Autor: Jorge Paulino
Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral,
Director do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital da Luz, Lisboa,
Presidente da Direcção do Colégio de Especialidade de Cirurgia Geral.
A tradição clássica deixou-nos a lenda homérica descrita em poema na “Odisseia”, que se refere ao trabalho inacabado e interminável de Penélope, a fiel mulher de Ulisses, o herói que partira para a Guerra de Troia: resistindo aos constantes apelos para voltar a casar, ela convence os pretendentes e o próprio pai, garantindo que só o faria após tecer até ao fim a mortalha do seu sogro.
Simbolismo de um trabalho de grande importância e que sempre se recomeça, este mito intemporal também se aplica a situações permanentemente adiadas como a reforma da Cirurgia de Urgência.
Em 2006, há precisamente 18 anos, o Colégio de Competência em Emergência Médica promoveu em Coimbra uma reunião dedicada ao Trauma e Cirurgia de Emergência, integrando as várias sociedades cirúrgicas nacionais ligadas ao tema. Estabeleceu-se então um consenso quanto à “necessidade de um processo formativo tendente à atribuição pela Ordem dos Médicos (OM) de um título de competência em Cirurgia de Emergência, à semelhança do que já existe noutros países”.
Dando seguimento às conclusões dessa reunião, o Conselho Nacional Executivo da OM decidiu constituir no ano seguinte, em 2007, um grupo de trabalho multidisciplinar a nível nacional, representativo das especialidades cirúrgicas e das associações científicas envolvidas, com vista à formação duma competência em Cirurgia de Emergência.
Foi discutida e aprovada uma detalhada fundamentação, um programa curricular, e também as condições de admissão ao novo Colégio da dita Competência.
Passaram-se seis anos sem nada se decidir, até que em 2013 o Conselho Nacional Executivo, após audição dos Colégios de Especialidade da área cirúrgica, da Competência de Emergência Médica e do Conselho Nacional da Pós-Graduação, deliberou “não atender à proposta apresentada pelo Grupo de Trabalho para a formação específica em Cirurgia de Emergência de criar uma competência em Cirurgia de Emergência”.
Assim sendo, não foi garantido o consenso necessário para o desenvolvimento do processo.
No ano seguinte, em 2014, os Colégios de Especialidade de Cirurgia Geral e de Competência em Emergência Médica ganharam novo fôlego, definindo mais uma proposta de Regulamento para o Grupo de Trabalho visando a Formação em Cirurgia de Emergência.
Cinco anos volvidos, em 2019, o Conselho Nacional da OM aprovou por unanimidade o parecer emitido que então concluía “não existirem condições para que possa ser aceite a criação duma Competência em Cirurgia de Emergência, nos termos em que foi proposta”.
O referido parecer reconhecia que “a Competência em Cirurgia de Emergência apresenta um claro potencial de melhoria no tratamento dos doentes cirúrgicos mais graves”. No entanto, considerava então “não existirem centros de urgência especializados e com grande casuística, em que a formação profissional e a consubstanciação de uma prática clínica desse tipo fosse possível”. Ou seja, fazia depender a aprovação da pretendida Competência da prévia criação duma verdadeira rede de referenciação para os doentes mais graves, que careçam de Cirurgia de Urgência.
Mas concentremo-nos nos motivos que justificaram ao longo das últimas décadas o repensar do modelo clássico da Urgência em Cirurgia. Primeiramente na legitimidade de se encarar a Cirurgia Geral como uma Especialidade, numa era de subespecializações e de referenciação necessária para patologias específicas, quer pela sua complexidade quer pela raridade relativa. Consequência desta realidade surge o fenómeno de se produzirem cada vez mais gerações de especialistas cirurgiões gerais com pouco, ou mesmo nenhum, contacto com a Cirurgia de Urgência.
Estas condições vieram questionar o papel que o cirurgião geral desempenha na chamada urgência geral.
Em 2022 a anterior Direção do Colégio de Especialidade de Cirurgia Geral, conjuntamente com outros elementos dos sucessivos elencos directivos do Colégio de Cirurgia Geral desde 2012, elaborou um extenso documento denominado “Declaração da Terceira” (1). Este trabalho pretende ser “um contributo da Direção do Colégio para as reformas na Saúde em Portugal”.
A reforma desejada para o modelo de urgência vem resumida numa reflexão de 9 páginas. Nela se descreve como os Serviços de Urgência (SU) se tornaram “verdadeiros canibais de Especialistas, impedindo-os de exercer a função para a qual foram treinados”, concluindo que “os quadros dos Serviços de Cirurgia Geral são dimensionados para suprir as necessidades de urgência, não das actividades de rotina”.
Insuficiências várias do Serviço Nacional de Saúde têm “empurrado” os doentes para uma procura exagerada e crescente dos SU, potenciada por uma inexistente educação para a Saúde. Constata-se que os SU são hoje “os filhos de ninguém”, o seu corpo clínico não lhe pertence, desprovido de espírito de equipa, cabendo aos cirurgiões a realização de tarefas fora da sua competência. Tudo isto colidindo com as actividades de rotina, parasitando os restantes serviços assistenciais, roubando tempo precioso que já por si terá de se distribuir pelas indispensáveis folgas compensatórias. Aumentando assim o número de doentes e degradando-se as condições de trabalho nos SU, generaliza-se o cansaço físico e mental dos especialistas, assistindo-se como nunca aos pedidos de dispensa das urgências pelos cirurgiões gerais que chegam à idade em que isso lhes é facultado.
As condições para uma tempestade perfeita foram surgindo nos anos mais recentes, com um maior aumento no afluxo de doentes aos SU por todo o país, condicionando ainda mais os recursos humanos em Cirurgia Geral, obrigados a aumentarem o número de horas extraordinárias para preenchimento das escalas de urgência. Seguiu-se a mais que previsível recusa em prestação de mais horas extraordinárias anuais dadas ao SU, para além das obrigatórias previstas na actual legislação. A consequência imediata foram as sucessivas “engenharias” de renovados horários laborais que permitissem manter as urgências cirúrgicas abertas nos moldes clássicos de sempre. Mas apesar de todos os esforços dos Conselhos de Administração dos hospitais nacionais, muitas urgências cirúrgicas foram ficando desprovidas das condições mínimas de segurança que lhes permitisse um funcionamento regular. O encerramento provisório/definitivo de tantas urgências cirúrgicas, de norte a sul do país, prejudicou vastos sectores da população, que se viram subitamente sem acesso a uma das especialidades fulcrais nos SU.
E que dizer sobre as perspectivas futuras numa especialidade como a Cirurgia Geral? Sem qualquer espécie de dúvida, somos obrigados a concluir que o progressivo desgaste das condições de trabalho nos SU foi, e muito, responsável por afastar jovens talentosos colegas para outras áreas médicas, apesar de sentirem genuína vocação cirúrgica. Temos de ter a sensibilidade necessária à interpretação das escolhas sucessivas dos nossos jovens colegas após realização da Prova Nacional de Acesso, onde todas as especialidades cirúrgicas e quase todas as especialidades médicas são geralmente primeiras escolhas, em detrimento da Cirurgia Geral.
Olhemos para exemplos de planeamento doutros países, onde o fenómeno da transformação da Cirurgia de Urgência/Emergência exigiu reformas semelhantes às que, na minha opinião, serão absolutamente necessárias em Portugal.
Nos Estados Unidos da América assistiu-se entre 1993 e 2013 a um aumento em cerca de 44% no número total de doentes necessitando de cuidados de urgência em todo o país, em contraciclo com um decréscimo de 558 no número total nacional de Serviços de Urgência (2).
Também pela viragem do século, verificou-se uma menor procura nacional pelas vagas de Internato de especialidade de Cirurgia Geral, mais premente em vastos territórios de estados predominantemente rurais. Este facto deveu-se, em grande parte, a uma recusa por parte dos potenciais futuros internos de Cirurgia Geral em aceitar uma disponibilidade acrescida para a urgência, com implicações na qualidade de vida e bem-estar (3).
As maiores deficiências foram registadas no âmbito da Cirurgia de Emergência, que levou a “um novo paradigma na prática cirúrgica”. Pensada desde 2003, e definida curricularmente a partir de 2007, uma nova competência foi reconhecida a nível nacional, englobando uma tríade de actividades clínicas centralizada num mesmo especialista, denominado como “cirurgião de emergência” (“Acute Care Surgeon”, ACS em inglês). As três vertentes versadas na ACS são a Cirurgia do Trauma, os Cuidados Cirúrgicos Críticos e a Cirurgia Geral de Emergência. Como cirurgião de Trauma, Intensivista Cirúrgico e cirurgião geral em cirurgia de urgência, um especialista treinado nesta competência define-se como tendo um potencial mais elevado quer no diagnóstico como na abordagem intra e pós-operatória do doente urgente e crítico, com todas as suas particularidades (4).
A adopção deste modelo tem sido considerada um sucesso na maioria dos estados americanos, tanto no preenchimento da lacuna no tratamento de doentes cirúrgicos urgentes e/ou críticos, como no âmbito do financiamento dos serviços de saúde. Do ponto de vista de treino, passou a ser uma exigência formativa no internato de Cirurgia Geral, que relançou a própria especialidade como uma carreira mais apetecível para os jovens médicos (5).
Este modelo tem começado a ser adoptado noutros países, nomeadamente na Europa, resultando num impacto positivo significativo sobre os resultados em Cirurgia de Trauma (6).
Como noutros países europeus, também em Espanha houve necessidade de se repensar a organização da Cirurgia de Urgência, com a organização da denominada TESU (Trauma and Emergency Surgery Division), reconhecendo-se que o conceito de Cirurgia de Emergência nos moldes da acima definida ACS está implementado de forma sólida e duradoura (7).
A pretensão da criação em Portugal duma Competência de Cirurgia de Emergência foi aprovada no seio da União Europeia dos Médicos Especialistas (UEMS), como entidade transversal às diversas especialidades cirúrgicas (8). Mas, mais do que isso, o projecto nacional viria mais tarde a ser adoptado pela própria UEMS para a criação da Subespecialidade de Cirurgia de Emergência: tiveram, a meu ver, a visão que faltou então à nossa Ordem dos Médicos.
Esta competência justifica-se também devido ao enorme progresso nos cuidados intensivos peri-operatórios, criando mais sobreviventes e novos desafios em áreas como a prevenção e tratamento da falência múltipla de órgãos ou da síndrome de compartimento abdominal, situações que escapam a uma abordagem cirúrgica tradicional baseada em órgãos específicos. Abordagens inovadoras e específicas da Cirurgia de Emergência, onde se inclui, a título de exemplo, as técnicas de controle de dano, vêm criar novos desafios, como o encerramento abdominal deferido, que por sua vez estimulam avanços significativos noutras competências da especialidade de Cirurgia Geral electiva, como é o caso da Cirurgia da Parede Abdominal Complexa.
A multiplicidade de lesões possíveis, torna por vezes obrigatória a conjugação de recursos a várias especialidades cirúrgicas, tornando indispensável o comando duma equipa por um cirurgião que defina prioridades, escalonando as intervenções.
Não é de todo clara a argumentação que tem reprovado as sucessivas iniciativas para a implementação da Competência de Cirurgia de Emergência. Tem sido referida a desaprovação por parte de vários Colégios de Especialidade, que não o de Cirurgia Geral, temendo eventualmente que a Cirurgia de Emergência se possa imiscuir em competências que não lhe digam directamente respeito, retirando-lhes protagonismo em áreas de patologia dita “de fronteira”. A meu ver, tal visão não representa mais do que um anacronismo sem sentido, que prejudica os próprios doentes, privados dos benefícios de tantas terapêuticas contemporâneas e inovadoras.
Argumentos distintos também têm sido invocados para justificar a inoportunidade da iniciativa para a Cirurgia de Emergência: a inexistência duma rede de referenciação de doentes graves, bem como de centros especializados com casuística suficiente, que permitam formação profissional e uma prática clínica deste tipo.
E, no entanto, negando sucessivamente a legitimidade desta iniciativa com mais de 18 anos, jamais se alcançarão os objectivos proclamados para a Cirurgia de Emergência, apesar dos mesmos já terem sido reconhecidos como “um claro potencial de melhoria no tratamento dos doentes cirúrgicos mais graves”.
E assim prossegue a saga da Cirurgia de Urgência em Portugal, perpetuando SUs de funcionamento intermitente, funcionando inúmeras vezes no limite da segurança, à custa de tarefeiros que nada têm de ligação aos Serviços de Cirurgia, “canibalizando” os seus recursos humanos em detrimento da actividade electiva, prejudicando doentes mais e menos graves, privando extensos sectores da população do acesso a uma das especialidades fulcrais de qualquer urgência externa.
É mais que oportuno promover agora, e de novo, um debate amplo sobre a necessidade de implementação da Competência de Cirurgia de Urgência/Emergência no nosso país, por ocasião da realização em Lisboa do Congresso Europeu de Trauma e Cirurgia de Emergência (ECTES 2024), em Abril de 2024. Este evento irá celebrar 25 anos dum longo percurso, que se iniciou com a vinda do ATLS (Advanced Trauma Life Support) para Portugal.
Esse passo será, a meu ver, decisivo para a reforma da Cirurgia de Urgência no nosso país. Nos últimos 18 anos nunca foi tão premente debater séria e exaustivamente o paradigma mais favorável para se abordar a Cirurgia de Urgência a partir de agora, renovando o modelo obsoleto ainda em vigor.
Extrapolando o nosso debate para a mitologia grega, recordemos que a bela Penélope prosseguia exaustivamente o trabalho no seu tear, sério e interminável, que assim continuava pelo simples facto de todas as noites se concentrar em desfazer toda a actividade que executava durante o dia, ganhando tempo num sucessivo processo sem fim.
Só que esses tempos descritos por Homero, duraram os longos anos da Guerra de Troia. Quase tantos como os 18 anos de espera, sem que nada se deliberasse quanto à iniciativa para a reforma da Cirurgia de Urgência, esgrimindo argumentos inconsistentes, ou mesmo inexistentes, como se de noite se fossem desfazendo os avanços alcançados de dia. Não ganhando, mas sim, perdendo, esse tempo que vai fluindo, atirando uma decisão para “as calendas gregas” …
Março de 2024
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Bibliografia:
- A Cirurgia e o cirurgião do século XXI: contributo da Direção do Colégio de Cirurgia Geralda Ordem dos Médicos para as reformas na Saúde em Portugal. “Declaração da Terceira”, Direcção do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral, 2022
- Burlew CC, Davis KA, Fildes JJ, Esposito TJ, Dente CJ, Jurkovich GJ. Acute Care Surgery Fellowship Graduates’ Practice Patterns: The Additional Training Is an Asset. J Trauma Acute Care Surg. 2016.
- Polk HC Jr, Vitale DS, Qadan M. The very busy urban surgeon: another face of the evermore obvious shortage of general surgeons. J Am Coll Surg. 2009;209:144 –147
- Jurkovich, GJ, 2023. The Acute Care Surgery Initiative. Medical Research Archives (online) 11(7.1)
- Ali Y, Davis K, Chiu W, et al. Contributions of Surgical Critical Care Program Directors Society to the training of surgeons. J Trauma Acute Care Surg. 2023; 94 (4): e29-e32
- Uranues S, Lamont E, Acute Care Surgery: The European Model. World J Surg (2008) 32:1605-1612
- Aranda-Narvaeáz JM, Tallón-Aguilar L, López-Ruiz JA, Pareja-Ciuro ́ F, Jover-Navalón JM, Turégano-Fuentes F, et al. El modelo Acute Care Surgery en el mundo y la necesidad e implantación de unidades de trauma y cirugıa de urgencia en Españ Cir Esp. 2019;97:3–10
- UEMS Section of Surgery, https://uemssurg.org/surgicalspecialties/emergency-surgery/