Autor: Gustavo Gomes dos Santos, Médico Interno de Formação Específica em MGF (USF Bom Porto, ACeS Porto Ocidental)
Resumo: A acessibilidade, como conceito basilar do Serviço Nacional de Saúde, está cada vez mais comprometida, não só a nível quantitativo, mas sobretudo na perspetiva da qualidade dos cuidados oferecidos. O artigo foca alguns dos aspetos inerentes a esta problemática, nomeadamente as responsabilidades de utentes, profissionais e decisores políticos.
A discussão pública da estratégia organizativa dos cuidados de saúde debruça-se classicamente sobre o conceito-chave da acessibilidade. Dar médico a quem não tem e diminuir listas de espera são necessidades indiscutivelmente fundamentais. Há que considerar, no entanto, que garantir acessibilidade é um problema essencialmente quantitativo, que ignora a qualidade dos cuidados prestados. O debate centra-se na resolução da incontornável falta de recursos, que ainda assim não desresponsabiliza profissionais e decisores políticos de procurarem adequar a oferta instituída à excessiva demanda.
Os serviços de urgência (SU) são o perfeito exemplo dessa inadequação. A filosofia de “porta aberta” é ela própria causadora de sobrelotação, tempos de espera longos, más decisões e, inevitavelmente, inacessibilidade. O sistema privilegia sobreutilizadores astutos que o manipulam, priorizando-se a doentes com maiores necessidades. O método de triagem da urgência, ao contrário do da consulta hospitalar, revela-se um processo decididamente insuficiente para filtrar as solicitações, chegando a verificar-se situações tão ridículas como o indivíduo que pretende almoçar ou pernoitar no SU, que sobrecarregam e volatilizam um sistema já cronicamente em esforço. O caos torna-se a norma e a urgência torna-se assim o estandarte da decadência do Serviço Nacional de Saúde.
Nesse sentido, a aposta nos cuidados de saúde primários revela-se fundamental, uma vez que constitui a única etapa verdadeiramente moderadora do acesso hospitalar, capaz de priorizar os que dele necessitam. Para isso é preciso atentar na sua eficiência e fiabilidade:
A eficiência encontra-se ainda extensamente afetada pela dificuldade em modernizar práticas, patente de ambos os lados da equação: do profissional que não se desacomoda para acompanhar a evolução dos sistemas de informação, dos conhecimentos técnicos ou que se aproveita das falhas do sistema para benefício próprio; mas também do utente que faz questão de fazer do seu centro de saúde uma autêntica loja do cidadão, responsabilizando o seu médico/enfermeiro/secretário clínico por problemas que pouco ou nada têm que ver com a sua saúde.
Outros há que fazem da consulta uma ida à mercearia. Como é direito destes fregueses aparecem à hora mais conveniente. Levam consigo a “lista das compras” para não deixarem recados por aviar, mas sabem que no acaso de a esquecerem o merceeiro lá estará, omnisciente, para os ajudar com pistas simples – “aquela cor-de-rosa pequenina. É meia de manhã e meia à noite”. Demoram-se em devaneios de circunstância ao balcão e ficam geralmente aborrecidos quando se lhes explica que talvez devessem levar outro tipo de fruta. Já levam a mesma há muitos anos, desde os tempos do merceeiro antigo. Sorriem perante o nosso esforço que sabem ser em vão.
Talvez tenham motivos para atuar assim – é aí que entra a fiabilidade. Não existindo forma de aferir a idoneidade do médico, os cidadãos podem apenas confiar na reputação, que, como sabemos, (ainda) não é a melhor. A medicina privada recebe de braços abertos as dúvidas e medos dos utentes, satisfazendo-as com atenção, tempo, comprimidos e exames (por vezes por ordem decrescente de juízo crítico). Mas quando o plafond acaba, quem sofre é o serviço público, porque devemos pedir marcadores tumorais nas análises de vigilância, ou porque devemos passar o fármaco mais caro (mas sem diferença na eficácia) que o especialista indicou; ou pior ainda, quando o utente necessita de acompanhamento hospitalar urgente, porque a quimioterapia ou internamento excederam o limite financeiro permitido pelo seguro. Assim, cidadãos que têm o SNS como único providenciador de cuidados veem a sua acessibilidade condicionada por utentes dupla (tripla, quádrupla,…)mente vigiados.
Mas existem outros fatores disruptores de serviços que deviam assegurar a saúde das pessoas. A atualidade vê profissionais de saúde, formados e pagos para diagnosticar e tratar doenças, diariamente convertidos em funcionários burocratizados, obrigados a gastar o seu tempo com atestados desnecessários, esclarecimentos redundantes ou outras das inúmeras tarefas inúteis que infetam a nossa prática diária, inflamam a organização dos serviços e deixam inevitáveis sequelas na produtividade. Enquanto isto ocorre, o doente hipertenso que precisa de ouvir que tem de comer menos sal e perder peso, ou o fumador que com a devida intervenção deixaria de fumar, perdem essa oportunidade e convertem-se em mais um enfarte e mais um cancro. O doente que com mais 2 minutos de anamnese deixava de ser uma referenciação para a urgência, passa a sê-lo. E com esta desresponsabilização dos utentes se afastam os (verdadeiros) doentes dos cuidados de saúde.
A irresponsabilidade do utente revela-se no fundo um comportamento esquizofrénico, que lesa precisamente o mecanismo social que o defende em caso de vulnerabilidade. É imperativo relembrar que o SNS é nosso, é de todos! Não se trata de um capricho de uma democracia ainda inexperiente, mas antes de uma necessidade alicerce da sociedade em que nos inserimos. Sem ele a mercantilização da saúde será inevitável, fazendo da acessibilidade uma mera curiosidade nos livros de história.