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Viver em democracia é bom

Autor: M. M. Camilo Sequeira, Médico aposentado

A Democracia poderá ser uma forma de governar imperfeita porque considera que todas as opiniões, mesmo as que a desconsideram, merecem exprimir-se livremente e porque reconhece a qualquer cidadão exactamente a mesma competência na escolha dos seus dirigentes, de todos eles, segundo o princípio “uma cabeça um voto”. Estas regras são o normativo que todos os democratas consideram basilar para que o sistema funcione.

Apesar de, quiçá muitos, acreditarem que se a democracia protege melhor a sociedade que quaisquer dos outros sistemas, deveria ser seu normal impedir quem se exprima contra ela de o fazer, de ter opinião social válida. Mas os democratas sabem que defender esta norma é contraditório com a sua condição. Acreditam que fazê-lo seria justificar para qualquer terceiro a falta de qualidade do sistema de governação que defendem, provava que não tinham competência e ou capacidade para mostrar os seus merecimentos e era suficiente para se dizer que o sistema só subsiste se impedir a livre participação no seu seio da actividade antidemocrática. Dito de outra forma provava que o sistema democrático, para os democratas, era uma forma fracassada de governar.

E também sabem que há diferenças entre o mérito relativo dos cidadãos na apreciação crítica dos programas partidários que são o suporte do sistema. Há gente inculta, ignorante, desinformada, sem hábito de criticar para além do seu umbigo, sem saber histórico, cujo voto tem o mesmo valor dos que vivem preocupados com o interesse colectivo, que se informam sobre os projectos partidários, se confrontam com a História e sabem reflectir para lá do seu interesse pessoal mais ou menos imediatista. Mas reconhecer esta evidência não pode significar que os cidadãos sejam classificados como de primeira, de segunda ou de terceira classe. A ideia, o conceito, o exercício prático da democracia tem como seu próprio a convicção de que o grande número de pessoas que votam dilui as aparentes incongruências do sistema e que, ainda que mais lentamente do que desejam, o viver em democracia e o viver “a democracia” anulará o risco da manipulação antidemocrática.

Quem acredita na democracia pode pensar nestas questões, que parecem marcas de fragilidade porque contraditórias, mas não as consideram relevantes face à imensidade de outras questões de maior interesse para a criação de bem-estar para todos, até dos antidemocratas. Os que não hesitam em usar a liberdade da democracia para contraporem elites e povo falseando o complementar de uns e outros e acentuando o que descrevem como favor daquelas à custa do sacrifício deste. Este argumento é, por si só, um programa político. Pois embora se dirija a toda a comunidade orienta-se principalmente para os menos críticos e ou menos cultos procurando o seu apoio para os projectos sociais com que pretendem destruir essa mesma democracia: o sistema que lhes permite beneficiar das suas vantagens de abertura a todos “até” para promoverem um modelo alternativo de governação onde apenas a sua opinião tem validade e onde os desejos bem ou mal precisados dos seus “apoiantes do povo” serão severamente reprimidos se afrontarem o poder dessas novas elites que se têm como impolutas.

Desigualdade

A governação democrática tem sido sistematicamente, demasiadas vezes com alguma razão, apontada como geradora de corrupção, nepotismo e favorecimento de amigos, formação de uma espécie de cartéis com acesso privilegiado ao poder, assim agravando a desigualdade social. Esta verdade no entanto está muito longe de ser o que os detractores do sistema afirmam.

Há mais desigualdade hoje do que há 150 anos? Sim, há! Há mais desigualdade do que há 100 anos? Sim, há! No entanto esta verdade é uma espécie de falsidade.

Expliquemos. (Vou usar números simbólicos para melhor apoiar a argumentação que julgo adequada e que correspondem à minha interpretação das múltiplas estatísticas que tenho lido sobre o assunto).

Há 150 anos o planeta era habitado por uma população paupérrima. Cerca de 90% desta apenas tinha de seu “zero”. Não tinham comida garantida, não tinham dinheiro, não tinham segurança, não tinham quaisquer direitos sociais. Havia uma outra franja populacional, talvez 10%, onde se encontravam os que conseguiam gerir o seu quotidiano com alguma capacidade de sobrevivência estruturada encontrando-se, no extremo favorecido deste grupo, os grandes possuidores de bens e pessoas que teriam, quiçá, 10000 vezes mais que os 90% que nada tinham A desigualdade social era e foi assim durante milénios, brutal (é a palavra que me parece mais adequada).

Mas hoje temos uma sociedade planetária onde quase ninguém tem zero de valor económico e onde os estratos mais prejudicados terão, digamos, 5 a 10 de valor. Admito que vivam neste limiar tão baixo 50% da população mundial actual o que, sendo dramático, não é o zero dos 90% de há pouco mais de um século. Devendo-se salientar, porque é relevante, que o valor 5 hoje é muito mais que no tempo de antanho. Porque com a quantidade e diversidade de oferta de alimentos, bens e serviços, os seus preços baixaram tornando-os muito mais acessíveis.

Vivendo melhor que estes 50% da população devemos ter hoje talvez 40% que pode ser identificada com o conceito de classe média e que sobrevive de maneira aceitável, uns melhor outros pior e nalguns países menos bem que noutros, fruindo muitos prazeres que estavam fora do alcance dos seus equivalentes 40% no passado próximo. Que, recordo, integravam o grupo que tinha zero. Nos 10% restantes encontram-se os grandes predadores sociais que quanto mais próximos estiverem do topo desta lista de valor mais afastados estão dos seus concidadãos. Terão, quiçá, 100000 que, comparados com os 5 ou 10 dos que têm menos confirmam a absurda dimensão actual da desigualdade social. Por isso é verdade que existe uma desigualdade totalmente inaceitável num mundo onde todos deviam ter condição económica para serem felizes e terem todas as necessidades, básicas e de lazer, satisfeitas. A desigualdade é de 5 para 100000, de facto muito superior há de 100 anos atrás em que seria de 0 a 10000.

Mas foi com a criação desta desigualdade inaceitável que se conseguiu chegar aonde estamos: num mundo muito melhor em condições sociais que o dos nossos antepassados de há tão pouco tempo atrás. Apesar da corrupção, do nepotismo e do favorecimento de amigos, da formação de uma espécie de cartéis com acesso privilegiado ao poder, desta brutal acentuação da desigualdade, vivemos hoje muito melhor que no tempo de menor desigualdade “onde o poder não era democrático”.

Hoje as elites têm uma situação financeira muitíssimo melhorada em relação ao tempo anterior (em que muitos deles também seriam elite privilegiada) mas mais relevante que este contexto é sabermos que são os que nada tinham, 90% da população, que têm actualmente algum valor: O qual, apesar de pouco em relação ao que deviam ter, é muito se comparado com esse passado próximo. Também esta franja da população beneficiou muito com as mudanças de governação, com o fim das autocracias, das ditaduras e com o aumento progressivo do número de países que escolheram viver em democracia apesar dos seus defeitos e convivendo com eles sem medo. Mormente porque outro mérito, um enormíssimo mérito, da democracia é que protege quem denuncia os seus erros, ajuda essa denúncia em nome da sua identidade e procura, umas vezes bem outras nem por isso, corrigir esses mesmos erros. Nenhum destes pressupostos se identifica com a autocracia ou a ditadura. Nenhum destes pressupostos faz parte dos princípios que os detractores da democracia querem impor como alternativa a esta.

Foi com todos os seus vícios e virtudes que a democracia permitiu que as populações dos países que a adoptaram deixassem o inumano de 90% terem zero de valor, vivendo hoje uma realidade protegida em que tendo pouco têm algum poder, como dignidade sua, de adquirir bens básicos. O contraste com o passado não democrático é evidente.

Claro que quem disser que a dimensão da desigualdade e o seu aparente crescimento continuado são inaceitáveis e que a redistribuição de rendas sociais não é feita de forma a melhor proteger os mais desfavorecidos tem razão. Mas algum sistema fez melhor? Algum sistema antes da democracia e actualmente nos regimes autocráticos, permite a denúncia desses fracassos e tenta corrigi-los? Vale sempre a pena recordar que é “só” em democracia que quem tem 5 pode aspirar e ter 10 e pode lutar livremente para o alcançar, que os que têm 10 podem fazer o mesmo para terem 20, depois 100, quiçá 1000 e assim sucessivamente. Tal como “só” em democracia é possível promover e lutar livremente para que quem tem 100000 reparta com os outros uma parte desse seu valor.

Repito: “só” em democracia.

Em autocracia ou em ditadura o poder assenta na própria desigualdade com os seus agentes no topo do valor, na limitação dos direitos de reclamação de todos os outros, na restrição à informação livre e à livre associação e na proibição do direito de criticar sem restrições a autoridade desse poder.

Contra a democracia

Sendo estes princípios inequívocos (para mim) é-me difícil perceber como pode haver, nas últimas décadas, um tão claro crescimento das ideias antidemocráticas e do número dos seus apoiantes. Ideias sectárias que promovem a exclusão de parte dos cidadãos, referidos como diferentes, do direito a viver com dignidade apenas por esta característica (aquele desfavorecido é mais desfavorecido do que eu por isso devo eliminá-lo para não concorrer comigo no objectivo de deixar, de deixarmos, de o ser), são retrógradas porque estimulam a conflitualidade procurando evitar a mistura social que é o próprio de todas as comunidades humanas, são geradoras de sofrimento e engano porque promovem, crescendo com isso, a ausência de reflexão, o imediatismo desregulado, o poder elitista dos iluminados condutores do povo afastando da decisão todos os que o não sejam, ou seja, a grande maioria dos seus seguidores. Este é o engano. O sofrimento virá quando, tarde demais, o perceberem.

O crescimento do número de defensores de valores antidemocráticos talvez se pudesse atribuir à existência de cada vez mais pessoas sem formação, sem conhecimentos. E, de facto, algumas sê-lo-ão. Mas não parece que este seja um padrão que se possa atribuir, de forma generalizada, aos antidemocratas porque se percebe que os valores contra a democracia são defendidos, de forma transversal, por todo o corpo social. Há desde académicos a gente boçal, com estes a serem vistos principalmente nas campanhas eleitorais, sem que saibamos quais são os que predominam. No entanto sabemos que a presença de académicos nos permite afirmar que há pessoas com conhecimento e saber crítico que acreditam ser melhor gerir a “coisa” pública pelo poder ditatorial do que pelo democrático (talvez por julgarem que farão sempre parte desse corpo ditatorial). Mas e os outros? Porque serão tão permeáveis à manipulação destes?

Julgo que a ignorância e a desinformação sobre o passado próximo e sobre a História poderá ser uma das razões deste recrudescer dos valores contrários à democracia. E até admito que a formação universitária, que deveria ser suporte de transformações sociais para melhor, possa ter deixado de cumprir esta função um pouco por todo o lado. Por querer dar importância à tecnologia, o que é bom, mas sem dar a mesma importância às humanidades que anteriormente eram a sua primeira imagem, o que é mau. O aumento do número de apoiantes de ideias antidemocratas pode ser uma das consequências de a memória não ser ensinada e de, por falta de curiosidade em relação ao que foi viver antes do dia de hoje, se julgar que o hoje se limita a copiar o ontem.

Ora a memória constrói-se vivendo um tempo passado ou estudando-o. E hoje há muitos eleitores que não têm idade para recordar o tempo de antes de 1950. Esta falta de viver, ou ouvir falar, aliada à desvalorização do ensino da História e das outras disciplinas “das humanidades” torna-nos dolorosamente ignorantes do passado. Porquanto estando este ensino secundarizado nos estudos médio e superior face à ilusão tecnológica da solução imediata é esta que prevalece sendo o saber especulativo, interpretativo, crítico, tido como inútil e desadequado ao desenvolvimento se não mesmo ao progresso.

O que é falso.

Porque todos sabem dizer que a saúde hoje trata o que não conseguia tratar há alguns anos atrás, que apesar dos movimentos contra as vacinas a grande maioria das populações que a elas têm acesso desejam-nas embora sabendo que são ciência recente. E são muitíssimos os que dizem que antigamente não havia antibióticos, nem exames, nem a diversidade de medicamentos que há hoje. E sabem-no porque a história destes problemas, percebidos como do seu quotidiano, são memória colectiva bastante partilhada e reconhecida como útil pois confirma que mudámos de uma forma de viver para outra melhor.

E também sabem dizer que há 100 anos não existiam tantos carros, que viajar entre continentes só era possível de barco porque o avião é uma invenção recente, que “falar” com amigos distantes se fazia por carta e que à noite só havia a luz de velas. Sem lerem tratados de História sabem desta o suficiente para, repito, perceberem que o mundo onde se vive hoje era bem diferente há um século atrás.

Ou seja, há memórias que são cultivadas porque se lhes reconhece utilidade. Por isso me confunde que se considere normal ser-se ignorante da governação de antigamente, da forma como se vivia nos regimes de antes da democracia, de quais eram os direitos dos desfavorecidos desse tempo, de qual era a sua segurança no dia a dia, na doença e na velhice? Que se considere inútil procurar estes conhecimentos.

Compreendo que o antidemocrata informado e que aspira ao poder não tenha interesse em partilhar estes saberes e manipule os potenciais apoiantes com uma ilusão de mudança “contra” o tempo actual que dizem ser retrógrado pelos vícios da democracia que é a sua governação. Mas já não compreendo como é que os que acreditam no sistema democrático cedem a pressões para reduzir ou retirar dos programas de ensino as cadeiras que são uma das mais importantes formas de informar sobre “o que era viver no passado”, mormente a História. De Portugal e Universal.

O ensino das humanidades devia ocupar o lugar primeiro nas obrigações escolares porque permite criar interesse pela cultura, um dos caminhos para se ver o que de bom se conseguiu com a mudança da autocracia para a democracia. E este “bom” existe apesar de todas as suas fragilidades porquanto a identidade da democracia é o poder-se falar dessas fragilidades e procurar a sua correcção. Este direito aparentemente tão óbvio não existe na autocracia, não existe no mundo que se propõe ser a imaculada alternativa aos erros da governação democrática.

Por isso podemos dizer que essa alternativa não é uma melhor forma de governar, não é imaculada nem os seus defensores são mais sérios (ou justos) que os democratas.

E necessitamos de o dizer bem alto para que os seus apoiantes crédulos, com ou sem formação universitária, percebam que se perdermos este tempo político de liberdade crítica perderemos os direitos de saúde que temos hoje, os direitos de ascensão social que temos hoje e que podem melhorar, o direito de viver num planeta protegido onde a exploração de recursos estará condicionada ao direito maior à vida dos seres humanos o que é preocupação “exclusiva” do mundo democrático.

(Como este texto se destina a uma publicação portuguesa acho adequado contar um facto real, que só posso testemunhar pela minha idade: Aconteceu em Portugal há 54 anos. “Sabes que há outro salazar? Chama-se Caetano. Como é que se chamaria o que ficou doente?” – Duvido que na democracia de hoje alguém julgue que costa, coelho, guterres, cavaco ou outro qualquer apelido, seja uma função…)