos dos interesses do individuo, e não ignorando que a acessibilidade a Medicina Intensiva, em coerência com princípios de justiça distributiva e de equidade a potenciais beneficiários, é um determinante fundamental de redução da letalidade.
Princípios gerais
Globalmente, a decisão de admissão em Medicina Intensiva deve assentar no dever de planear, no dever de cuidar, no respeito pelos quatro princípios bioéticos – beneficência, não-maleficiência, autonomia e justiça distributiva – e na equidade de tratamento. Neste documento definem-se recomendações que visam apoiar a operacionalização desses princípios no exercício clínico.
Recomendações
Recomendação 1: Dever de planear
Face a uma pandemia, o dever de planear é prioritário. O não planeamento em situações de previsível escassez de recursos pode levar a ineficiência e desperdício dos mesmos, perda evitável de vidas e uso de estratégias de priorização e racionamento, de outro modo, desnecessárias.
Esta planificação passa pela elaboração e implementação pela Medicina Intensiva de um Plano de Contingência, consensualizado com outros serviços hospitalares e aprovado pelo Conselho de Administração de cada instituição de saúde. Este Plano deve ter um nível local e um nível regional de organização. O funcionamento em Rede de Saúde é absolutamente essencial, sendo que traduz a natureza cooperativa e solidária do Serviço Nacional de Saúde.
A Task Force Nacional de Medicina Intensiva elaborou um documento que regula a elaboração dos Planos de Contingência de Medicina Intensiva a nível local e a sua implementação. Nele estão previstas uma série de intervenções preparatórias, umas determinantes de redução da procura electiva de camas críticas (ex: suspensão de actividade cirúrgica não urgente que implique admissão em Medicina Intensiva), outras promotoras de suspensão de actividades não prioritárias que facilitem transferência e deslocação de recursos (ex: suspensão de actividade cirúrgica convencional não prioritária) e outras promotoras de aumento da oferta (ex: activação de todas as camas inactivas, aumento de número de camas por expansão do serviço para outras áreas, capacitação de camas de nível 2 em camas de nível 3). Este plano deve prever um nível de colaboração inter-institucional regional, com base na, recentemente revista, Rede de Referenciação de Especialidade de Medicina Intensiva, ACSS, 2020 (https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2020/08/Atualiza%C3%A7%C3%A3o-daRNMI-Aprovado-MS.pdf)
A aplicação de critérios de racionamento de admissão, através de estratégias de priorização de admissão, só será admissível após o desenvolvimento dos esforços necessários ao desenvolvimento e implementação do Plano de Contingência, nomeadamente com capacitação, em número e qualidade, das camas de Medicina Intensiva disponíveis e com maximização dos mecanismos de cooperação interinstitucional dentro da região de saúde e inter-regional.
Recomendação 2: Dever de maximização do benefício
Para definição da máxima beneficência devem ser ponderados quatro critérios fundamentais:
– apresentação e gravidade da doença aguda, nomeadamente número e gravidades das disfunções orgânicas (SOFA)
– reversibilidade e prognóstico da doença aguda
– presença prévia de comorbilidades
– estado funcional e de fragilidade (Frailty Scale) prévio à situação aguda ou agudizada que motiva a admissão
A idade, embora se relacione com a probabilidade de existência de co-morbilidades e com o estado funcional, não é critério a utilizar, por si só, nesta avaliação.
A operacionalização desta recomendação significa que pessoas que estão doentes e podem recuperar para uma vida normal devem ser priorizadas sobre outras em que a probabilidade de recuperação é muito baixa mesmo se tratadas em Medicina Intensiva e também sobre outras em que seja considerado muito provável que recuperem com tratamento fora da Medicina Intensiva (em nível 1 de cuidados ou em enfermaria), evitando assim cuidados que não adicionam ou pouco adicionam valor em saúde.
A boa aplicação desta recomendação reduzirá a necessidade de interrupção de cuidados, mas esta é imperativa na dimensão individual, omitindo tratamentos fúteis e evitando o encarniçamento terapêutico, ou num contexto de catástrofe, orientado por critérios de justiça relativa.
Recomendação 3 – Dever de exercício de colegialidade e de modelo de decisão partilhado
A decisão de admissão em Medicina Intensiva deve ter em conta o princípio de beneficência acima descrito, mas ser igualmente baseada, sempre que possível:
– em modelo de decisão partilhada com o doente ou com os seus familiares (estes enquanto representantes dos valores do doente);
– em metodologia colegial, idealmente multi-profissional e recrutando os contributos disponíveis à melhor qualificação da decisão, num processo coordenado por intensivistas séniores, podendo ser útil a audição de pares externos à Instituição.
– em orientações/normas previamente aprovadas institucionalmente;
– no respeito por um plano avançado de cuidados, realizado atempadamente e baseado nos contributos das várias especialidades que poderão vir a ser chamadas ao tratamento daquela situação específica.
Estes mecanismos favorecem uma melhor decisão, mitigam a angústia e o desconforto individual dos profissionais, atenuam a subjectividade e promovem um modelo de decisão partilhado com o doente, os seus representantes e a sociedade. Finalmente, o respeito pelo princípio da autonomia, permite consubstanciar a beneficência, considerando a probabilidade de recuperação clínica para níveis funcionais aceitáveis segundo os critérios do próprio. Em Medicina Intensiva, é frequente que o recurso à família e conviventes seja a melhor aproximação ao conhecimento da vontade e valores do individuo doente.
Qualquer decisão de limitação ou interrupção de cuidados deve ser construída em equipa, partilhada com os cuidadores, e mantendo o foco, no limite do exequível, no envolvimento do doente e dos seus representantes. Quando aplicável, este processo deve suscitar reapreciações periódicas, visando a reavaliação de premissas críticas para a decisão e assegurando o dever de informação e partilha. Só a total transparência poderá manter a confiança do cidadão no sistema de saúde.
Sem prejuízo do disposto anteriormente, compete ao responsável pela equipa de Medicina Intensiva a decisão final sobre a admissão de cada doente.
Recomendação 4 – Dever de equidade
Para doentes com prognóstico semelhante, deve ser invocada a equidade e operacionalizada de forma que evite o “quem chega primeiro, primeiro é servido”, que não pode ser aplicado em situações em que a resposta tem de ser urgente e rápida e a inexistência de recursos pode ser fatal para o doente. Acresce, que uma política de “quem chega primeiro, primeiro é servido” é injusta por excluir de tratamento quem desenvolve a doença mais tardiamente. Em suma, os princípios éticos que regem a decisão de admissão e manutenção de internamento em Medicina Intensiva, devem ser claros e por todos percebidos e cumpridos, não se podendo dar só porque se tem nem deixar de dever dar só porque não se tem.
Este caminho, balizado por princípios éticos claros e exercido com uma busca permanente, lucidez e bom senso, é a melhor aproximação a uma decisão equilibrada, ue preserva os interesses do individuo e assegura uma gestão com equidade.
Recomendação 5 – Dever de triagem e dever de cuidar
Em Medicina Intensiva, com ou sem pandemia, as decisões de triagem são fundamentais, definindo nível de cuidados, início de terapêutica de suporte orgânico, definição de tecto terapêutico, suspensão de suporte orgânico ou referência para cuidados paliativos. O apoio e a participação de elementos séniores nas decisões de triagem é elemento fulcral neste processo. Mais relevantes são em tempos de elevada procura, como é o caso da actual situação.
A decisão de não admissão em Medicina Intensiva ou a definição de limitação de tratamento implicam a formulação e implementação de um plano de cuidados que inclua a gestão farmacológica e não farmacológica da dor e de qualquer outra forma de sofrimento. A família é simultaneamente, elemento fundamental neste processo e ela própria destinatária de abordagens que favoreçam o acompanhamento participativo e, se for o caso, o processo de luto. O apoio psicológico e em casos selecionados, o recurso a especialista em Medicina Paliativa deve ser ponderado.
A decisão de não admissão em Medicina Intensiva ou a decisão de não encarniçamento terapêutico nunca podem ser confundidas com abandono. Pelo contrário, exigem a elaboração de plano de cuidados em que o intensivista é parte integrante. Neste contexto, a garantia de adequados cuidados paliativos é, evidentemente, fundamental.
Por exemplo, a decisão de não oferecer ventilação mecânica invasiva não impede que se ofereça ventilação não invasiva ou oxigenoterapia nasal de alto fluxo e a decisão de oferecer ventilação mecânica invasiva não implica que se escale tratamento para suporte de outros órgãos. Cada decisão deve ser ponderada de acordo com o melhor interesse global de cada doente, tendo em atenção a previsível qualidade de vida após a doença aguda, a sua autonomia e o resultante de cada proposta terapêutica.
O dever de cuidar é fundacional ao exercício clínico. Este dever requer fidelidade ao doente, que em nenhum momento nem por nenhuma razão pode ser abandonado
Recomendação 6 – Dever de uso transversal de critérios de utilização de recursos
Não deve haver diferença de critérios de alocação de recursos escassos entre doentes com COVID-19 ou com outras condições clínicas. Os princípios usados para priorização de doentes para admissão, nomeadamente o princípio da máxima beneficência, deve ser exercido de forma transversal para todos os doentes críticos, seja qual for o motivo de admissão.
A COVID-19 não desaparecerá em poucos meses e será necessário reforçar várias linhas de actividade entretanto suspensas ou muito diminuídas. Será necessário capacitar a Medicina Intensiva de forma sustentada, estruturando uma melhor resposta a este desafio de coabitação. A dimensão ética subjacente à actividade da Medicina Intensiva deve ser, nos seus princípios e valores, transversal às várias condições clínicas e este é o tempo de projectar os Serviços de Medicina Intensiva para a resposta holística a todas as patologias, COVID-19 e todas as outras.
18.11.2020
Direcção do Colégio de Especialidade de Medicina Intensiva e elemento intensivista do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica
José Artur Paiva, Eduardo Melo, Francisco Esteves, João Gonçalves Pereira, João Miguel Ribeiro, José Júlio Nóbrega, Paula Castelões, Paula Coutinho, Paulo Martins, Rui Araújo
Parecer homologado pelo Conselho Nacional da Ordem dos Médicos
Lisboa, 20 de novembro de 2020