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Abertura de Curso de Medicina na Privada – uma “solução” envenenada

Autor: Filipe Cabral, Médico Interno do 3º ano de Medicina Geral e Familiar na USF Marco (ACeS Baixo Tâmega I)

 

Não julgue um artigo pelo título, assim como não julga, ou pelo menos não deve julgar, um livro pela capa. Quero com isto dizer para não me interpretarem mal e não tirarem conclusões precipitadas acerca da opinião que detenho sobre este tema. Todavia, não encontrei melhor forma para descrever aquilo que senti após o anúncio da abertura do Curso de Medicina da Universidade Católica Portuguesa.

Antes de juízos de valor vamos a factos. Se estou contra a abertura do referido curso? Sim! Se isso se deve ao facto de se tratar de um curso numa instituição privada? Não!

Mais importante do que discutir se será este um curso para “meninos ricos” e/ou pessoas com classificações académicas mais baixas (não necessariamente correlacionado com piores profissionais), é perceber o impacto que tal decisão terá a médio-longo prazo na qualidade do Sistema Nacional de Saúde (SNS).  É exatamente neste ponto que assenta a minha apreciação e a de muitos colegas médicos (mas não só).

Enganam-se todos aqueles que pensam que o fazemos de um jeito corporativista e protetor de um determinado status quo. Ou pior. Que o fazemos para “continuarmos” a enriquecer à custa da saúde dos portugueses. Vou tentar contrapor essas ideologias previamente formatadas e já enraizadas com alguma evidência.

A abertura deste curso, na minha opinião, em pouco difere da tentativa falhada de aumentar o numerus clausus em algumas escolas médicas já existentes, realizada há poucos meses. Efetivamente, justamente no momento em que todos reconhecem que o SNS apresentou uma resiliência notável no combate à pandemia provocada pela COVID-19 e numa fase em que as faculdades de medicina, pelo mesmo motivo, foram obrigadas a alterar a metodologia de ensino (o que obviamente comprometeu a qualidade do mesmo), podemos concluir que caso tal medida tivesse sido implantada esse comprometimento teria sido ainda mais notório.

Já em 2010, quando entrei na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, éramos demasiados! Éramos demasiados para as salas de aula que tínhamos; éramos demasiados quando nos tínhamos de “atropelar” para conseguirmos ver alguma coisa nas aulas de anatomia ou neuroanatomia (a maioria apenas ousava imaginar que estava a ver algo com base no que havia estudado); éramos demasiados quando íamos realizar histórias clínicas e avaliar doentes ao internamento ou quando em consultas já de si constrangedoras para os doentes (como consultas do foro da ginecologia ou urologia), estes eram observados e “palpados” por vários alunos; éramos demasiados para o número e tamanho dos gabinetes de consulta, literalmente fisicamente impossível (algo que, certamente, nas circunstâncias atuais, não melhorou, nem irá, pelo menos tão cedo, melhorar).

As escolas médicas estão a formar um número de estudantes muito acima das suas capacidades. A maioria delas reconhece estar exauridas e que, fruto do aumento do número de estudantes (mas não só), a qualidade do ensino médico em Portugal começa a ser seriamente questionada.

Ao contrário do que alguns pensam e defendem, existem valores que não se ensinam através de modelos, simuladores ou atores. A ética, a compaixão, a capacidade de se colocar no lugar do outro são exemplos disso mesmo. E se é verdade que uma grande parte desses valores são intrínsecos/inatos a cada indivíduo (e que por isso não é necessário que o mesmo seja brilhante em termos académicos), também não é menos verdade que o exemplo quotidiano de outros profissionais (tutores, professores, como quiserem chamar), desempenha uma importante cota parte no desenvolvimento e aprimoramento destas mesmas capacidades.

Nesse contexto, refutarão alguns de vocês, a abertura de um curso de medicina numa outra instituição, seja ela pública ou privada, não poderia colmatar esta lacuna? Talvez. Desde que assegurado um processo de ensino e aprendizagem com qualidade. Porém, o problema é muito mais complexo que isto.

Em primeiro lugar, ao contrário do vulgarmente noticiado, não existe falta de médicos em Portugal. Os dados são claros. Segundo o PORDATA1 e tendo por base os dados mais recentes que datam de 2018, Portugal é o 3.º país da OCDE com mais profissionais de medicina por 100000 habitantes. O que existe sim (e não confundamos os conceitos), é um défice de médicos no SNS (dos cerca de 55 mil inscritos só cerca de 29 mil, pouco mais de metade, o integra).

Muitas são as razões para que isso aconteça e também muitas são as críticas apontadas a quem toma esta opção, sendo a vertente economicista de longe a mais comummente apontada. Não me querendo alongar muito, até porque não é o objetivo deste artigo, gostaria apenas de saber, sinceramente, se quem apregoa isto, vendo-se na possibilidade de poder trabalhar em condições mais dignas e de melhor qualidade, com mais tempo para ver os doentes, com horários mais adequados e salários mais justos também não o faria ou, pelo menos, não ponderava fazer.

Portanto, médicos em Portugal existem. É preciso é contratá-los. É preciso é combater a péssima distribuição existente a nível nacional e a péssima gestão governamental no que concerne à criação de condições de trabalho atrativas e justas para todos.

Em segundo lugar e, porventura, aquilo que mais facilmente passa despercebido à maioria das pessoas (até porque não é noticiado), o facto de aumentarmos o número de mestres em medicina sem aumentarmos concomitantemente o número de vagas para o Internato de Formação Específica (IFE) não é, de modo algum, a solução ou sequer uma solução. Vejamos porquê.

O processo de formação de um médico estende-se muito além dos 6 anos de mestrado. Após este período, segue-se uma fase de formação médica pós-graduada que engloba um ano de “Formação Geral” e um período designado por IFE (variável entre 4 e 6 anos) que conduz à obtenção da especialidade. Isto significa que, no mínimo, a formação de um médico diferenciado varia entre 11 e 13 anos.

O cerne do problema reside justamente no facto do número de vagas para acesso a esse IFE se manter estável e claramente abaixo do número de mestres em medicina a que elas concorrem, levando a que todos os anos, muitos deles, não tenham oportunidade de concluir a sua formação. Por conseguinte, duplicar ou triplicar o numerus clausus ou o número de faculdades médicas (privadas ou públicas), não se traduzirá em mais médicos de família, em mais especialistas hospitalares, em mais e melhores cuidados de saúde. Não! Tal apenas servirá para engrossar o número de médicos indiferenciados, sem saída profissional que não a emigração ou a contratação por empresas de fornecimento de serviços indiferenciados, o que obviamente coloca em sério risco o SNS, a qualidade da formação médica e a qualidade da prestação de cuidados à população.  Tal apenas contribuirá para a descaracterização duma profissão que se quer regida sempre pelos mais elevados padrões.

Mais importante do que formar mais médicos é assegurar que todos têm formação especializada, venham eles de instituições públicas ou privadas.

 

Bibliografia:

  1. pt. 2018. PORDATA – Médicos Por 100 Mil Habitantes. [online] Available at: <https://www.pordata.pt/Europa/M%c3%a9dicos+por+100+mil+habitantes-1926> [Accessed 4 September 2020].