Autor: José Hiran da Silva Gallo, Presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) – Brasil Doutor e pós-doutor em bioética pela Universidade do Porto - Portugal
O exercício ético, seguro e eficaz da medicina só é possível, dentre outros pontos, perante a observação de dois princípios: o sigilo, que assegura que as informações obtidas na relação entre médico e paciente se destinarão ao enfrentamento de uma doença; e a autonomia, que, no Brasil, está amparada em sólido regramento normativo.
O Código de Ética Médica, aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2019, estabelece em seus princípios fundamentais que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. Assim, compete ao médico atuar em favor do paciente e da sociedade.
Para tanto, define o Código, em seu artigo VII que “o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”. O entendimento que prevalece é de que disposições de qualquer natureza não podem limitar escolhas realizadas pelos médicos.
Dessa forma, o texto normativo, delimita com exatidão o sentido da autonomia na prática médica que não deve ser entendida como sinônimo de liberdade irrestrita. Este princípio encontra limites na ética e na legislação, devendo o médico se curvar a ambas sob pena de se colocar em terreno questionável, ficando, portanto, vulnerável a penalidades, caso as desrespeite.
Por tudo isso, a autonomia não deve ser vista como um cheque em branco dado ao médico na sua relação com o paciente. Sua prática está condicionada, fundamentalmente, ao benefício que trará, sem incorrer em exposição do indivíduo a qualquer malefício. Reitere-se, mais uma vez, que no exercício da medicina todas as escolhas podem ser feitas - apenas e unicamente - no espaço permitido pela lei.
Note-se que cabe a intepretação da autonomia atribuída ao médico em função de preceitos que compõem o ordenamento jurídico brasileiro. Um exemplo são direitos fundamentais, previstos na Constituição (vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade — artigo 5º, caput) que, entre outros pontos, destaca: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Além disso, destaque-se que a autonomia médica esbarra ainda na autonomia do paciente, que possui o direito de opinar sobre a condução do seu tratamento. O próprio Código de Ética Médica exige que, no exercício profissional, ocorra o esclarecimento sobre os procedimentos propostos ao paciente, exigindo-se seu consentimento (artigo 22), salvo em situação de risco de morte, o que encontra amparo no artigo 15, do Código Civil brasileiro.
Esse contexto exige que a prática médica atual seja defendida à luz da obediência aos conceitos hipocráticos da beneficência, não-maleficência, respeito à vida, confidencialidade e privacidade, acrescidos do respeito à autonomia do profissional e do paciente.
Evidentemente, apesar do escopo legal no qual se inscreve, esse tema ainda está imerso em aspectos complexos e conflituosos, que, mais do que nunca, nos estimulam a analisá-lo para compreender sua dimensão e relevância. Desta feita, bioeticistas, operadores do Direito e médicos têm a missão de avançar neste terreno, lançando novas luzes sobre esse tópico, a partir de debates e reflexões.
O 16º Congresso Mundial de Bioética, Ética Médica e Direito Médico, que acontecerá em julho de 2024, na sede do CFM, em Brasília (DF, Brasil), configura plataforma que oportuniza discussões desse naipe, com as quais as lideranças do movimento médico lusófono devem contribuir, ajudando a clarear os contornos do exercício da autonomia em favor da saúde e da vida.