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A solidão da morte e dos vivos dos nossos dias

Autora: Vera Pires, Médica de MGF, USF Casa dos Pescadores, Póvoa de Varzim

 

A doença Covid-19, provocada pelo coronavírus  SARS-CoV-2, conta atualmente com 1.133.758 casos confirmados, é responsável por  62.784 mortes e atinge 209 países ou territórios (WHO, 4 de abril de 2020). Em Portugal somam-se já 295 óbitos por esta causa. (DGS, 5 de abril de 2020).

No dia 18 de março foi decretado o estado de emergência em Portugal, a 16 de março tinham encerrados os estabelecimentos de ensino desde o pré-escolar ao universitário e a 7 de março haviam sido suspensas as visitais a hospitais, lares e estabelecimentos prisionais da região Norte, medida que posteriormente se estendeu ao restante território nacional. O primeiro caso de doença por Covid-19 em Portugal havia sido registada no dia 2 de março.

Os portugueses que já tinham começado a adotar medidas de isolamento profilático, advertidos pelas constantes notícias do drama vivido em países vizinhos, foram-se confinando cada vez mais à sua residência, na ânsia de controlar esta pandemia e proteger os seus, sobretudo os mais velhos. Não é assim descabido pensar que uma larga fatia de nós não vê os seus familiares mais idosos ou em situação de maior vulnerabilidade há um mês. Ninguém pensou, seguramente, em se despedir dos seus pais, dos seus avôs, dos seus tios, tão rapidamente e eventualmente, de forma definitiva. Algo que foi acontecendo por bom senso, rapidamente se tornou absolutamente necessário e, no caso dos lares e hospitais, obrigatório.

Com os lares encerrados a visitas, para alguns ainda foi possível estabelecer contato por videochamada. E nos tantos idosos em que a única forma de comunicação era o olhar? Ou o toque? Rapidamente o coronavírus  SARS-CoV-2 entrou nos lares também. O telemóvel, o tablet… e todos estes dispositivos que nos mantinham  mais próximos foram percecionados como potenciais fontes de contágio entre os residentes. E assim cessou a possibilidade de comunicação, as notícias passaram a ser dadas pelos profissionais destes locais, mas não é o mesmo do que vermos ou ouvirmos os nossos.

Vemos agora os nossos idosos confinados a um local insalubre, que tanto os procurava proteger e agora pode ser o seu fim. As famílias continuam sem os poder visitar, se ficarem doentes e forem admitidos num hospital continuarão sem poder receber visitas e se tiverem a infeliz sorte de falecer… Falecerão sem o aperto da mão dos filhos, sem o beijo dos netos, sozinhos, na humanidade que é possível ao toque de dois pares de luvas e de um olhar distorcido por óculos e viseiras.

As cerimónias fúnebres, reduzidas à presença de 10 pessoas, de um corpo nu envolto em dois sacos de plástico e um caixão fechado não vão permitir um último adeus das famílias, não da forma como estávamos habituados. Serão quase comparáveis aos perdidos em alto-mar, que de noite voltam em sonhos e fazem acreditar que nunca partiram, estarão já ali ao virar de uma esquina. Restará aos vivos pensar que alguém “do outro lado” os levará, pela mão e com carinho, a descansar.

Serão tempos duros estes que se avizinham. Como ficará a nossa saúde mental nestes lutos tão difíceis de resolver?

Os profissionais de saúde, sobretudo da área da Medicina Geral e Familiar e da Saúde Mental, cuja actividade preventiva e de acompanhamento de doenças crónicas ficou quase anulada com este tsunami da Covid-19, terão, após este período, também o luto que não foi possível viver para ajudar a resolver. Esta pandemia não escolhe credos mas todos os credos choram os seus mortos, e a estes mortos nem podemos dar um último abraço.

Conflito de interesses: Com dois avós com mais de 95 anos num lar onde já existe a doença Covid-19 e com os avós dos meus filhos confinados em casa a quem ansiamos poder novamente abraçar e de quem não me despedi, se tudo correr mal.