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Código Deontológico dos Médicos

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

O Código Deontológico está em revisão. Excelente. Mas ainda mais excelente é esta ser uma
ocasião óptima, quiçá única, para se dar mais um passo exemplar na habitual contribuição dos
Médicos para defender, sempre, a democracia que nos permitiu chegar ao nosso magnífico serviço
público de saúde. Abrangente, disponível e altamente competente.
Parabéns aos portugueses.
Tão exemplar que até nesta fase da vida colectiva em que dizer mal por dizer mal se tornou
normalidade os cuidados assistenciais se mantêm, a sobrecarga sobre quem trabalha em serviços
de prestação de cuidados clínicos não impede esses cuidados e a boa vontade continua a ser
critério de resiliência para quem quer fazer bem apesar de tudo que é comentário ou notícia
pretender anular, desvalorizar, menorizar o que temos de melhor como fruto da democracia. E que
continua a melhorar ainda que por caminho difícil. De facto, nem sempre se faz o óptimo por
dificuldades várias mas nunca se deixa de o tentar. A procura de cuidados continua, a desconfiança
criada mediaticamente não afasta o doente do local onde sabe que será bem tratado, o trabalho
continua, seja bem ou mal valorizado politicamente.
Este é um valor que os Médicos têm como identidade e que o Código Deontológico bem define.
Mas esta é a hora de dar um passo bem maior quer no Código quer na prática de defesa do SNS.
Vivemos um tempo em que a desigualdade social parece impossível de evitar e em que os bons e
maus nem sempre são quem parece. Mas que há bons que a querem reduzir e maus que a
pretendem acentuar não há qualquer tipo de dúvida.
Por isso é preciso reagir (ontem) com modificação dos vários modelos clássicos de defesa de
direitos e deveres, que foram úteis em sua época, mas precisam hoje de ser adequados ao actual
novo tempo (que nos parece tão diferente mas, receio, não o será socialmente se comparado com
o tempo que se viveu entre as duas grandes guerras e cuja memória se quer apagar), às novas
formas de afastamento entre quem tem poder e quem não tem, aos novos objectivos que o direito
ao trabalho nos impõe, à nova normalidade da perda de confiança nos princípios igualitários e
solidários da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A perda de relevância social da sociedade civil, do conjunto de todos os cidadãos que cada um de
nós é individualmente, tem sido promovida pelos detractores da democracia segmentando em
fracções cada vez mais reduzidas, ou mais especializadas, as representações de trabalhadores,
impondo o diálogo apenas com partes destas e estruturando-o com a criação de divergências e ou
conflitos de seu interesse e contrários aos interesses dos que aceitam esta norma, submetendo-se,
de facto, à ditadura dessa forma de poder. Reduzindo também a capacidade de intervenção social,
política, de opinião, de grupos de interesses, das associações, também estas muito fragmentadas,
de organizações que procurem trabalhar fora dos limites tidos como aceitáveis não pelo direito
mas pelo interesse, até securitário, das mesmas estruturas de poder.
Mas a democracia só existe com um Estado com poder para criar o bem-estar colectivo, com regras
precisas publicamente discutidas e aceites, mesmo que polémicas e com uma imagem de

respeitabilidade (e confiança) que, se se perder, anula o direito a esse poder. E com uma sociedade
civil corajosa, determinada na defesa dos seus direitos e, fundamentalmente, solidária entre si.
Que saiba perceber que por maiores que sejam as suas divergências nunca serão relevantes o
bastante para nos distrair de vigiar o Estado e muito especialmente os que o usam como protector
de benefícios e vantagens e cujas faces estão quase sempre ocultas. O Estado de direito que é a
democracia impõe-nos essa vigilância exactamente como nos impõe o respeito e apoio ao próprio
Estado quando este se comporta como é seu dever.
É por isso adequado falar sobre algumas novas formas de afirmar valores deontológicos. Por
exemplo é o momento para terminar o ridículo (1) de termos dois sindicatos médicos cujos
interesses não podem ser diferentes mas cuja representatividade dual é um sinal de fragilidade que
será “sempre” usada contra nós por quem nisso vir vantagem; (2) de continuarmos a defender os
nossos direitos separadamente da luta pelos seus dos Enfermeiros cuja representatividade também
se esboroa em múltiplas organizações; (3) de acreditarmos que os Médicos podem organizar-se
sem que os Auxiliares, os Farmacêuticos, os Administrativos, os muitos outros diferentes
profissionais dos serviços de saúde sejam “por nós” apoiados nas suas lutas particulares pela
conquista de direitos.
Não podemos continuar a ver como deontologicamente correcto que quem dedica a sua vida a
ajudar quem sofre deve fazer pela vida “como puder” deixando que cada um puxe o barco de
acordo com os seus interesses pretendidamente tidos como específicos: é deontologicamente
errado acreditar que os Médicos devem ter salários ao nível dos magistrados e que os Auxiliares
que estão com os doentes, que nos avisam directa ou indirectamente de pormenores
potencialmente relevantes, ou que os administrativos que ordenam processos e dão continuidade
a decisões que iniciámos têm um direito menor que o nosso, ou independente do nosso. Não é
assim: o direito é o mesmo ainda que o salário seja menor e variado segundo competências,
experiências, nível de formação e tipo de diferenciação. Mas será “só” menor com inequívoca
dignidade que lhes permita comer, ter espaço de residência, ser tratados na doença e na
senescência, ser educados e educarem os seus filhos e fruírem ludicamente a vida. Por isso nunca
poderão, neste mundo em transformação para algo que parece já ter existido, ficar esquecidos por
nós e isolados na sua luta particular pela conquista de direitos.
O que estou a afirmar é que se cada grupo de profissionais se entregar a uma luta por melhores
condições de vida esquecendo os que ao seu lado trabalham com competências diferentes e
menores poderes negociais apenas conseguirão vitórias de Pirro. Obterão menos do que merecem;
serão adversários dos seus verdadeiros companheiros de percurso; serão sempre mais e mais
secundarizados em relação aos verdadeiros privilegiados que sorrirão satisfeitos por, como agora o
fazem, continuarem a controlar todos.
“Apenas” porque estes todos não são capazes de perceber que “só” pela partilha de interesses,
pela defesa de direitos diversificados em valor mas defendidos num mesmo combate ganharão
autonomia, capacidade de criar futuro feliz e pacífico e, quiçá, evitar que após tanto tempo vivido
em democracia passemos a um novo tempo, a uma nova forma de escravidão.
A Ordem dos Médicos está a rever o Código Deontológico e não tem o direito de se esquecer que o
âmbito deste já não é um problema dos Médicos. É um problema da Medicina, da Saúde, da
Política (sim, com maiúscula), da Solidariedade e inter-relação, e da interdependência entre todos
os que se dedicam a cuidar de quem sofre. O Código não o pode ignorar.

Porquanto, logo a seguir, a luta pelos direitos de todos estes também tem de ser solidária com a de
outros que nada ou pouco terão que ver com assistência no sofrimento. É preciso gritar bem alto
que quanto mais poderosos forem os movimentos de defesa dos direitos sociais, em número de
membros e nas demonstrações de cooperação permanente, mais fácil será continuarmos a viver
em democracia.

(Nota breve: muitos residentes em grandes edifícios julgam que a sua zona de responsabilidade se
inicia na porta de entrada do apartamento. Estão enganados: inicia-se no portão de acesso à rua,
no bairro, na localidade onde vivem. Muitos membros de organizações, como sindicatos e
similares, julgam que estas servem para defenderem os seus interesses ou os dos seus associados.
Estão enganados: servem para defender pessoas, membros ou não do grupo, com interesses
comuns mas sem, ou com pouca, capacidade para serem ouvidos pelos mandantes. Muitos
deputados julgam que a sua função é defender o que o partido porque foram eleitos lhes impõe.
Estão enganados: mesmo que em Portugal não existam círculos eleitorais individuais cada cidadão
vota com a esperança de que os nomes da lista partidária que escolhe sejam delegados no
Parlamento dos seus anseios, da sua visão do mundo, da sua pequena participação na construção
de um futuro melhor para todos.)