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Alcoitão

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

No início de Julho de 2024 tive um AVC isquémico hemiprotuberancial direito que foi avaliado na Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier sendo internado no Serviço de Neurologia do Hospital de Egas Moniz. Aqui fui referenciado ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão onde, mais tarde, fiquei internado. Tive alta em 16 de Outubro de 2024 ficando a aguardar tratamentos em ambulatório.

Não sou dos que acham que o SNS está nas “ruas da amargura”. Com todas as dificuldades que o condicionam, com todo o mal-estar sentido pelos que nele trabalham em relação às condições da prática assistencial, às limitações de meios e muito especialmente de pessoas, às faltas de educação de utilizadores, de gestores, de agentes de opinião e também, decerto ocasionalmente, de prestadores de cuidados, o serviço funciona, assiste quem precisa, é procurado, mesmo que por vezes em condições absurdas, ou seja, “está lá” e cumpre a sua obrigação em relação à sociedade civil que nele confia.

Pelo que é com satisfação que identifico quem, dentro desta circunstância incómoda, sabe ser referência e exemplo de dedicação e valor nos cuidados.

Como é o caso de Alcoitão, instituição da Misericórdia de Lisboa, com contrato com o Estado para cuidar o melhor possível de doentes, particularmente dos com sequelas de patologia do Sistema Nervoso.

Devendo salientar-se o notável de todos os funcionários serem, a seu jeito, agentes terapêuticos procurando com afecto, isso mesmo, afecto, dar um acréscimo de bem-estar a quem procura a competência profissional dos seus funcionários.

Refiro-me aos Auxiliares de Acção Médica, os alicerces de toda a assistência, aos Terapeutas, aos diversos serviços de apoio e, naturalmente, aos Enfermeiros e Médicos sendo que estes são a parte visível dos procedimentos assistenciais.

E como é próprio de todo o edifício SNS, mal pagos, sem que isso reduza a sua dedicação ou anule o espírito de missão que cada um identifica no seu labor.

Mas eu, neste caso como doente, interroguei-me mais de uma vez sobre quais serão os critérios que, politicamente, justificam este sistemático desvalorizar do trabalho dos criadores de saúde. Que é, exactamente, o que são os diferentes funcionários das instituições assistenciais.

Porque o que é óbvio é que não é uma eventual, ou crónica, falta de dinheiro nem da Santa Casa neste caso, nem do Estado em termos generalizados.

Demonstremos esta tese: está ainda em curso uma polémica sobre duas pobres crianças brasileiras com grave doença duvidosamente tratável com medicamento que lhes foi impossível obter no Brasil ou em qualquer um dos países mais ricos do mundo ocidental. Mas em Portugal imediatamente surgiram 4 milhões de Euros para comprar o referido medicamento. Surgiu donde? Dos cofres do Estado como é óbvio. Por isso podemos afirmar que dinheiro para a saúde há. O seu uso é que é bizarro, como bizarro é a discussão pública sobre o assunto que versa potenciais favores, quiçá corrupção, mas que nunca discutiu o como e o donde é que o dinheiro surgiu tão facilmente. Também no privado esta disponibilidade financeira é óbvia: quando o actual Director-Geral da Caixa Geral de Depósitos, antigo Ministro da Saúde, tomou posse, uma das primeiras medidas que tomou foi dar a dois administradores que não queria na sua equipa cerca de um milhão de Euros para os compensar da sua dispensa de funções. Claro que era dinheiro privado, que alguns pretendem ser diferente do público, mas dinheiro privado de uma instituição cujo accionista único é o Estado.

Falar destes assuntos num artigo sobre instituições assistenciais e os seus funcionários pode parecer absurdo… mas não é!

Porque estes valores devem ser comparados com os salários daqueles que, no caso dos Auxiliares por exemplo, correspondem ao salário mínimo e aos Terapeutas nem ao dobro deste.

Ora o actual salário mínimo pago durante 40 anos de trabalho com 14 meses cada ano acarreta um custo ao fim desse período de (40x14x850) 476000 Euros. Não será esta uma prova indubitável de que à democracia agrada a desigualdade? Uma vida inteira de trabalho rende menos de metade da compensação por se ser afastado de um cargo decerto muito bem pago de administrador bancário. E este “gosto” pela desigualdade será uma “marca” da democracia?

Não, não pode ser! Mas é o jogo democrático que permite, sem aparente reacção da sociedade civil, que a demitida Directora-Geral da TAP julgue ser seu direito pedir uma indemnização por perda do cargo equivalente a um salário mensal de bastante mais de 10500 Euros pagos durante os mesmos 40 anos de 14 meses cada um. Que, se calhar, virá mesmo a receber. Ou que uma administradora da mesma TAP, com salário principesco, seja afastada do cargo para ocupar outro com salário similar e receba como indemnização por esse atropelo de direitos meio milhão de Euros, valor superior ao atrás citado sobre o salário mínimo.

Estes exemplos demonstram que não é por falta de dinheiro que os salários dos funcionários deste e doutros serviços de saúde são e continuam a ser, absurdamente baixos exigindo para obterem qualquer acréscimo de uns cêntimos mensais longas discussões, conflitos e tensões grosseiras, interrupções do trabalho, como são as greves, com prejuízo quer do seu bem-estar quer dos que tanto beneficiam com as suas actividades.

E não são os únicos: os trabalhadores de saúde pública há mais de década e meia que não têm concursos de progressão, dezenas de funcionários administrativos dos hospitais, muitos com responsabilidades de tesouraria, há anos que trabalham “a contrato”, sem qualquer vínculo institucional que lhes dê tranquilidade no futuro e com salários tão reduzidos que mais parecem esmolas de favor.

E, como descrevi, não é por falta de dinheiro. Quando este é preciso para satisfazer alguns interesses aparece, aparentemente do nada, em números que pagariam dignos salários a estes e outros trabalhadores sem objectivo sofrimento do erário público. É necessário recapitalizar os bancos? Aí estão 200 milhões de Euros disponíveis. É necessário apoiar a Ucrânia face à ignóbil invasão que sofre? Logo surgem os caríssimos materiais de guerra para lhes dar a ajuda que decerto merecem.

Só para pagar salários dignos parece não haver “espaço” no jogo democrático. A democracia mostra não ter como projecto político o tentar reduzir a desigualdade social. Ou seja, o valor identitário da democracia não é prioridade para os que a gerem. Os que, como órgãos eleitos, a deviam promover, defender e proteger dos que criam ilusões com base, demasiadas vezes, nos fracassos destes democratas. E que, se calhar, com estas questionáveis atitudes políticas lançam para os braços dos autocratas os que se sentem desprotegidos, tratados como cidadãos de segunda, os que olham para a distribuição de vantagens sociais, leia-se financeiras e sentem que estas nunca lhes chegarão.

Sim, este artigo pretende salientar a qualidade do serviço assistencial prestado por uma instituição hospitalar que considero exemplar. Não é um texto sobre política económica. Mas será possível falar do trabalho realizado nesta instituição 365 dias por ano sem abordar o absurdo do seu valor “económico” oficial?

Sem reflectir sobre o valor comparativo entre o trabalho dos Auxiliares de Acção Médica de Alcoitão e o trabalho dos favorecidos que referencio atrás? O valor económico do trabalho de quem, erradamente, se referencia como “trabalhador indiferenciado” quando são, de facto, “trabalhadores polivalentes” que todos os dias levantam doentes, os higienizam, os deslocam entre serviços, os apoiam nas refeições por vezes alimentando-os colher a colher, os tranquilizam face ao desconhecido dos tratamentos, os ajudam nas necessidades fisiológicas, os auxiliam no deitar e durante a noite, que até reparam as cadeiras de rodas e que, exemplarmente, actuam como complementos terapêuticos ao darem carinho, calor humano, estímulo e afecto a uma população de doentes extremamente diversos em sensibilidade e na expressão desta e em grau ou tipo de limitação e ou dependência. Ou o dos Terapeutas que, sem fadiga, sem enfado, com paciência e compreensão em relação às limitações dos doentes, prestam um serviço técnico exigente física e mentalmente, mantêm um ambiente caloroso nas salas de tratamento, desviam as preocupações dos doentes para os ganhos que, pouco a pouco, vão alcançando e, como se isso fosse o mais “natural do natural”, dão esperança, criam confiança, alimentam desejos de recuperação, nem sempre expressos mas sempre sentidos e permitem que no espaço da ciência de reabilitação caiba um sentir emocional que faz perceber como possível o que os doentes sentiam antes como inequivocamente impossível.

Auxiliares polivalentes e terapeutas competentes, ambos no domínio da relação, fazem milagres no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Não tenho poder para os beneficiar nos salários mas tenho o gosto de, numa publicação médica bem chamada de Ordem dos Médicos-Tribuna poder deixar um obrigado, meu e das centenas de doentes que a instituição cuida, aos seus nomes: Auxiliares Carlos Vasques, Sylvia Cipriano, Joana Assunção, Sílvia Ribeiro, Bruno, António Xavier, Nuno, Carolina, Monalisa, André, Sónia, Daniel e tantos outros cuja identidade não fixei e as Terapeutas Lúcia Norberto, Maria João Oliveira, Marília Lourenço, Andreia, Liliana, Carolina da Luz, Ana Filipa, Beatriz, Catarina que me ajudou no tanque terapêutico e até a jovem aluna estagiária Filipa. Se em Portugal há trabalhadores que honram o país pelo espírito de missão, pela sensibilidade social, pela consciência humanitária estes são alguns deles.

Claro que no Hospital há Médicos e Enfermeiros que também o fazem. Mas estes já são amplamente reconhecidos pela competência, dedicação e o compromisso de missão que o seu trabalho, bem ou mal reconhecido pelo Poder, tem como identidade. Todos, digam bem ou mal deles, contam sempre com as suas disponibilidade e saber porque sabem que estão lá… Mas há outros que também lá estão e que, mesmo sendo pouco reconhecidos pela sociedade civil não podem ser esquecidos por ela.

São esses que aqui homenageio. Como doente e como Médico que também sou.