Autor: Nelson Rodrigues, presidente do Conselho Sub-Regional de Viana do Castelo
Carta lida pelo autor na receção aos internos de Viana do Castelo:
Viana do Castelo, 20 de fevereiro de 2020
Caros Colegas Internos da Formação Geral e 1º Ano de Formação Específica,
Escrevo-vos pois este ano de 2020 é para vós um momento simbólico. Para uns, a entrada no mundo do exercício prático da medicina, dos médicos; para outros, que já ultrapassaram o átrio e, já conhecem os diversos aposentos do templo, vão agora entrar, conhecer e viver profundamente um dos aposentos. Todavia, esta missiva também se endereça a todos nós; médicos.
Parece-me ser o momento adequado para refletir sobre “ser médico” – a ontologia médica – talvez o mais difícil para nós. Pois, o “resto” é saber e saber fazer; “só” conhecimento técnico-científico.
Carlos Ribeiro no seu livro “Ser Médico – Cartas aos Jovens Médicos” considera os seguintes modos de ser-se médico, passo a citar:
(…)
Podemos deste modo admitir a existência de diversos egos profissionais.
Ego sapiens
O profissional que pratica a medicina como ciência.
Ego cupiens
O clínico procura a medicina como fonte de lucro e de prestígio.
Ego fungens
O médico que privilegia o eu político, ou seja, a medicina subordinada a determinados interesses sociais e políticos.
Ego adjuvans
O profissional que se realiza pelo seu eu assistencial, que pratica uma medicina com o objetivo de prestar ajuda ao próximo.
O médico como profissional apresenta-se na sua prática clínica com uma parcela maior ou menor de cada um dos egos referidos. Desejamos que seja fundamentalmente, um médico adjuvans, medeô, do grego, que deu medicus em latim, que significa cuidar do Outro. Que seja doutor, de docere, ensinar. Mas que não deixe de ser clínico – junto do leito (kline, em grego), ou seja, um profissional que exerce a medicina diretamente em comunicação com os doentes.
(…)
Fim de citação.
Sobre a ontologia médica ponho à vossa consideração outra visão. Dois modos de “ser médico”: “técnico de saúde” e “médico”.
Por vezes, ouvimos, quer os consulentes, quer colegas do nosso mister ou de trabalho: “ É muito bom médico; mas tem um feitio; Ui!; Não se pode dizer nada. Mesmo com os colegas. Ah! Mas é muito bom médico! Ah! Isso é!”.
Um médico não será aquele que para além de dominar o conhecimento técnico-científico, é uma pessoa educada, simpática, compreensiva e tolerante? Embora tenha um elevado sentido ético-moral não é juiz dos seus semelhantes. Procura antes compreender os comportamentos, compreender o ser humano, em vez de julgá-lo.
Devemos saber o que queremos ser: “técnicos de saúde” ou “médicos”. Seguramente, os segundos.
A medicina é compreensão e não julgamento, quer das pessoas quer dos fenómenos biológicos e outros que tais. Devemos ter sempre presente o que dizia Terêncio, dramaturgo e poeta romano: “Homo sum; humani nil a me alienum puto” (Sou humano, nada do que é humano me é estranho).
Um médico na relação com os outros é devoto da simpatia, da compreensão, da confiança, da humildade e da sensatez. Estas são sua constante companhia e suas conselheiras.
Como tal, além dos conhecimentos técnico-científicos devemos ter uma cultura humanista. Ser humanistas, como defendiam William Osler e João Lobo Antunes: praticantes da medicina hipocrática.
Deixo-vos com as palavras de Tiago Rodrigues, ator, encenador, diretor artístico do teatro Dona Maria II, prémio Pessoa 2019: “Médico – acho que é a verdadeira profissão. As outras são desculpas para estarmos ocupados. Exige coragem, altruísmo e espírito de sacrifício.”
Despeço-me com um abraço de amizade,
Nelson Rodrigues