Autor: Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos
Este artigo foi originalmente publicado no Jornal I, podendo ser consultado aqui.
O momento atual
A desmotivação, as dificuldades de captação e fixação no SNS, num círculo vicioso imparável, resultam em saída de profissionais para o setor privado, social, em emigração ou até em abandono da profissão médica.
Vivemos momentos delicados no setor da Saúde e no Serviço Nacional de Saúde (SNS) em particular. Fatores internos, mas sobretudo externos, causam impactos profundamente negativos na resposta do setor público que se agudizaram com os choques de crises económica, financeira e de saúde pública com a pandemia COVID-19. O impacto social tem sido avassalador.
A verdade é que estamos a atravessar mais uma fase difícil do SNS, quer devido à escassez de recursos humanos, técnicos, financeiros e de infraestruturas obsoletas e depauperadas, quer ao nível da organização e do modelo de gestão. O mais grave, a meu ver, é a desigualdade no acesso aos cuidados de saúde em que existem não só diversos modelos de estruturação e gestão como desigualdades regionais inadmissíveis. Os cerca de 1,4 milhões de portugueses sem Médico de Família residem, maioritariamente, na área de Lisboa, Alentejo e Algarve, o que acaba por ter um grave impacto sobre os Serviços de Urgências que assim se tornam incapazes de responderem a todas as solicitações. Cada vez mais, a necessidade de ter cuidados de saúde em Portugal, independentemente da sua natureza, afunila nos Serviços de Urgência abertos 24h por dia para qualquer problema de saúde. Nenhum país do mundo resiste a este grau extremo de “urgencialização” de todo o sistema.
A desmotivação, as dificuldades de captação e fixação no SNS, num círculo vicioso imparável, resultam em saída de profissionais para o setor privado, social, em emigração ou até em abandono da profissão médica.
O papel da Ordem dos Médicos, sobretudo neste contexto, é fulcral na procura de soluções consistentes e estruturantes, em colaboração com os vários intervenientes no setor da Saúde.
Mas, a meu ver, há que acautelar outras circunstâncias e não adotar sistematicamente o aumento da estrutura física da Urgência como a solução para a sobreutilização das urgências hospitalares.
A criação de mega-serviços de urgência não resolverá nem a falta de recursos humanos, nem o excesso da afluência de doentes com motivos não-urgentes.
Bem pelo contrário…
A resposta não está na Urgência, mas fora dela.
A falta de alternativas para as situações menos graves, a dificuldade de acesso aos cuidados de saúde primários ou às consultas de ambulatório dos hospitais faz com que a população opte pela urgência hospitalar. Por outro lado, a falta de uma rede de apoio social também contribui para o número expressivo de episódios de urgência em Portugal. O diagnóstico está estabelecido há muito tempo. Demasiado tempo.
Os problemas dos Serviços de Urgências são a face mais visível de um problema de fundo do SNS.
A criação de uma rede de intervenção social é prioritária. A melhoria da literacia em Saúde, o aprofundamento nas áreas tecnológicas e digitais na informação e comunicação são também um caminho essencial de futuro. A modernização dos serviços de Saúde é essencial sem nunca esquecer a humanização dos cuidados.
Nunca haverá investimento financeiro suficiente de qualquer Orçamento do Estado, caso se perpetue esta gestão ineficiente e o receio de mudanças profundas, mas necessárias.
A Ordem dos Médicos assumirá o seu papel na busca de soluções que compatibilizem a necessidade de dignificar a profissão médica, a revisão da carreira médica e o melhor interesse dos doentes.
Reaprendemos com a pandemia o real e profundo valor da solidariedade, da entreajuda e do envolvimento de todos os setores da sociedade nos problemas da Saúde.
O momento atual impõe coragem e capacidade de agregar. Só falta o Ministério da Saúde desempenhar esse papel.