Divulgamos a carta aberta que foi dirigida pelos bastonários da Ordem dos Médicos – Miguel Guimarães, José Manuel Silva, Germano de Sousa, Gentil Martins, Carlos Ribeiro e Pedro Nunes – à Ministra da Saúde no dia 14 de outubro de 2020:
«Quase oito meses depois da pandemia COVID-19 ter entrado em Portugal, não falta informação sobre as mais prováveis formas de contágio e sobre a melhor maneira de nos protegermos. A generalidade das pessoas está informada sobre os sintomas que deve levar a sério e como deve comportar-se, apesar de persistirem dúvidas nos circuitos quando surgem sintomas. O uso quase generalizado de máscaras confirma que estamos conscientes de que o nosso comportamento individual é fundamental para evitarmos e reduzirmos os contágios. A nossa comunidade adaptou-se e aprendeu a viver com este vírus. E a maioria dos portugueses estão a adaptar-se em vários domínios, revelando uma cultura cívica que nos orgulha e fortalece.
O SNS e os seus profissionais, com grande abnegação e resiliência, deram uma boa resposta aos doentes COVID, mas a tutela não parece ter aprendido a lição dos meses que passaram. Já estamos na segunda semana de outubro, em pleno outono, e o que aconteceu, o que mudou de substancial na organização das pessoas e dos meios? Onde está o necessário e imprescindível plano — discutido, alterado e devidamente aprovado — para os dias e meses difíceis que enfrentamos? A DGS pôs a discussão no fim de setembro uma versão inicial do plano que além de “não consolidada”, nos parece insuficiente e incompleta em domínios fundamentais de operacionalização para responder de forma eficaz às necessidades dos doentes COVID e não-COVID.
Sra. Ministra da Saúde: estamos preocupados e compete-nos fazer esse alerta público. É vital que haja uma mudança imediata de rumo na estratégia do SNS. O SNS está novamente exposto a uma disrupção grave no seu funcionamento, numa altura em que ainda nem sequer foi capaz de começar a recuperar o fortíssimo abalo sofrido ao longo dos últimos meses.
Nós, médicos, temos a noção de que há momentos que exigem um compromisso e entrega que transcendem qualquer espécie de plano e que esse compromisso faz parte da razão de ser médico e do SNS. O juramento de Hipócrates que fizemos di-lo de forma cristalina logo na primeira frase. “Eu, solenemente, juro consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.” E mais à frente: “A saúde dos meus doentes será a minha primeira preocupação.” Sendo isso uma verdade incontestável e uma obrigação ética que assumimos por inteiro, não há qualquer justificação para o SNS ficar outra vez em grande medida apenas em cima dos ombros dos médicos e dos outros profissionais de saúde, tendo por trás uma organização nacional insuficiente e frágil que, por isso mesmo, não está a ser devidamente eficaz.
Em março, abril e maio o esforço das equipas clínicas — levado, dia após dia, muito para além dos limites físicos e mentais — conseguiu dar resposta às necessidades de saúde imediatas. No entanto, é bom não esquecer que, além da grave paragem de parte significativa da saúde não-COVID, o lockout decretado em abril pelo Governo para tentar evitar ao máximo os contágios pôs as nossas vidas totalmente em suspenso. Essa paragem súbita, potencialmente fatal para a economia e que, paralelamente, fez disparar as listas de espera, criou um escudo artificial que não podemos correr o risco de repetir. Nesta segunda fase da pandemia, o SNS sofrerá toda a pressão da procura sem esta proteção, o que ameaça ter consequências dramáticas para os doentes confrontados com um SNS sem mãos a medir.
Os números dispensam adjetivos: neste período COVID-19, houve 100 mil cirurgias atrasadas no SNS, a que se junta um milhão de consultas nos hospitais, milhares de rastreios que ficaram por fazer, designadamente em oncologia, 17 milhões de meios e exames de diagnóstico e terapêutica, 5 milhões de consultas presenciais nos cuidados de saúde primários. O número de óbitos não-COVID disparou, com mais 7144 mortes entre março e setembro do que a média dos mesmos meses dos últimos cinco anos. Desde AVCs que não foram tratados em tempo útil, passando pelo agravamento de doenças como a diabetes ou situações oncológicas, como é sabido, as consequências vão, infelizmente, tornar-se mais esmagadoras a médio prazo. O não diagnóstico atempado e o não-tratamento prolongado, como está a acontecer, reduzem a esperança e a qualidade de vida dos doentes — doentes que, em muitos casos, desconhecem até que o estão. Os graves problemas do SNS pré-COVID já exigiam um plano de ação musculado e continuado, que tardava em chegar; o contexto atual tornou-se ainda mais complexo e exigente, retardando de forma brutal o combate e o tratamento das mais diferentes patologias.
As semanas e os meses que se aproximam vão, por isso, exigir uma capacidade de resposta muito superior à que hoje existe no SNS. O que nos move nesta carta aberta, Sra. Ministra da Saúde, é a angústia de quem conhece os doentes pelo nome e sabe que o SNS, como está, sozinho não os poderá ajudar a todos. Não há tragédia maior do que esta. É preciso mudar já. É preciso um investimento de grande envergadura que reforce fortemente o SNS. Mas, no imediato, não basta. Os doentes precisam de uma resposta agora, pelo que não podemos prescindir de uma visão de conjunto. Os sectores de saúde sociais e privados podem ser mais envolvidos no esforço COVID e não-COVID para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada. A situação de médicos de família, desviados há demasiado tempo, por decisão da tutela, das suas funções naturais e fundamentais — prevenção, vigilância e tratamento dos seus utentes —, para o combate à pandemia, simboliza o que se passa hoje no SNS: meios humanos e técnicos insuficientes, falta de estratégia e organização da autoridade nacional, e um contexto que ameaça direta e indiretamente a saúde dos portugueses.
Não há tempo a perder, Sra. Ministra. Este é o momento do SNS. É o momento do SNS liderar uma resposta global, envolvendo, de acordo com as necessidades dos doentes, os setores privado e social, que permita aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde com uma resposta inequívoca a todos os doentes (COVID, não-COVID e gripe sazonal) e, através de programa excecional alargado, recuperar as listas de espera e os potenciais doentes “perdidos”. É o momento de recuperar e valorizar objetivamente os profissionais. É o momento de reforçar a capacidade de resposta da saúde pública, dos cuidados de saúde primários, da saúde ocupacional, da medicina hospitalar, e de reforçar o acesso à saúde nas zonas mais carenciadas. É o momento de concretizar a verdadeira transformação digital na medicina à distância com respeito pela sua essência, mas valorizando sempre a relação humana médico-doente. É o momento de integrar a saúde e a segurança social nos lares para melhor proteger os nossos idosos. É o momento do SNS unir os portugueses. Não podemos voltar a deixar alguém ficar para trás.»