Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado
O governo português anda “à nora”. Mas não está só. O coronavírus pôs “à nora” a maioria dos governos das democracias, das autocracias, das teocracias e das diversas expressões de ditadura no nosso tempo. E é compreensível que assim seja porque seguem instruções de uma entidade científica internacional que também procura, dia a dia, gerir um complexo de incertezas que se não estabilizam.
Infelizmente este andar “à nora” generalizado alimenta o principal agente causal da pandemia, a desigualdade social, acentuando-a e facilitando o surgir de outras pandemias e de outros potenciais geradores de mais desigualdade. Temos de saber de um saber inquestionável que em nome da democracia e as mais das vezes de boa-fé, estamos a fazer crescer o espaço onde se manifestarão os Hitlers, Estalines, Pol Pots, Pinochets, Salazares, Francos, Mussolinis ou outros similares, alguns dos quais já com posse do direito de mando dado pelos seus concidadãos, que, pacientemente, aguardam que alguns de nós comecemos a pedir a sua intervenção. E sabemos que serão chamados pelos excluídos.
A necessidade que demasiados já sentem de reagir ao medo criticando quem decide, sem suporte científico ou sensibilidade social, é o abrir de portas a estes delinquentes sociais com consequências que fingimos ignorar mas bem sabemos quais são: violência, segregação, perda de direitos, desigualdade, desigualdade, desigualdade.
Que, em boa verdade, duvido que alguém queira. Pois quando leio os escritos de alguns que tenho como radicais de direita não me parece ter o direito de afirmar que defendem o retorno desse passado recente porquanto, de forma objectiva ou menos óbvia mas razoavelmente clara, julgo perceber que, apesar do que dizem e de como dizem, querem afirmar que têm fidelidade à democracia, à diversidade, à liberdade de opinião.
Claro que criticar o decisor que escolhe medidas que reprovamos é um valor da própria democracia de que nunca podemos abdicar. E é justo reconhecer que esses radicais escolhem frequentemente assuntos que revelam a fragilidade dos mandantes e, lamentavelmente, demasiadas vezes também a fragilidade da própria democracia. Mas criticar, ainda que com determinação e censura, tem de assentar no reconhecimento de que o que julgamos correcto é tão incerto em termos de perfeição como o que julgamos serem más decisões.
Sendo a aceitação deste relativo o suporte para bem criticar sem qualquer ideia que possa pôr em questão o dever de governar dos órgãos eleitos. Estamos contra eles mas não queremos o retorno ao mando sem alternativa.
E num tempo de ruído estupidamente intenso criado pelo negócio da notícia é imperioso, em todo o momento, insistir vigorosamente neste valor. E insistir sempre e também que governar é um dever que se deve cumprir “bem”, como “bem” se deve procurar mostrar que não se está a fazê-lo. E é para mim óbvio que após qualquer conflito verbal ou escrito nos devemos, sempre, interrogar sobre e que é “bem” e porquê.
A presente pandemia “covid-19” tem sido recebida, comentada, analisada e orientada na busca da sua resolução, como um acidente inesperado. O que é falso. E é falso porque se é verdade que não sabíamos que era um coronavírus que estava a preparar-se para nos agredir é completamente falso que a agressão por uma pandemia não tivesse sido previamente anunciada.
Talvez o primeiro grande aviso tenha sido o vírus da imunodeficiência adquirida, para o qual se procura uma vacina há 40 anos, que lentamente se foi disseminando por todo o planeta, com uma contagiosidade que parecia selectiva mas que, pouco a pouco, se foi revelando na sua diversidade. Outro aviso foi, é, o vírus Ébola já com contagiosidade e letalidade não selectivas e que por razões que (em meu entender) ninguém conhece se mantém endémico numa área bem definida de África. Sendo perfeitamente adequado perguntarmo-nos “até quando?”
Foi este coronavírus que nos iniciou o ataque em 2019. Mas poderia ter sido qualquer outro pois nesse mundo inexplorado onde a natureza se protege das agressões humanas há, escondidos, milhares de outros agentes patogénicos mais ou menos agressivos. E julgo que a probabilidade é a favor de “mais”.
Porque este vírus que já está a conviver connosco é um agressor singular porquanto se tem mantido, após vários meses de continuada actividade, com toda a ciência orientada no seu combate, com toda ou quase toda a actividade política a decidir formas de contrariar a sua contagiosidade e com uma pretendida transparência informativa que em tempo real diz o que tem para vender como novos saberes sobre o vírus, se tem mantido, repito, sabendo dele o que sabíamos quando chegou à Europa: que tem alta contagiosidade e baixa letalidade embora esta, por ser selectiva, pareça contrariar o ser “baixa”, que induz imunidade incerta e que as medidas basilares de controlo propostas pela ciência e aceites passivamente pela política, o distanciamento físico e a restrição da mobilidade, implicariam uma dramática destruição do tecido social dos países. É aqui que estamos e não parece que tenhamos coragem ou competência para daqui sairmos. Apesar de a ciência continuar à procura de uma solução a incerteza domina-a e a opinião pública continua a aceitar ser manipulada por saberes ignorantes, por informação eticamente reprovável porque sensacionalista com divulgação de contagiados mortos e não mortos apresentados como se estivéssemos nos jogos olímpicos em busca de recordes sobre recordes.
E em momento algum, na imprensa ou nas conferências de responsáveis, é divulgada a tipologia dos infectados mortos quer em Portugal, que é o 5º país mais envelhecido do mundo, quer nos outros países cujos números são conhecidos (já tentei fazer esta apreciação mas não o consegui. Admito que seja a minha inépcia informática que o justifique mas a ausência de números oficiais sobre esta caracterização etária, sanitária e de circunstância social dos infectados mortos faz-me acreditar que não é só um problema de incapacidade minha).
E sem esta informação elementar continuamos a defender princípios de gestão da “coisa” pública que querem proteger a minha vida, que é passado, destruindo a possibilidade de os meus filhos e netos, que deveriam ser futuro, poderem em seu tempo ser presente feliz.
E, insisto, acreditando o mandante na boa-fé de estar a fazer o melhor possível para o interesse colectivo. Infelizmente não está!
O catastrófico da covid-19 é a acentuação da desigualdade social que a provocou. É o agir em resposta à agressão como se o enriquecimento dos ricos e empobrecimento dos pobres fosse uma inevitabilidade das medidas de contenção dessa agressão viral. Como se a acentuação da desigualdade social fosse um destino, uma vontade de deuses temporariamente esquecidos da sua normativa que diz ser de todos o seu reino.
Este esquecimento é confirmado quando comparamos os números de hoje da pandemia com as projecções de organizações supra nacionais que nos dizem que os pobres do amanhã próximo, ou seja os que estão a aumentar agora, serão entre 575 milhões e 773 milhões a mais em relação a hoje. Parece-me absurdamente grosseiro aceitar estes dados como fatalidade sem alternativa.
Infelizmente não se fez, porque não se soube fazer, não se quis fazer ou, quiçá, não se percebeu a sua necessidade, a profilaxia deste drama quando tal era possível, muito antes do “susto” causado pela chegada da doença. Talvez fosse tarefa demasiado difícil perante o imediatismo de outras necessidades que quotidianamente eram identificadas pelo “ruído” das diferentes expressões de opinião pública. Que alertam para uma hoje e no dia seguinte para outra que se pretende pelo menos de igual importância, embora sem quaisquer critérios de relevância comparativa. Anulando-se dessa forma a oportunidade, o tempo, para reflectir, analisar, comparar e, com objectividade, definir prioridades por quem tem, porque foi essa a sua vontade, o dever de bem gerir o interesse colectivo. Será assim, admito-o, mas a verdade é que também não se fez a profilaxia do risco “colateral” da sua agressividade, o agravamento da já demasiado grave pobreza e das potenciais fome e morte ubíquas, quando se perceberam as características da agressão e era possível assumir o risco político e sanitário de se procurar proteger preferencialmente quem era mais susceptível.
E recuso-me a aceitar que um milhão de mortos infectados pela covid-19 referenciados pela imprensa até à exaustão, sejam mais importantes que um milhão de mortos infectados pela malária (anualmente ainda há um quinto de bilião de novos infectados e mais de 400000 mortos. E não há vacina), ou por qualquer outra agressão, porque não conseguem ter o protagonismo mediático do persistentemente referido “novo coronavírus”. Acredito que todos os seres humanos mortos que diariamente deixam o convívio dos que os amam são tecido social dos países e valem o mesmo como perda. Mas também acredito que embora a perda seja um valor absoluto ninguém será honesto se não reconhecer que também têm valor relativo: o morto jovem é um futuro que se perde enquanto o velho é um passado que se fez e recorda; o morto saudável é a perda de um potencial de criação desconhecido mas o doente incapaz e dependente é uma perda previsível integrada no ciclo da vida.
Não sei qual é a resposta política e sanitária correcta a uma agressão desconhecida, potencialmente letal e que se considera inesperada. Nem sei se haverá uma resposta de carácter geral para este tipo de agressão. Mas sei que a sociedade planetária respondeu à covid-19 com uma metodologia funcional abrangente e praticamente igual em todo o lado o que revela similar sensibilidade à gravidade do problema mas não correcção. Muito menos inequívoca correcção.
E sei também que não pode ser visto como correcto responder a este tipo de agressão com as mesmas metodologias usadas nos muitos séculos antes deste. Porque este é o tempo da tecnologia multiusos que responde a tudo com a segurança da máquina, com a melhor análise da informação dada à mesma, com saberes de tudo em tempo real. O século e a tecnologia em que mal o erro aparece a solução já vai a caminho.
Mas não parece que o século XXI e a sua tecnologia tenham funcionado face à covid-19. Porque embora tenha respondido ao problema com uma solução, esta já era bem conhecida e desde um passado muito longínquo. De um passado onde, aliás, nunca foi necessário recorrer a máquinas para a implementar. E era expectável que a solução da tecnologia não fosse um agravamento das condições de vida daqueles que nela queriam acreditar. Mas foi!
Não parecendo haver imaginação para se procurarem alternativas e afastarmo-nos deste catastrófico destruir de vidas futuras. O que se espera é uma espécie de ciência salvífica que, pela vacinação, destrua o horroroso agressor. Tal como há 40 anos se espera pela vacina que nos protegerá da SIDA.
Há algo de anormal nesta atitude generalizada. Tal como parece anormal que as estruturas internacionais de organização político-económica decidam com uma facilidade e rapidez surpreendentes que têm dinheiro aos montes para distribuir pelos países cuja base social foi arruinada.
É bom sabê-lo.
Mas de onde vem esse dinheiro? E se estava guardado debaixo dos colchões (nacionais? supranacionais?) porque não foi utilizado antes da pandemia para combater a desigualdade e assim agir, de forma activa e responsável, na profilaxia da mesma?
Perguntas e mais perguntas de resposta incerta. Que não deveriam perturbar profissionais de áreas onde a incerteza está sempre presente como base da sua necessidade de decidir. Os Médicos são um desses grupos pois vivem permanentemente com o óbice da incerteza associado ao dever de bem explicar cada decisão que tomam. Mas os políticos, os intérpretes da Justiça, os diversos trabalhadores sociais e os cientistas também têm de aceitar a incerteza como próprio das suas responsabilidades.
Sendo esse conhecimento e a sua aceitação a condição para que o útil das suas decisões se repercuta sobre todos. Ou então sobre a maioria desde que esta inclua os já deserdados e os novos deserdados, os já marginalizados e os novos marginalizados, enfim, os que não têm voz que se consiga fazer ouvir no ruído cacofónico que a catástrofe normalizou.
As decisões tomadas até agora um pouco por todo o mundo não são boas. E as que defendo também poderão não o ser. Admito mesmo que ninguém saiba com precisão quais são as melhores decisões que este tipo de situação exige. Mas o que quer que seja que se defenda e seja qual for a aparente razoabilidade da argumentação utilizada, se implicar agravamento das condições de vida do tecido social do(s) país(es) tem de ser denunciado como mau e deve pedir-se para que seja modificado.
Andamos “à nora”? Isso é mau. Por isso temos de deixar de andar…