A pandemia que enfrentamos há dois anos surtiu consequências diretas no acesso aos cuidados de saúde, sendo a área oncológica uma das mais afetadas a todos os níveis, desde o cancelamento de consultas e rastreios, até ao adiamento de tratamentos. Este foi assim o principal mote da conferência virtual “Impacto da Covid-19 no diagnóstico e no tratamento do cancro” – em antecipação ao Dia Mundial da Luta Contra o Cancro – que decorreu no passado dia 2 de fevereiro, e que contou com o bastonário da Ordem dos Médicos como um dos convidados do painel. No evento, Miguel Guimarães destacou a urgência de aumentar o acesso aos rastreios que ficaram por fazer durante a pandemia, mas alertou que só isso não é suficiente, e que faz falta toda uma modernização do SNS.
Este é já o quinto webinar organizado pelo jornal Público, em parceria com a MSD Portugal, integrada na iniciativa “Uma agenda para o cancro: Por todos nós, para todos nós”, que tem contado com a participação de stakeholders estratégicos na área da Oncologia – médicos, decisores políticos e representantes da sociedade civil – com transmissão em direto no site do jornal.
O debate, moderado pela jornalista Cláudia Pinto, contou com a participação de quatro oradores que debateram temas como o atual impacto da pandemia na referenciação e tratamento do cancro, a falta de diagnósticos, entre outros.
Gabriela Sousa, oncologista e diretora do serviço de Oncologia Médica do IPO de Coimbra, iniciou o debate afirmando que a pandemia teve um grande impacto nos doentes, mas também nos profissionais de saúde. No entanto, tendo em conta a sua experiência, afirmou que a primeira fase da pandemia não foi a mais grave para os doentes oncológicos, uma vez que foram mantidos todos os recursos no IPO, tendo sido até possível receber doentes oncológicos provenientes da Figueira da Foz, zona onde a pandemia teve grande impacto numa fase inicial. Com o desenrolar da pandemia, a prioridade do IPO foi “preservar os doentes de ir ao hospital”, sem que fosse absolutamente necessário, alargar a “periocidade dos tratamentos”. “Relativamente, ao impacto [da pandemia] no atraso e demarcação de tratamentos, na realidade do IPO, não aconteceu por necessidade da estrutura. A nossa preocupação foi termos profissionais que garantissem a continuidade de cuidados”, disse, mas reconhecendo que passaram por “fases muito difíceis com pouca gente a trabalhar e a garantir apenas a atividade considerada inadiável, ou seja, todos os doentes oncológicos em tratamento”.
Seguiu-se Teresa Almodôvar, presidente do Grupo de Estudos do Cancro do Pulmão, que corroborou a visão de Gabriela Sousa, referindo-se no seu caso ao IPO de Lisboa, mas ressaltou que, todavia, a sua visão é mais centrada no cancro do pulmão. A oradora acredita que as várias fases da pandemia impactaram com diferentes níveis de intensidade, contudo o cancro do pulmão foi um dos mais negligenciados já que o seu diagnóstico, na maioria das vezes, surge na área da pneumologia e quase todos os hospitais gerais “alocaram os nossos colegas [pneumologistas] no tratamento dos doentes Covid”. Acrescentou, ainda, que “nos grandes serviços de pneumologia e nos hospitais não centrais, [a pandemia] afetou, profundamente, a trajetória do doente dentro do hospital, uma vez que havia muito menos médicos para fazer essa atividade”.
Nesse sentido, “os doentes foram diagnosticados mais tarde (…) e isso vai repercutir-se na capacidade de resposta de tratamento a estes doentes”, reforçando que a “resposta [aos doentes oncológicos] não foi interrompida, mas foi diminuída”. Por último, referiu que os diagnósticos se tornaram muito menos práticos, tendo em conta todas as medidas de segurança que têm de ser tomadas para a realização de um rastreio, que “baixaram para metade os diagnósticos que podiam ser feitos num dia”, já que as medidas de segurança alargam muito o tempo de espera entre os exames.
Miriam Brice deu o seu contributo ao debate afastando-se dos dados científicos e introduzindo uma dimensão mais humana à discussão, como a própria faz questão de enunciar. A presidente da Associação Careca Power indica que “numa fase inicial, a COVID-19 assustava muito os doentes”, dando destaque aos doentes com cancro do pulmão uma vez também atinge o sistema respiratório. Contudo, conforme a pandemia se foi desenvolvendo, “o que assustava, verdadeiramente, o doente era não conseguir progredir com os tratamentos”. Acrescentou também que, do ponto de vista da associação, “o doente que estava em tratamento, não deixou de ir ao tratamento ou à cirurgia por medo da COVID-19.” Concluiu dizendo que no que toca a “consultas, cirurgias e tratamentos, ou seja, o que é, verdadeiramente, urgente” nada foi alterado ou adiado, tirando na fase inicial da pandemia. O problema, reconheceu, está sim no diagnóstico mais tardio.
O painel de oradores ficou completo com a participação do bastonário da Ordem dos Médicos. Miguel Guimarães que iniciou o seu contributo referindo que houve atrasos em todas as áreas no início da pandemia, mas após esse período as funcionalidades foram retomadas, exceto nos cuidados de saúde primários. Sobre isso, o representante dos médicos relembrou que a Ordem “já fez várias sugestões no que toca ao acompanhamento a doentes Covid assintomáticos ou com sintomatologia leve”, tendo em vista a libertação dos médicos de família destas tarefas.
No que toca ao tema central do debate, Miguel Guimarães referiu que “os diagnósticos caíram porque as pessoas deixaram de dar entrada nos hospitais”, e deixou o alerta: “como é que vamos recuperar os doentes que ficaram para trás? (…) segundo a Ministra da Saúde, em 2021 já se fez tantas consultas e cirurgias como no ano pré-pandémico, contudo os doentes que foram negligenciados durante o ano de 2020 ainda não tiveram a resposta necessária. Neste momento existem pessoas que têm um cancro em evolução (…) e não sabem que o têm.”
Para o bastonário da Ordem dos Médicos é urgente que se faça uma expansão do rastreio que era habitualmente realizado, aumentando os números. Porém, acrescentou que esta expansão só é possível através de uma transformação do Serviço Nacional de Saúde – “Não podemos ter um serviço público de saúde que funciona como há 42 anos. (…) Temos que melhorar as formas como são feitas as contratações de pessoas, aumentar a autonomia que os hospitais têm para tomar decisões, bem como a flexibilidade que é fundamental existir na gestão, para se obter respostas mais rápidas às necessidades dos doentes.”
Ainda no âmbito da transformação do SNS, o bastonário adicionou que é importantíssimo “modernizar o SNS, tornando-o mais competitivo porque tem a capacidade para o ser. Temos uma rede muitíssimo boa, com hospitais distribuídos por todo o país, bem como centros de saúde e farmácias”. Portanto, temos de atualizar o funcionamento do SNS para que este prospere e continue a superar os desafios que a saúde exige, reforçou.