+351 21 151 71 00

Corpos e Almas: uma interpretação quase biográfica

Autor: M.M. Camilo Sequeira, Internista aposentado

 

1963 foi o ano em que, pela primeira vez, soube do livro “Corpos e Almas”. Mas pela sua versão fílmica. Recordo-me da impressão que a história, que tinha como título original “The Interns”, me causou numa altura em que nunca me passara pela cabeça a hipótese de ser Médico. Nesse tempo via regularmente no Ateneu, com admiração e surpresa, os episódios dos Drs. Kildare e Ben Casey. Sim, nesse ano poucos tinham televisão própria pelo que, depois do jantar, uma boa parte dos habitantes da vila deslocava-se para o grande salão de baile do Ateneu e sentava-se nas dezenas de cadeiras dispostas ao lado umas das outras em 15 ou 20 filas. Em frente, sobre um móvel alto, estava o impressionante aparelho com imagens que designámos solenemente como a TV.

Interrogo-me hoje como é que conseguíamos àquela distância ver as legendas, mas a verdade é que as líamos: do “Dr. Kildare”, de “Bonanza”, do “Mr. Ed”, do “Hiram Holliday”, do “Fugitivo”… Já os programas falados em português percebiam-se bem pois o som era bastante alto para se apreciarem os dizeres de João Villaret e ouvir as charlas linguísticas ou as graças do café concerto. Estes espectáculos, que se tornaram um prazer para todos que deles quisessem usufruir, apenas eram perturbados por um, frequente, “intervalo” quando imagem e som davam lugar a um ecrã escuro preenchido pela frase “pedimos desculpa pela interrupção, o programa segue dentro de momentos”. Ou talvez apenas por “o programa segue dentro de momentos”. Já não me recordo bem.

Mas apesar do encantamento com o filme não me interessei pela leitura do livro, nem mesmo na segunda metade de 1966 quando admiti a possibilidade de frequentar a Faculdade de Medicina. Só voltei ao livro em Outubro de 2018 e em boa hora o fiz.

“Corpos e Almas” foi escrito por um homem que não viveu 45 anos, que morreu tuberculoso tendo por isso conhecido durante uma boa parte da sua curta vida o martírio de internamentos hospitalares ou em sanatórios onde conviveu de perto com Médicos, Enfermeiras e muitíssimos doentes. Chamava-se Maxence Van der Meersch e ganhou um Goncourt com obra anterior a este livro que teve a sua 1ª edição em 1943 nove anos antes da morte do autor.

Sendo livro da primeira metade do século passado parece razoável pensar nele como obra datada fora desta época. Eu julgo que não.

“Corpos e Almas” conta uma história onde, de facto, não há Médicos do sexo feminino como hoje e onde as figuras de mulheres podem parecer subalternizadas. Mas é um equívoco. Não encontrei qualquer sinal de misoginia num texto que descreve as mulheres como Enfermeiras, laicas ou religiosas, mostrando um enormíssimo respeito pela sua dedicação, competência e compreensão em relação ao outro, ou como doentes descrevendo estas com uma piedade sem limites procurando sempre uma justificação coerente para o miserável da sua condição social e da sua circunstância como sofredoras que eram os dramáticos padrões de antanho. Mesmo as meninas de sociedade que se destinavam a um bom casamento não são ridicularizadas. São bem descritas como fenómeno do seu tempo cujas vidas poderão ser mais ou menos felizes em função da sua acomodação a esse condicionalismo.

Mas se esta realidade social se alterou e eu quero acreditar que para muito melhor, o que se descreve como vida de sociedade talvez não tenha mudado tanto assim. Porque se refere a rígida estruturação social da época mas também histórias de ascensão social mostrando como se progride para um nível de vida, por vezes, bem distante do que era sua origem: por mérito, por empenho pouco digno ou por relacionamento preferencial com agentes de poder que, por sua vez, também beneficiam com as vantagens que oferecem de forma bem selectiva. E há a continuidade “hereditária” de um certo tipo de poder na profissão médica. Descreve-se sem óbvia censura as relações entre Médicos onde a competitividade e a intriga coexistem embora sem prejuízo para os doentes. Pelo menos consciente. O autor afirma claramente que a atitude que define os Médicos competentes é um contínuo propósito de fazer bem. O que implica a coexistência nas mesmas pessoas da vaidade de criar bem-estar e a aceitação de riscos que, pelo menos naquele tempo, poderiam implicar sacrifício de vida. Sem sentido figurado.

É esta contextualidade que justifica o que estou a escrever. O meu propósito, como cidadão que também é Médico, é fazer um convite, admito mesmo que fazer uma pressão insistente, para que os meus colegas activos de hoje leiam este livro já velho de quase 80 anos.

Eu sei que o tempo é escasso para se satisfazerem todas as obrigações desta profissão e que a formação médica implica estudo, muitíssimo estudo. Após a minha aposentação ofereci quase 30 CDs da minha própria formação ao Instituto Piaget da Guiné e 601 volumes, uns mais sublinhados que outros, aos Médicos do Mundo para que os distribuam nos locais onde tenham missões e os julguem úteis. E que para minha surpresa não interessaram a várias instituições escolares das antigas colónias a quem os propus como oferta. Livros que me formaram, claro. Pois continuo a pretender que o que me fez Médico foi esta formação teórica e respectiva prática aplicada associados ao exemplo dos que tenho como maiores. Mas também foi e não secundariamente a continuada leitura de obras de literatura ficcional ou ensaística, filosófica e histórica, que me ajudaram a construir uma ideia do mundo, da presença de outros neste mundo e das formas de nele existir. A literatura auxilia-nos a construir todo um edifício de valores, solidariedade, partilha, cooperação, entreajuda, complementaridade e principalmente, muito principalmente, de relativização de “tudo sobre que nos fazemos”. Por ter sido assim comigo acho que também o será para os mais novos. Daí o convite para este livro.

Ter consciência da importância deste tipo de aprendizagem é o que permite sabermos e aceitarmos que aos 70 anos somos pessoas diferentes do que éramos aos 20, aos 40 ou aos 60 apesar da matriz sobre que esta diferença se define ser sempre a mesma. Também é esta compreensão que nos ajuda a ter pelos doentes respeito, muitas vezes admiração e até afecto, tornando o dever específico da profissão com que estamos comprometidos num exercício de prazer pessoal e de grande gozo quando o alívio do sofrimento de outrem, simbólico ou real, é alcançado.

Porque quando tal objectivo se perde esta perda é muito nossa. O fracasso em relação ao compromisso profissional, seja ou não de nossa total responsabilidade, marca como ferrete a confiança que temos na nossa capacidade de assistir o outro. E ficamos diferentes do que éramos. E em meu entender melhores. Claro que, e felizmente este tipo de sentir não é exclusivo dos Médicos. Nem sequer dos profissionais da saúde. Mas é sobre os Médicos que estou a reflectir.

Enquanto trabalhei interroguei-me frequentemente sobre qual seria o suporte da eventual qualificação, ou falta desta, do meu trabalho. Quer na minha perspectiva quer nas palavras de terceiros. Continuo a fazê-lo e a sentir como é complexo dar respostas razoáveis, fundamentadas, que eu desejaria inquestionáveis. Fiz sempre bem? Fiz sempre como era expectável que o fizesse? Fiz sempre de acordo com as normas da arte e da ciência? Fiz sempre o que fiz tendo em conta os interesses dos doentes?

É incómodo ter de responder com um “não sei”. Claro que tenho a consolação, ou protejo-me com isso, dizendo que “sempre” o tentei fazer. Mas é pouco. Porque o compromisso da nossa actividade é fazer bem o que aprendemos, mas também é dar “a quem não tem seja o que for que sente que devia ter” este desconhecido cuja perda real ou imaginária é causadora de sofrimento, de dor, de inquietação.

E como dar a alguém o que ninguém sabe ser a sua necessidade?

A escola não nos prepara para esta incongruência. Ensina o que é objectivo e julgo que deve continuar a preparar para o inesperado: a novidade, a incoerência semiológica, as limitações comunicacionais. Mas se isto é a ferramenta para bem-fazer em termos académicos pode ser muito pouco para acudir a muitas queixas, talvez as mais comuns, erradamente consideradas como menores.

A aprendizagem para estas questões faz-se através da literatura não-médica. Reflectindo sobre a descrição do que é sentir-se doente feita por doentes ou por quem contar as suas perturbações em seu nome. Saber como vêem os Médicos quando não precisam deles. Como interpretam os estudos e os exames complementares que estes lhes pedem para fazer. Como compreendem as explicações sobre procedimentos ou tratamentos muitas vezes agressivos. Como acham que os Médicos os ouvem. E se os ouvem de facto…

“Corpos e Almas” é um livro escrito por alguém que conheceu a Medicina quando esta aprendia a ser científica. É também por isso que o julgo de leitura obrigatória, agora, quando a Medicina parece querer ser só ciência. Porque nos informa sobre a própria insegurança desta e nos mostra como os outros pares vêem e valorizam esse saber melhor fundamentado. Mas também porque informa que há sempre quem se mantenha distante quer dos ganhos científicos quer das boas práticas da arte assistencial. Ontem como hoje.

E não ignora o negócio. Que será uma constante da actividade dos Médicos sem que tenhamos de nos sentir incomodados com isso. Mas se e só se nos mantivermos lúcidos sobre os negócios da saúde que nos devem incomodar. Mormente porque os matizes deste tipo de ganho se modificaram com o tempo. Quando era a arte que predominava, o negócio era uma variável considerada depois do doente. Hoje, quando predomina a ciência, o negócio “tem todo o ar” de ser negócio, apenas negócio, sendo o doente elemento secundário que, para o manter lucrativo, não se pode evitar. O doente parece ser o objecto de exploração com vista ao lucro pretendido. Sendo irrelevante saber se este se obtém através de um “produto” que se deve vender… tenha ou não benefícios para o doente.

E já nesses distantes anos quarenta do século XX havia a tentativa de afirmação dos gestores de saúde como os verdadeiros conhecedores das necessidades assistenciais, o que conseguiram nos nossos dias, contra as vontades de desenvolvimento e qualificação que eram expressas pelos Médicos considerados como “despesistas pelos seus interesses pessoais”.

Nesta variável do negócio e dos seus agentes o passado era inequivocamente mais interessado no doente do que hoje. Embora longe de ser uma característica de todos os Médicos desse tempo também a afirmação da competência, uma das mais relevantes expressões da defesa de direitos dos doentes, era mais corajosa onde se tornasse necessária: nos tribunais, no diálogo com gestores do referido negócio-saúde, na defesa das boas práticas sejam elas adequadas ou não ao interesse financeiro dos pagadores.

Claro que também era, demasiadas vezes, paternalista. Mas isso nunca impediu que apesar de ser uma Medicina menos capaz de tratar o doente do que hoje “de o tratar como pessoa que sofre e quer deixar de sofrer”. O que não é valor pequeno.

Dirão alguns que esta vantagem não pode ter valor num tempo em que se quer acreditar que “mercado”, ou seja benefício financeiro, é sinónimo de progresso.

Eu atrevo-me a dizer que esta convicção talvez seja um dos maiores enganos “financeiros” com que hoje convivemos. É minha convicção que a seu tempo a ciência demonstrará que o afecto, a presença, a atenção, a capacidade de ouvir e observar e até a simples palavra mesmo que silenciosa são medicamentos “curativos” com um valor financeiro que ainda está a aguardar ser compreendido.

Temos de dar ao tempo, tempo para se chegar ao nosso tempo e a este tempo de futuro.

Até lá a leitura de textos de ficção que utilizam personagens Médicos ou Doentes como base da narrativa é uma forma excelente de apreciarmos épocas, saberes, práticas contextualizadas, a importância do relativo e do próprio de cada doente na expressão da doença.

Este conhecimento não interfere com o científico da prática clínica pois nem desvaloriza o estudo, nem pretende substituir-se à formação clássica. O que oferece, ou pode oferecer pois só receberá o conhecimento em causa quem para ele estiver disponível, é mais uma área de competência, naturalmente complementar da que se vai acumulando com a prática em exercício.

E numa actividade como a nossa toda a informação sobre os Homens nunca é demais. Devemos tentar saber como nos fizemos de primatas, recolectores, de tribos sedentárias, senhores de civilizações complexas, de conhecedores de um lugar em gente do mundo globalizado.

E que apesar de todas estas transformações da vida há uma constante que não mudou: andamos de pé procurando a felicidade através de emoções, sentimentos, quereres e conflitos absurdos. Alguns percebendo-o são humildes. Outros ainda não chegaram aí.

Mas a porta está aberta. Há quem lhe chame literatura. Outros preferem um conceito mais abrangente; chamam-lhe cultura.